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Entre a ciência e a canção… (10 notícias)

Publicado em 28 de agosto de 2024

O compositor, zoólogo e professor, Paulo Vanzolini (1924-2013) vivenciou a urbanidade paulistana como poucos. Uma relação intrínseca iniciada na avenida Brigadeiro Luís Antônio, local de seu nascimento, e que floresceu na vida adulta, nas ruas, bares e noites desvendadas por sua singular paixão e olhar apurado. Nos versos de seus sambas memoráveis, que traduzem tão bem a alma da cidade, Vanzolini se esmerou em observar a natureza em seus detalhes – e a relevância de suas investigações o levou a dirigir, por mais de três décadas, o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), um dos centros de referência para estudos sobre a origem e a vida dos animais na América Latina. Como pesquisador, conduziu expedições que catalogaram dezenas de exemplares de anfíbios e répteis da fauna brasileira, e foi um dos mais importantes teóricos sobre a formação de novas espécies no continente, sob o ponto de vista biológico, evolutivo e ambiental.

No cerne dessas duas facetas, unindo arte e ciência, esteve um homem que, no ano de celebração de seu centenário, permanece provocando inspiração por seu legado de amor ao conhecimento, à criação e à poesia da vida. “Gostaria que o recordassem para além do homem público, como um grande humanista. Uma pessoa de cabeça aberta, sem preconceito algum e de grande senso ético”, revela a professora Maria Eugenia Vanzolini, filha do compositor, cuja vida e obra são homenageadas na exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio, em cartaz no Sesc Ipiranga [leia mais em A poesia das descobertas].

(Paulo Vanzolini em pesquisa de campo na Mata Atlântica de Boraceia, município no litoral norte do estado de São Paulo, na década de 1950. Acervo Família Vanzolini)

No cerne dessas duas facetas, unindo arte e ciência, esteve um homem que, no ano de celebração de seu centenário, permanece provocando inspiração por seu legado de amor ao conhecimento, à criação e à poesia da vida. “Gostaria que o recordassem para além do homem público, como um grande humanista. Uma pessoa de cabeça aberta, sem preconceito algum e de grande senso ético”, revela a professora Maria Eugenia Vanzolini, filha do compositor, cuja vida e obra são homenageadas na exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio, em cartaz no Sesc Ipiranga [leia mais em A poesia das descobertas].

PONTOS DE PARTIDA

Entre os aspectos que melhor sintetizam a ligação do compositor com a pauliceia, Maria Eugenia Vanzolini destaca um show na Virada Cultural de 2005, realizado no Vale do Anhangabaú, região central de São Paulo. Na ocasião, Vanzolini tinha 81 anos e, acompanhado pela cantora Vânia Bastos, presenciou centenas de espectadores entoando suas canções como uma “segunda voz”. “Ele ficava feliz ao ver as pessoas interpretando suas músicas espontaneamente. Mesmo com as muitas homenagens que recebeu em vida, ter o povo cantando suas letras o emocionava demais”, recorda a filha, uma das idealizadoras da mostra que celebra o expoente do samba paulista.

A ligação do compositor com a natureza tem suas origens, por sua vez, em outro espaço icônico da cidade: o Instituto Butantan, instituição de pesquisa em saúde pública com enfoque nos estudos e produção de vacinas e soros. Um passeio de bicicleta pelo lugar, aos 10 anos de idade, acompanhado pelos pais, despertou no garoto o interesse pela biologia, e em especial pelos répteis. O desejo de estudá-los passou a tomar forma enquanto, paralelamente, cursava o ensino fundamental no Colégio Rio Branco.

(Ilustração de Alice Tassara faz parte de exposição que percorre

vida e obra do cientista e compositor Paulo Vanzolini.)

Ao se formar em medicina na USP, em 1947, Vanzolini já era um pesquisador experiente, com passagem pelo Instituto Biológico de São Paulo. No ano seguinte, ingressou no doutorado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Não exerceu a medicina, pois seu foco sempre foi se aprofundar na herpetologia (estudo dos répteis e anfíbios), área na qual se especializou. Mas, a faculdade lhe rendeu familiaridade com as disciplinas de anatomia, fisiologia e patologia, importantes para a finalização da pós-graduação em solo estadunidense.

DISCIPLINA E VOCAÇÃO

De volta ao Brasil, o cientista realizou, nas décadas seguintes, cerca de 30 viagens expedicionárias à Amazônia, que somaram cerca de 12 mil quilômetros de navegação nos rios da região. Em entrevista à edição número 56 da Revista E, em janeiro de 2002, Vanzolini detalhou as incursões pela floresta. Realista, enfatizou o caráter sério e pragmático do trabalho de campo. “Pesquisa é uma questão de rotina bem-feita. Fico meio chateado quando falam da ‘aventura’ da expedição. Expedição que acaba em aventura é malfeita. A expedição competente acontece para pegar o bicho; além disso, ninguém fica doente, ninguém se machuca, ninguém passa fome. Os profissionais pegam os bichos e fazem as observações. Isso é uma boa expedição. As pessoas sabem para onde estão indo, elas têm prática. O resto é coisa de televisão”, analisou.

Embora seus objetos de pesquisa estivessem, sobretudo, em áreas tropicais, Vanzolini se orgulhava de ter explorado o Brasil inteiro, sempre com a mesma linha de investigação. Tal feito resultou, por exemplo, na atualização, pelo brasileiro, da Teoria dos Refúgios, do geólogo alemão Jürgen Haffer (1932-2010), que explica o surgimento de espécies na Amazônia e na Mata Atlântica. “Trabalhei em todos os estados. Só não trabalhei muito em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, porque estão fora do trópico. Mas, já trabalhei muito no Brasil Central, na Amazônia e no Nordeste. (…) Eu conheço o Nordeste como o fundo do meu bolso. Se você quiser saber como faz para ir de tal lugar para tal lugar, é só falar”, relatou à publicação. O cientista redigiu, ainda, o anteprojeto de criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entidade ligada ao governo paulista e um dos mais importantes órgãos de fomento à ciência no país.

SEMPRE ATENTO

A música e a atmosfera da noite ganharam espaço na vida de Vanzolini enquanto ainda era estudante universitário. “Houve uma época em que todas as noites ia ao Jogral, o bar mais importante de São Paulo naquele tempo, e que pertencia ao [cantor e compositor] Luís Carlos Paraná (1932-1970), um amigo muito querido. Ali se tocava música de qualidade excepcional. Se o garçom faltava, punha a jaquetinha dele e servia as mesas”, rememorou Vanzolini, em conversa com o médico e escritor Drauzio Varella, seu ex-aluno, publicada no Portal Drauzio Varella, em 16 de fevereiro de 2012.

Reflexões sobre amores, dores e esperanças frustradas, entretanto, tiveram impulso quando Vanzolini serviu como cabo da cavalaria do Exército, entre 1944 e 1945. Eventualmente, ao patrulhar, a pé, a região central de São Paulo, em especial os bairros do Bixiga, Bom Retiro e Luz, ele presenciava episódios de desentendimento entre amantes, muitas vezes potencializados pelo álcool. Assim nasceu, por exemplo, o samba-canção “Ronda”, obra-prima do cancioneiro popular, gravado pela amiga e cantora Inezita Barroso (1925-2015) no disco Marvada Pinga, de 1953.

A música rapidamente se tornou um hino informal de São Paulo, com mais de 30 regravações, entre elas as clássicas versões de Maria Bethânia e Cauby Peixoto (1931-2016). Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, de 22 de abril de 2009, Vanzolini falou sobre a motivação que o levou a escrever a antológica letra. “Cansei de ver mulher chegar na frente do bar, olhar para dentro como se procurasse alguém e ir embora. Não foi uma só que vi. Escrevi sobre isso”.

EM VERSO E PROSA

Outro sucesso, “Volta por cima”, foi gravado pela primeira vez em 1963, pelo cantor Noite Ilustrada, pseudônimo de Mário de Souza Marques Filho (1928-2003). De tão marcante, um de seus versos consta no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: “dar a volta por cima” se tornou sinônimo de “superar adversidades e sair fortalecido”. A canção continua presente em rodas de samba. “Paulo tem uma particularidade em seu modo de compor que me chama muito a atenção. Um cronista de mão cheia. Começa e termina o enredo de forma clara, não deixando dúvidas de que o fim é o fim. As letras se encaixam na melodia de forma que o ouvinte rapidamente abre o seu imaginário e é impactado pela história que está sendo contada sobre notas musicais, de suspensão e resolução muito bem escolhidas”, avalia o músico Henrique Araújo, consultor para o conteúdo musical da exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio.

Chorei,

Não procurei esconder

Todos viram, fingiram

Pena de mim, não precisava

Ali onde eu chorei

Qualquer um chorava

Dar a volta por cima que eu dei

Quero ver quem dava

Versos de “Volta por cima”, canção de Paulo Vanzolini,

gravada pela primeira vez em 1963

Sua proximidade com o cancioneiro do autor de “Na Boca da Noite” foi intensificada a partir de 2012, ao participar, como instrumentista, do álbum Paulo Poeta Cientista Compositor Boêmio Vanzolini (Biscoito Fino), do cantor e compositor Carlinhos Vergueiro. “Me chamou a atenção a versatilidade de sua obra, letra e música muito bem construídas, com a curiosidade de terem sido feitas sem o auxílio de nenhum instrumento melódico ou harmônico”, relatou Araújo. Irreverente, Paulo Vanzolini afirmava desconhecer a teoria musical e não saber ao menos a diferença entre tom maior e menor. Algo que não o impediu de assinar alguns dos sambas mais importantes da história da música popular brasileira, ao passo que contribuía, também de forma gigantesca, para o avanço científico.

Entre melodias e répteis, recordações do universo criativo de um homem que de dia se vestia de zoólogo e à noite de sambista, são celebradas na exposição 100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio, em cartaz no Sesc Ipiranga até março de 2025. “A expectativa é mostrar para o maior número de pessoas um pouco do universo desse brasileiro interessado e interessante. Meu pai ficou mais conhecido pelo público por essa defi nição de cientista/compositor, e a ideia da mostra é apresentar um pouco mais do universo plural e diverso dele. Será uma oportunidade para o público vê-lo como um homem que viu, ouviu, pensou, pesquisou, traduziu, escreveu, cantou e compôs o Brasil”, define o cineasta Toni Vanzolini, filho e um dos idealizadores da homenagem.

A vertente musical do autor de mais de 70 composições divide espaço com, entre outros itens, fragmentos dos diários de campo redigidos pelo cientista. Nos escritos, é possível atestar seu absoluto rigor e meticulosidade na tomada de dados dos exemplares estudados. “Paulo Vanzolini é um exemplo de como fazer ciência, e sua atuação promoveu o avanço científico no país. Nos registros podemos ver o quanto ele era respeitoso com o dinheiro público, como ele observava a vida das pessoas, como interagia com os demais, e como os dados levantados em campo seriam usados em seus artigos científicos, posteriormente”, explica a zoóloga e pesquisadora Renata Moretti, consultora para o conteúdo de ciências da exposição.

100 anos de Paulo Vanzolini, o cientista boêmio

Idealização: Maria Eugenia Vanzolini e Toni Vanzolini. Curadoria: Daniela Thomas.

Até 16/3 de 2025. Terça a sexta, das 9h às 21h30. Sábados, das 10h às 20h30. Domingos e feriados, das 10h às 18h30. Grátis.

sescsp.org.br/ipiranga