A bioquímica paulista Vilma Regina Martins passou os últimos 15 anos investigando o papel desempenhado no organismo pela proteína príon celular, a versão saudável da proteína causadora do mal da vaca louca. Em parceria com equipes do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, ela verificou que o príon celular ou PrPc, proteína encontrada na superfície da maioria das células do corpo, em maior quantidade nas células do sistema nervoso central e do sistema imunológico, é fundamental para o desenvolvimento e amadurecimento adequado dos neurônios e para o equilíbrio do sistema de defesa (ver Pesquisa FAPESP n. 148).
Agora, Vilma e seus colaboradores propõem que interferir no funcionamento da PrPc pode ajudar a bloquear o desenvolvimento de outras enfermidades do sistema nervoso central, como o mal de Alzheimer, a doença neurodegenerativa mais comum entre os idosos, e o glioblastoma, o tumor cerebral mais agressivo que se conhece.
Experimentos feitos pelo grupo com células cerebrais isoladas e também animais indicam que alterar a quantidade de uma proteína que se conecta à PrPc e a ativa impede a morte de neurônios mesmo na presença dos compostos tóxicos produzidos nos estágios iniciais do Alzheimer. Um fragmento dessa outra proteína - a stress inducible protein-1, sintetizada pioneiramente por Vilma e pelo oncologista Ricardo Brentani em 1997 - também vem se mostrando eficiente nos testes in vitro para frear a reprodução dos astrócitos, as células cerebrais que se multiplicam descontroladamente no glioblastoma.
Vilma apresentou esses resultados nodia 07/03, quarta-feira, no primeiro dia do Brazil-Canada Prion Science Workshop 2012, realizado no Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. O evento que terminou no dia 08/03 reuniu os principais pesquisadores brasileiros e canadenses que investigam as funções da proteína príon celular e os mecanismos que levam a se transformar no príon infeccioso, versão defeituosa e tóxica da proteína, responsável pela morte em massa dos neurônios no mal da vaca louca.
Além de mostrar os avanços mais recentes nessa área, o encontro, financiado pela FAPESP e por agências canadenses, tem o objetivo de aproximar as equipes dos dois países e estimular programas de cooperação. "Existe uma grande possibilidade de a colaboração nessa área trazer progresso científico", disse Abina Dann, cônsul geral do Canadá em São Paulo, que recordou o empenho de Brentani para a realização do workshop e o início da colaboração entre o Brasil e o Canadá nessa área. Quando morreu, em novembro do ano passado, Ricardo Brentani era diretor da Fundação Antonio Prudente, que mantém o Hospital A.C. Camargo, e diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP.
"O Brasil deve entrar na brain circulation", disse o bioquímico Hernan Chaimovich, coordenador dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) da FAPESP e assessor da diretoria científica da mesma fundação, em referência ao movimento circular de treinamento de especialistas no exterior e sua incorporação nos quadros nacionais, em oposição ao fenômeno da fuga de cérebros [brain drain] comum no passado. "Esperamos que seja uma experiência informativa e transformadora", comentou o neurologista Neil Cashman, diretor da PrioNet, rede canadense que reúne 16 centros de excelência em pesquisa de doenças causadas por príons em animais e em seres humanos.
Também participaram do evento representantes do Alberta Prion Research Institute, centro de pesquisa criado pelo governo da província de Alberta após a identificação em 2003 do primeiro caso autóctone de doença da vaca louca no Canadá, tecnicamente conhecida como encefalopatia espongiforme bovina. O animal doente era da província de Alberta, onde se encontra quase metade do rebanho bovino do país. A confirmação desse e de outros casos de contaminação no rebanho bovino provocou perdas de U$ 10 bilhões à pecuária canadense, porque países como Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul deixaram temporariamente de importar carne. Desde então, instituições canadenses trabalham na vigilância epidemiológica da doença no gado bovino e da forma da enfermidade que atinge cervos e alces, a chronic wasting disease.
O controle da infecção nos diferentes ambientes se une a estudos sobre estruturas das proteínas e sobre a conversão do príon celular em príon infeccioso. Um exemplo são os estudos desenvolvidos por David Wishart, da Universidade de Alberta, coordenador do Prion Project, que tenta identificar por que a proteína saudável se desenovela e assume outra estrutura tridimensional mais estável que faz uma molécula aderir à outra formando longas fibras, tóxicas para os neurônios - no caso das doenças causadas por príon, acredita-se que o simples contato uma proteína alterada seria suficiente para fazer a versão saudável se tornar defeituosa.
No enovelamento, a proteína se dobra sobre si mesma, por atração e repulsão de cargas elétricas, e assume uma forma espacial que define a função que desempenha no organismo. Falhas no processo de enovelamento ou fenômenos que alterem a forma da proteína depois de pronta não estão por trás apenas das doenças provocadas por príons. Outras doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, o mal de Parkinson e a esclerose lateral amiotrófica - a doença do físico inglês Stephen Hawking - têm entre suas causas problemas no enovelamento de proteínas, que passam a se agregar matando os neurônios. "Parece haver um mecanismo comum por trás dessas enfermidades", comenta Vilma.
Pode existir ainda outro elo entre o mal da vaca louca e a doença de Alzheimer. A proteína príon celular está de algum modo envolvido nessas duas enfermidades exterminadoras das células cerebrais. No caso da vaca louca, o problema está na própria PrPc. Uma versão deformada dessa proteína, o príon infeccioso, entra em contato com as proteínas saudáveis e altera sua estrutura, levando os neurônios à morte. Já no Alzheimer, a doença neurodegenerativa que atinge uma em cada três pessoas com mais de 85 anos, a PrPc encontra-se saudável. Mas o efeito protetor que ela exece sobre os neurônios é bloqueado por outra proteína - na realidade, um fragmento de proteína chamado oligômero beta-amiloide - que impedindo seu funcionamento.
Autor: Ricardo Zorzetto
Fonte: Pesquisa FAPESP Online