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Entrevista exclusiva com Marcelo Gleiser

Publicado em 28 janeiro 2000

Por Por José Monserrat Filho
"O cientista deve se aproximar dos políticos, justificando sua pesquisa". O jovem físico brasileiro, radicado há 17 anos nos EUA, projetou-se entre nós como divulgador de ciência, escrevendo uma coluna semanal na Folha de SP. Na opinião de Marcelo, "não se pode separar educação dos outros problemas, saúde, alimentação e trabalho; o pacote tem de vir por inteiro, integrando educação - científica inclusive - a melhorias na saúde e distribuição de alimentos e riqueza". Que importância atribui às atividades de política científica? Até que ponto o vertiginoso desenvolvimento científico e tecnológico do nosso tempo é resultado de políticas científicas bem definidas e Implementadas? Os cientistas devem envolver-se com política em geral e em particular com política científica? - Infelizmente, o cientista moderno não pode se divorciar do processo político. Galileu já sabia disso muito bem. Pesquisa custa caro, e o orçamento dessa pesquisa vem, em ultima instância, do governo e da indústria. Portanto, o cientista tem de se aproximar dos políticos, justificando a importância de sua pesquisa, seja ela aplicada ou básica. Mais ainda, acho que o cientista deve essa participação ao público em geral. Ciência afeta a sociedade tanto positivamente quanto negativamente, e o cientista tem o dever de apresentar as conseqüências de suas pesquisas da forma mais aberta e honesta possível. Essa apresentação tem um caráter de divulgação de idéias, mas também tem um caráter político, na medida em que certas decisões políticas dependem diretamente do impacto que a ciência tem para a sociedade. Veja 08 exemplos da energia nuclear e da pesquisa em engenharia genética. Como avalia as políticas científicas do Brasil e doa EUA? - O cientista brasileiro, em particular o da área acadêmica, tem sempre lutado contra a falta de recursos para a pesquisa e baixos salários. Apesar de eu estar fora do país há 17 anos, meus colegas não me informam de aparentes melhoras. Exceção importante é o papel da Fapesp.no auxilio à pesquisa, que sem dúvida vem tendo um impacto importante. Por outro lado, o país ao menos continua o auxílio à pesquisa e a pesquisadores em vários níveis, da iniciação científica ao pós-doutorado. Acredito que a globalização da economia e seu impacto em mercados emergentes vai influenciar positivamente o orçamento dedicado à pesquisa no Brasil. Ou ao menos deveria. Existem grupos de pesquisa no Brasil de altíssimo nível, que merecem todo o apoio do Governo. Existe também enorme interesse por ciência na população, que deveria ser muito mais explorado, tanto pelo governo quanto por cientistas. O argumento de que ciência é prioridade baixa em um país com tantos problemas mais básicos como alimentação, saúde e educação é furado. Tudo depende de como a "torta" que representa o orçamento da União é cortada. Não veio por que a fatia dedicada ao financiamento da pesquisa, pequena como é, deva ser ainda menor. Quanto aos EUA, o financiamento à pesquisa está passando por uma fase bem estranha. O país está atravessando um período de grande prosperidade, a economia fortíssima, mas isso não está sendo refletido nos orçamentos das agências financiadoras de pesquisa como a National Science Foundation, NASA e os DOE. Pelo contrário, esses orçamentos estão achatados, mal sendo corrigidos com a inflação. A pesquisa básica é bem financiada por aqui, mas não é o paraíso que muitos imaginam. Mas também não é nenhum inferno. Como vê o trabalho político de entidades representativas do setor de C&T, como a SBPC, a Academia Brasileira de Ciências e as sociedades científicas de diversas áreas do conhecimento? Que paralelo faz com o que vê nos EUA? - Infelizmente, não tenho informações suficientes sobre esse trabalho no Brasil para omitir uma opinião concreta. Nos EUA, posso afirmar que ao menos a American Physical Society vem pregando junto aos cientistas a necessidade de que estes façam divulgação científica, tanto junto ao publico leigo quanto junto aos políticos. Com o fim da Guerra Fria, ficou claro que esta mobilização é condição necessária para a sobrevivência do financiamento da pesquisa básica aqui. Imagino que um trabalho análogo no Brasil, de mobilização da comunidade científica junto aos políticos, também teria impacto importante. Sei de casos individuais, mas não de uma organização profissional, como a SBPC ou a SBF, se manifestando conjuntamente. Claro, essa minha afirmação pode ser pura falta de informação. Nesse caso, peço desculpas e teria interesse em saber mais sobre o assunto. Considera natural ou preocupante o crescente desnível de conhecimento (knowledge gap) entre o pequeno número de países desenvolvidos e o grande número de países em desenvolvimento? Quais as conseqüências desta enorme perda de unidade entre os países e entre os habitantes de cada país e da Terra como um todo, tão profundamente divididos entre "os que sabem" e "os que não sabem"? Esta é uma questão internacional, global, ou apenas nacional, interna de cada país? - Acho que esse desnível sempre existiu. Historicamente, aqueles países que controlavam os meios e tecnologias de produção controlavam também a economia. Agora, o controle é das tecnologias de informação. Quem controla a formação e distribuição de informação tem o poder. A diferença é que o império agora não é territorial mas existe dentro da rede de computadores. Por outro lado, essa mesma rede, ou Internet, tem o potencial de distribuir educação e assim diminuir essas disparidades entre países e populações. Mas, para isso, a população tem de ter acesso a essa tecnologia, o que complica as coisas, e, também, de saber discernir informação de "desinformação", ou seja, saber usar essa quantidade incrível de informação que existe agora para seu crescimento e educação. A educação moderna tem papel crítico aqui, que, espero, educadores venham a assumir o mais rápido possível. No Brasil de hoje há demanda crescente da comunidade científica e tecnológica por políticas públicas capazes de reduzir as diferenças regionais de desenvolvimento no setor. O próprio governo já tem alguns programas com este fim. Acha possível e necessário diminuir tais desigualdades? - Acho certamente necessário. É também possível, contanto que exista um alocamento Financeiro e humano à altura do desafio. Não adianta fazer pela metade, pois as conseqüências seriam péssimas. Como vê os resultados da recente Conferência Mundial sobre a Ciência, promovida pela Unesco em Budapeste? Qual é o papel da cooperação internacional no desenvolvimento científico nacional? - O mundo de hoje está cada vez mais integrado através do fácil acesso à informação e a sua troca. Fora a pesquisa mais estratégica (industrial ou de defesa), é fundamental para o cientista moderno que se integre nesse panorama mundial. Isso é extremamente importante para o Brasil, já que as distâncias diminuem, e o acesso às últimas novidades passa a existir. Eu me lembro, quando era estudante, da história que como o Brasil estava longe dos EUA e Europa, os artigos chegavam atrasados (quando chegavam), os jornais não eram acessíveis, forçando o cientista a trabalhar em assuntos mais fundamentais* e menos competitivos. Agora a coisa mudou: com um PC você pode acessar os artigos ainda em preprint todos os dias, recebendo a informação tão rapidamente quanto alguém nos EUA ou Europa. Mais ainda, os projetos chamados de "Big Science", envolvendo vários milhões ou até bilhões de dólares, são necessariamente projetos internacionais. Exemplos são a participação brasileira no Fermi National Accelerator Laboratory de altas energias, nos EUA, e no Projeto Auger, que visa estudar os chamados raios cósmicos. Esses projetos abrem ao Brasil a oportunidade de colaborar de igual para igual com outros países do mundo. Mais oportunidades como essas, com participação ainda maior do Brasil, só poderão beneficiar a ciência nacional. Como enfrentar o avanço do sistema de patentes no sentido de garantir o "segredo de negócio", tendência que obstrui em escala cada vez maior o livre acesso ao conhecimento científico? - Acho que a pesquisa moderna, principalmente em genética, terá que redefinir nossa ética profissional. Sem duvida, laboratórios desenvolvem técnicas e produtos visando o lucro; isso não é novidade. Mas esses produtos têm impacto sobre a sociedade que vai além da sua simples aplicação "farmacêutica". Um diálogo entre cientistas, filósofos, políticos e a sociedade como um todo se faz necessário, para que surpresas desagradáveis não ocorram no futuro, já bem próximo. A livre troca de informação sempre foi parte do discurso da ciência, ao menos em princípio. Mas a ciência mudou e seu discurso também deve mudar. A questão permanece se devemos ou não impor limites ao que pode ou não ser pesquisado nos laboratórios. Eu acho que não; o cientista tem o dever de apresentar à sociedade seus achados, como diz o prêmio Nobel francês, Francois Jacob. O problema é o controle dessa in formação; como podemos saber que tudo que é relevante está sendo dito. Como vê a questão do "analfabetismo científico" no mundo de hoje? A educação formal é capaz de enfrentar o problema? E a Internet? Qual é o papel dos cientistas? E possível dar efetiva prioridade à educação científica em países onde problemas sociais básicos (saúde, alimentação, trabalho) não estão resolvidos? O analfabetismo científico hoje não é muito pior do que sempre foi; muito sério e crítico. A diferença é que a vida moderna depende cada vez mais da ciência; pessoas ignorantes cientificamente serão cada vez mais forçadas para fora do processo político que define seu próprio futuro. Sem a menor dúvida, ciência pode ser apresentada em todos os níveis de educação. Não existe mistério nenhum aqui, é tudo uma questão de método e linguagem. Conceitos básicos da física, química e biologia não precisam de muita elaboração e material. Basta uma distilação correta do conteúdo, mantendo o que é essencial e descartando o que complica desnecessariamente. Não se pode separar educação dos outros problemas, saúde, alimentação e trabalho. O pacote tem de vir por inteiro, integrando educação - científica inclusive - a melhorias na saúde e distribuição de alimentos e riqueza.