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Publicado em 14 de abril de 2011

Por Sírio Possenti

Na seção "Ciência" de seu Quotidiano, a Folha de S. Paulo publicou, no dia 07 de abril, um texto notável por seu estilo. O leitor pode verificar isso já no primeiro parágrafo, especialmente por uma palavra: "Se um grupo de físicos americanos estiver certo, a humanidade acaba de topar com uma nova partícula fundamental - uma peça essencial no quebra-cabeças da matéria que, até agora, tinha passado desapercebida". A palavra que chamou minha atenção foi "topar".

Orientei, há alguns anos, uma dissertação de mestrado que analisava diversos aspectos da Revista Fapesp e da Superinteressante. Ambas fazem divulgação científica, digamos, cada uma para um público específico. Quem de fato lê as duas revistas é o que menos importava, ou importa mais aos sociólogos, por exemplo, e menos aos analistas de textos, a quem importa o leitor previsto ou "imaginado" pelo texto. A Revista Fapesp jamais chamaria Alexandre, o Grande, de Xandão. Mas a Superinteressante, sim. E na capa.

Pois esta matéria da Folha parece as da Superinteressante. Normalmente, a Folha não empregaria "topar" nesse contexto, embora talvez não chegasse a "deparar-se". Há outras passagens bem "juvenis": "... o trabalho desse tipo de máquinas (aceleradores de partículas) é promover trombadas entre partículas"; "quando a pancada de partículas acontece", "os cientistas já conhecem um zoológico de partículas fundamentais, mas nenhuma bate com a energia...", "então, que diabos seria aquilo?".

Um dos parágrafos "descreve" o experimento, que consiste em disparar partículas a alta velocidade, para "quebrá-las". São as tais trombadas. Em casos assim, as comparações são fundamentais. Elas têm a finalidade de tornar compreensível o desconhecido.

Veja-se uma desta matéria: "É mais ou menos como jogar um computador no chão com força suficiente para que as peças se soltem. Depois, examinando as peças, tenta-se entender como ele estava montado e como funcionava". E continua: "Só que, no experimento (...), havia uma peça completamente inesperada".

O texto não o faz, mas poderia ter acrescentado "como, por exemplo, um corta-unhas" - ou outro objeto que o leitor conheça bem e que jamais esperaria encontrar entre as peças de um computador.

A divulgação científica é um dos nós do jornalismo. No Brasil, quase não há cientistas escrevendo para "leigos". Um dos poucos é Fernando Reinach, cuja coluna sai no Estado de S. Paulo, às quintas-feiras, e que publicou, recentemente, uma coletânea delas (A longa marcha dos insetos canibais. São Paulo: Companhia das Letras). Marcelo Gleiser escreve sobre física (mas ultimamente anda meio místico) há mais de uma década, na Folha, no caderno dominical que hoje se chama Ilustríssima.

Não sei se é correto dizer que os economistas que escrevem em jornais fazem divulgação. Não é muito fácil classificar seus textos (na verdade, é difícil saber para quem escrevem: talvez para o tal mercado, mais do que para os leitores comuns).

Algumas das perguntas sobre divulgação científica se repetem: será que o "jornalista" entendeu os papers em que novos resultados científicos são relatados pelos cientistas? Se sim, consegue fazer com que o leitor também os compreenda?

As colunas sobre ciência têm esses problemas. Mas elas têm uma vantagem: quase ninguém estranha descobertas científicas. Aceitam-se com tranqüilidade notícias sobre descobertas de bactérias ou de vírus que causam doenças, ou sobre vacinas que as combatem, apesar da presença de elementos "invisíveis" cuja ação elimina a causa da doença.

Mas há campos em que as novidades não são recebidas da mesma forma. Noticiar "descobertas" sobre nossa própria língua talvez seja uma tarefa destinada ao fracasso. As colunas de sucesso não são as que apresentam novas análises. As colunas de sucesso são as que dizem o que sempre se soube (e às vezes está errado!): que assistir é transitivo indireto quando significa 'ser espectador', que guarda-chuva tem hífen, que não se senta na mesa, mas à mesa, que namorar com está errado etc.

Se a divulgação científica propriamente dita se atribuísse a mesma missão, uma coluna sobre química repetiria a tabela periódica, informaria a composição da água e do sal. Uma de astronomia explicaria que não há cordas ou cabos de aço amarrando as estrelas das constelações, outra informaria quais são os oito planetas do sistema solar (eram nove, caro leitor, mas Plutão foi rebaixado).

Outra diferença entre as colunas de divulgação e as colunas sobre língua é que os que não sabem nada sobre ciência lêem para aprender, ou para ficar sabendo das novidades, porque sabem que não sabem. Já os que não sabem nada sobre língua são os que mais pensam que sabem. Eles têm uma vaga lembrança das aulas da quinta série e acreditam piamente que isso é tudo. Então, qualquer novidade em uma coluna é vista como a destruição da língua.

Os autores de livros didáticos de física já podem tratar do átomo, embora ele tenha apenas cerca de 100 anos; os de biologia, do DNA, embora ele não tenha ainda um século. Mas os livros didáticos de português continuam dizendo que o "certo' (eles não dizem "existe" - eles dizem "é certo / é errado") é vendem-se cães, que vende-se cães está errado, e que este "se" é apassivador. Etcaetera!!

Mas o que eu queria dizer é apenas que entendi tudo o que diz a reportagem sobre a nova partícula. Que quebrar um átomo é como quebrar um computador etc. O que eu não sei é se as coisas são mesmo assim...

FLEX?

Juro que não entendi. Consumidores espertos compram carros flex. Todas as informações relativas ao produto, e até mesmo essa sua característica - ser flex - explicitam que a vantagem desse tipo de carro é que o consumidor pode escolher o combustível que estiver mais barato, ou o seu preferido por alguma outra razão. Lá pelas tantas, o preço do álcool sobe e deixa de ser vantajoso em relação ao da gasolina. Todos os motoristas e quase toda a mídia acham que isso não é correto, que é preciso enquadrar os esmagadores de cana. (Há muitas razões para ficar de olho no "segmento", claro!). Mas, se queremos abastecer carros só com álcool, por que comprar um carro flex? E fazemos piadas de português!

 

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.