A infertilidade é um problema que afeta de 8% a 12% dos casais em idade reprodutiva no mundo todo – para alguns deles, o problema interrompe um projeto de vida, que é o desejo de ter filhos e de construir uma família. Os avanços tecnológicos e da medicina tornaram possível a realização de tratamentos de reprodução assistida, mas eles podem ser física e psicologicamente exaustivos para os casais envolvidos, especialmente por causa das expectativas com resultados que talvez não sejam alcançados.
Os impactos emocionais do tratamento são bem estabelecidos na literatura científica. A frustração com resultados negativos impacta o bem-estar psicológico e social do casal, que pode desenvolver sintomas como depressão , ansiedade, raiva e estresse , piorando a qualidade de vida.
Agora, um estudo realizado na Faculdade de Medicina do ABC (FM-ABC) com apoio da FAPESP investigou pela primeira vez os conflitos trabalho-família nesses pacientes, que podem estar associados, por exemplo, com ausências frequentes motivadas por consultas médicas ou exames.
Os resultados, divulgados na revista Psychology, Health & Medicine , indicam que o nível de conflito trabalho-família é maior entre os homens, enquanto o estresse afeta mais as mulheres.
Ao todo, foram avaliados 242 casais que estavam em tratamento de reprodução assistida no Instituto Ideia Fértil, vinculado à FM-ABC, na Grande São Paulo. Entre os participantes, a mediana de idade era de 37 anos; 60% eram mulheres; 67% tinham concluído a universidade; 37% estavam casados há mais de dez anos, 26% estavam casados entre cinco e dez anos e 37% estavam casados há cinco anos ou menos.
Na maioria das vezes os tratamentos de reprodução assistida demandam tempo e alto investimento financeiro, que às vezes são fatores estressantes para os pacientes que trabalham. Contudo, faltam na literatura científica dados sobre o impacto desse procedimento nos conflitos trabalho-família.
“Pacientes inférteis em tratamento podem enfrentar perda de emprego devido a ausências frequentes para consultas médicas e exames. É frequente que a mulher peça o atestado médico sem o logotipo da clínica, por exemplo, para que o empregador não saiba que ela está tentando engravidar”, conta Victor Zaia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da FM-ABC e autor responsável pelo estudo.
Além disso, esses pacientes também podem experimentar redução de produtividade, dificuldades de concentração, desafios no gerenciamento de efeitos colaterais de medicamentos e dificuldades com gerenciamento de tempo. “O conflito trabalho-família surge quando esses indivíduos vivenciam tensão ao tentar cumprir responsabilidades profissionais e pessoais.
Muitos enfrentam estresse, fadiga, exaustão emocional, distúrbios do sono , insatisfações, problemas conjugais, diminuição da produtividade. Consequentemente, isso pode resultar em conflitos entre essas funções, com repercussões físicas e psicológicas.”
Escalas de avaliação
Para chegar aos resultados, os pesquisadores aplicaram questionários on-line para avaliar os casais. Eles responderam a questões de quatro escalas validadas internacionalmente: Escala de Estresse Relacionado à Infertilidade-Brasil (IRSS); Escala de Resiliência Connor-Davidson 10 (CD-RISC 10); Escala de Suporte Social Percebido (PSSS) e Escala de Conflito Trabalho-Família.
Na Escala de Estresse Relacionado à Infertilidade, os voluntários responderam a 12 questões envolvendo o estresse interpessoal (sobre como situações da infertilidade atrapalhariam o cotidiano dessa pessoa com amigos, família, cônjuge) e perguntas sobre estresse intrapessoal (sobre quanto o problema da infertilidade interfere no seu bem-estar físico e emocional).
Na Escala de Resiliência, os participantes responderam a dez questões sobre sua capacidade de se adaptar às mudanças que acontecem na vida; sobre superar as dificuldades depois de doenças ou outros problemas; sobre conseguir pensar com clareza quando está sob pressão, entre outras.
O diferencial nesse caso, explica Zaia, é que a pesquisa focou em algo que estava acontecendo naquele momento – que era o tratamento de reprodução assistida –, enquanto muitas pesquisas sobre resiliência perguntam sobre algo que já aconteceu no passado, buscando a memória. “Em nosso estudo, as pessoas estavam iniciando o tratamento de reprodução. Então o impacto, a situação de risco, estava sendo vivido no agora.”
A terceira ferramenta usada na pesquisa foi a Escala de Suporte Social Percebido que, como o próprio nome diz, busca entender em 29 perguntas se o participante recebe e percebe algum tipo de apoio emocional ou prático do cônjuge, da família, dos amigos.
Por último, os pesquisadores aplicaram a Escala de Conflito Trabalho-Família – a mais importante dentro do recorte que eles buscavam estudar. Ela tem como objetivo avaliar as interferências entre os ambientes familiar e de trabalho dentro de duas subescalas: Interferência do Trabalho na Família e Interferência da Família no Trabalho.
Nas análises, os participantes do sexo masculino exibiram maior resiliência e menores níveis de estresse, tanto intrapessoal quanto interpessoal, em comparação com as mulheres que estavam em tratamento de infertilidade . No entanto, pacientes do sexo masculino relataram níveis mais altos de interferência do trabalho na família. Além disso, houve diferenças significativas de conflito trabalho-família com base na renda do casal: aqueles com rendas mais altas relataram mais interferências.
Por outro lado, o estudo apontou que as mulheres em tratamento de infertilidade apresentam níveis mais baixos de resiliência e níveis mais altos de estresse – o que pode ser explicado, segundo os autores, pelas expectativas sociais em torno da maternidade, que é considerada um papel central para as mulheres. Os pesquisadores também encontraram correlações significativas entre resiliência e suporte emocional; estresse intrapessoal; e estresse interpessoal.
“O estresse sozinho não explica o conflito trabalho-família. Mas concluímos que, se a pessoa tiver mais estresse, pouco suporte social, menos resiliência, muito provavelmente ela terá maiores níveis de conflitos. E se a pessoa não conseguir gerenciar esses conflitos, ela provavelmente terá mais estresse, levando a uma espécie de círculo vicioso”, explica Zaia.
Do ponto de vista da prática clínica, diz Zaia, esses resultados podem orientar os profissionais de saúde a trabalhar com os casais na busca do fortalecimento das estratégias para melhorar e fortalecer os aspectos de resiliência e de suporte emocional. “Todas as questões são importantes. Esse casal está sofrendo. Precisamos melhorar a comunicação e o suporte, além de trabalhar estratégias de manejo do estresse de modo que a adaptação ao tratamento possa ser melhor”, explicou o pesquisador.
De acordo com Zaia, existem duas maneiras de tentar driblar esses conflitos: a resiliência (que é a capacidade de adaptar-se às mudanças significativas na vida) e o suporte social. A resiliência é considerada um fator de proteção porque ela pode moderar a relação entre o estresse e a qualidade de vida, diminuindo os possíveis efeitos adversos do estresse relacionado à infertilidade. E o suporte social, por sua vez, ajuda porque estar cercado por indivíduos que oferecem apoio emocional e prático pode reduzir a carga afetiva da infertilidade e possivelmente aliviar os desafios do tratamento.
Reprodução assistida
A infertilidade é definida como a incapacidade de engravidar após pelo menos um ano de relações sexuais regulares desprotegidas. Os tratamentos de reprodução assistida existem, mas demandam tempo e alto investimento financeiro. Há poucos serviços no Sistema Único de Saúde (SUS) que oferecem esse tratamento – e eles são muito restritivos (impõem limites de idade, por exemplo).
Relatório do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil publicado em março deste ano aponta que o Brasil possui 192 clínicas de reprodução assistida, sendo apenas 11 públicas (6%). O custo de um ciclo completo de fertilização in vitro variava, em 2023, entre R$ 15 mil e R$ 100 mil, dependendo do número de tentativas, do procedimento usado e da localidade da clínica. A clínica envolvida no estudo é uma Organização Social e os pacientes atendidos no local pagam somente pelo custo dos tratamentos, que partem de R$ 3 mil.
Leia o artigo Relationships between work-family conflict, infertility-related stress, resilience and social support in patients undergoing infertility treatment na íntegra.