Em um artigo publicado na revista Photochemical and Photobiological Sciences, pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Sorocaba, demonstraram a possibilidade de utilização de enzimas luciferases de vagalumes como indicadores de pH intracelular em bactérias, uma aplicação até então inédita.
A demonstração dessa aplicação foi realizada durante o doutorado de Gabriele Verônica de Mello Gabriel, do programa de pós-graduação Genética Evolutiva e Biologia Molecular, sob a orientação de Vadim Viviani, coordenador do Laboratório de Bioquímica e Biotecnologia de Sistemas Bioluminescentes da UFSCar.
Desde o seu mestrado, realizado no âmbito do programa de pós-graduação Biotecnologia e Monitoramento Ambiental, Mello Gabriel avaliava a possibilidade de uso da luciferase do vagalume Macrolampis sp2, encontrado na Mata Atlântica, como indicador de pH intracelular de bactérias – para o que Viviani solicitara uma patente em 2005.
“Já se sabia que luciferases de vagalumes mudam a cor da bioluminescência do verde-amarelo para o vermelho em pH ácido, sob altas temperaturas ou na presença de metais pesados. Agora, demonstramos que a razão entre a intensidade de luz vermelha e luz verde pode ser efetivamente utilizada para indicar o pH intracelular em bactérias”, disse Viviani à Agência FAPESP.
De acordo com o pesquisador, o avanço abre caminho para a utilização da luciferase do Macrolampis sp2 como indicador de pH em outras células, como de mamíferos – o que, por sua vez, pode ser útil para acompanhar mudanças de pH associadas a processos biológicos patológicos como cancerificação, inflamação, acidose e apoptose.
Trata-se de um novo tipo de aplicação para as luciferases, que há décadas já são usadas como marcadores luminosos de expressão gênica em células.
“A vantagem adicional de nossa recente descoberta é possibilitar que um único gene de luciferase acompanhe mais de um evento fisiológico intracelular. Por exemplo, analisar o estado energético das células – calculado por meio da intensidade de luz, que é proporcional ao conteúdo intracelular de trifosfato de adenosina [ATP] – e ao mesmo tempo sua acidez – por meio da mudança do parâmetro espectral, ou seja, da cor da luz”, disse Viviani. “Não por acaso, a morte celular é acompanhada por diminuição dos níveis de ATP e acidificação.”
Em continuidade aos estudos de doutorado, Mello Gabriel agora investigará a aplicabilidade da luciferase doMacrolampis sp2 em células de mamíferos, em parceria com pesquisadores do National Institute of Advanced Industrial Science and Technology (AIST), de Tsukuba, Japão.
“Aqui em nosso laboratório, o passo seguinte será avaliar o uso da enzima como biossensor intracelular de metais pesados como cobre, zinco e mercúrio, a fim de detectar a presença de toxicidade em água”, afirmou o pesquisador.
Segundo Viviani, a intenção é desenvolver um centro de aplicações biofotônicas de luciferases e bioluminescência para aplicações ambientais e biomédicas.
Cores de bioluminescência
Em outro artigo, publicado em julho de 2014 na revista Biochemistry, os pesquisadores da UFSCar, em parceria com colaboradores da University of Electro-Communications (UEC), em Tóquio, no Japão, exploraram o mecanismo de determinação das cores de bioluminescência pelas luciferases de besouros.
A cor da bioluminescência de vagalumes e outros besouros varia do verde ao vermelho, empregando a mesma reação bioquímica com os mesmos reagentes: luciferina (pigmento fluorescente que, ao ser oxidado, age como emissor de luz), energia armazenada nas moléculas de ATP, oxigênio e enzimas luciferases.
“Embora a reação seja idêntica entre as espécies, pequenas variações na estrutura das enzimas luciferases e nas propriedades químicas de seu sítio ativo [bolsão da proteína onde ocorre a reação química de oxidação da luciferina, resultando na produção de luz] são responsáveis pela modulação de cores”, disse Viviani.
A fim de entender melhor tais variações, o pesquisador japonês Takashi Hirano (UEC) sintetizou análogos de luciferina – compostos produzidos a partir do substrato original, mas com partes da molécula modificadas que ajudaram a identificar os grupos químicos da molécula de luciferina que interagem com a luciferase para modular as cores de bioluminescência.
Já os pesquisadores brasileiros caracterizaram as propriedades de bioluminescência desses análogos sintetizados no Japão, utilizando para tanto um extenso repertório de luciferases, clonadas e modificadas por engenharia genética, de espécies brasileiras que emitem diferentes cores de luz (verde, verde-amarelo, verde-azulado, amarelo, laranja e vermelho). Esse repertório de luciferases multicoloridas é fruto de clonagens e engenharia genética conduzidas durante mais de 15 anos por Viviani e seu grupo de pesquisa.
“Com esta abordagem combinada, envolvendo a modificação tanto da estrutura química da luciferina como do sítio ativo das luciferases, identificamos a forma química mais provável da molécula emissora de luz [oxiluciferina], bem como mapeamos algumas das interações físicas e químicas do sítio ativo da luciferase com essa molécula emissora, responsáveis pelas cores de luz”, disse o pesquisador.
“Além de ajudar a desvendar o mistério por trás das cores de bioluminescência dos vagalumes, esse estudo ajuda a orientar novas diretrizes para a engenharia das enzimas luciferases e a química combinatória, visando aumentar a faixa de cores dos ensaios bioluminescentes, amplamente usados nas áreas biomédica e ambiental.”
A pesquisa contou ainda com a participação do aluno de iniciação científica Deimison Rodrigues Neves, do doutorando Danilo Trabuco do Amaral e da pós-doutoranda Rogilene Aparecida Prado.
Amydetes vivianii
Entre as luciferases clonadas utilizadas pelo grupo da UFSCar para a investigação sobre o mecanismo de determinação de cores de bioluminescência está a da espécie Amydetes vivianii, descrita no início deste ano e batizada em homenagem ao pesquisador Viviani, que a descobriu no campus de Sorocaba, logo após a sua inauguração, em 2006.
A descrição foi feita pelo taxonomista Luiz Felipe Lima, aluno de doutorado do Laboratório de Entomologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A espécie é conhecida por produzir um brilho verde-azulado intenso e contínuo e teve sua enzima luciferase clonada por Viviani e seus alunos em 2011, com vistas à utilização como reagente para quantificação de ATP celular, como marcador bioluminescente e como biossensor de agentes tóxicos.
“A descoberta e a descrição de mais uma espécie de vagalume, alvo de pesquisas que já resultaram na clonagem de enzimas com interesse biotecnológico, demonstram a importância e a urgência dos estudos e da preservação da biodiversidade nativa dos biomas brasileiros”, disse Viviani. Este último projeto foi financiado por um auxílio regular vinculado ao programa Biota-FAPESP.
Segundo o pesquisador, as maiores ameaças a espécies de vagalumes como a Amydetes vivianii são a redução de habitats resultante do crescimento urbano e de monoculturas e o aumento da poluição luminosa emitida pelos centros urbanos.
“Mas não é no Estado de São Paulo que está acontecendo o mais grave, e sim no Centro-Oeste e na Amazônia, onde regiões inteiras foram desmatadas para dar lugar a monoculturas extensivas de soja e cana-de-açúcar”, sublinhou.
O pesquisador alerta que na região de Costa Rica, em Mato Grosso do Sul, dezenas de espécies de vagalumes desapareceram, entre as quais duas (larva-trenzinho e larva de cupinzeiros luminosos) cujos estudos já resultaram em produtos tecnológicos de importância à saúde humana.
“Vagalumes constituem importantes bioindicadores de qualidade ambiental. Seu desaparecimento, além da perda da beleza natural, traz um alerta vermelho aos desavisados: nosso meio ambiente está colapsando e a sociedade perderá os benefícios que ele pode fornecer na forma de recursos renováveis e produtos importantes para a saúde humana e ambiental.”
Agência FAPESP