Três grandes obras sobre literatura africana – duas delas dedicadas só a autores dos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP) – serão dadas à estampa este ano no Brasil. A primeira a chegar às livrarias – já no dia 30, com o selo da editora Annablume e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – é “De missangas e catanas: a construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e sãotomenses”, de Érica Antunes Pereira.
O livro, que nasce da tese de doutoramento de Érica Antunes Pereira, é uma “leitura comparatista fundada no cruzamento de temas e posturas femininos detectados nas obras inaugurais” de seis poetisas dos Países Africanos de Língua Portuguesa: Alda Lara e Paula Tavares (Angola), Vera Duarte (Cabo Verde), Noémia de Sousa (Moçambique), Alda Espírito Santo e Conceição Lima (São Tomé e Príncipe).
“Com base na hermenêutica dos cotidianos bastante diversificados em que se inserem os seus poemas, detectamos semelhantes situações de submissão, de impasse e estratégias de resistência que permitem entrever a atuação social das mulheres em seus respetivos contextos e nas épocas em que eclodiram as suas produções”, afirma a pesquisadora ligada à Universidade de São Paulo.
As mulheres projectadas pelo sexteto feminino nas suas obras de estreia – Poemas (1966), Ritos de passagem (1985), Amanhã amadrugada (1993), Sangue negro (2001), É nosso o solo sagrado da terra (1978) e O útero da casa (2004) – são “muitas vezes portadoras de uma voz quase silenciosa e marcada pelas miudezas do cotidiano”, define Érica Antunes Pereira.
Mas isso nunca impediu as mulheres de “inscrever as suas marcas na sociedade e adquirir o poder de (trans) formá-la e de transformar-se, daí o título de nosso livro, De missangas e catanas, alusivo à simbologia da resistência empreendida por elas em favor do afloramento de suas subjetividades e do registro de suas historicidades”.
Com Alda Lara, Paula Tavares, Vera Duarte, Noémia de Sousa, Alda Espírito Santo e Conceição Lima que tornam visível o antes invisível corpo feminino. “Em seus poemas, ele é espaço de inscrições sociais, políticas, culturais e geográficas, que é representado como subjetividade corporificada, abolindo o dualismo mente/corpo, tão caro à ideologia androcêntrica dominante”, explica a pesquisadora brasileira.
O grande contributo da escrita literária feminina nos PALOP é por isso, considera Érica Antunes Pereira, “o desvelamento da experiência concreta das mulheres pela fala de mulheres, que vem contrapor-se aos valores culturais de dominação, instaurando novos pontos de vista sobre a sua história social”. A “junção de um arcabouço feminista com a hermenêutica do cotidiano”, defende a autora, permite apreender “as experiências, subjetividades e historicidades femininas em Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe”.
Brasil vira-se aos poucos para África
Érica Antunes Pereira, graduada em Direito e Letras, realiza neste momento na Universidade de São Paulo pesquisa para o seu pós-doutoramento, sob a supervisão de Simone Caputo Gomes, uma dos maiores especialistas em literatura cabo-verdiana do mundo. “Travessias atlânticas: a literatura de Cabo Verde lê o Brasil” é o tema da tese que poderá ganhar a forma de livro nos próximos anos.
Mas até lá, outras duas obras sobre literatura africana deverão estar em breve nos escaparates das livrarias brasileiras. Em Maio chega a edição da revista “Olhares Cruzados” dedicado à Etiópia. Dirce Carrion, arquitecta e fundadora do projecto de intercâmbio cultural que deu nome à revista, convidou a escritora Vera Duarte a escrever o texto que acompanha as fotografias da visita àquele país do corno de África.
A poetisa cabo-verdiana, que é também activista dos direitos humanos, esteve em Março no Brasil, onde falou às crianças brasileiras, o público-alvo do “Olhares Cruzados”, sobre as tradições e culturas de Cabo Verde. O arquipélago é um dos países onde o “Olhares Cruzados” também actua, desde 2009.
Também na forja está um livro sobre a literatura que ontem e hoje se faz nos países de África que falam o português, patrocinado pela Fundação Palmares, cujo ex-presidente Zulu Araújo esteve em Cabo Verde antes de terminar o seu mandato, em 2010. Entretanto, diversas universidades continuam a publicar nas suas revistas artigos sobre escritores africanos, entre eles os originários dos PALOP.
Este interesse crescente que universidades, fundações e editoras revelam pelos escritores de África não é alheio à iniciativa legislativa do presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, que tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino básico e médio de todo o Brasil, quer públicos quer privados.
A lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, determina: o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, económica e política, pertinentes à história do Brasil.