Aos 75 anos, Mayana Zatz está mais ativa do que nunca: comanda pesquisas sobre células-tronco, doenças genéticas e envelhecimento - e ainda acha tempo para emprestar seu conhecimento para duas startupsNo dia 16 de julho de 2022, Mayana Zatz vai completar 75 anos. Bióloga molecular e geneticista, ela é uma das mais importantes cientistas do país – apesar de ter nascido em Israel, ela adotou a cidadania brasileira. Além de ser seu aniversário, a data é importante porque dá início à aposentadoria compulsória de Mayana como professora da Universidade de São Paulo, onde dá aulas no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências. Exceto pelo pós-doutorado feito nos Estados Unidos, a cientista passou sua vida acadêmica na Cidade Universitária da USP, zona Oeste da capital paulista: graduação em biologia, mestrado e doutorado em genética. É respeitada e admirada por suas pesquisas dentro e fora do Brasil.
A aposentadoria, que segue regras da instituição, acontece quando a pesquisadora está em seu melhor momento. “Nunca trabalhei tanto”, disse numa entrevista por vídeo. Ela demora alguns minutos para contar tudo o que está fazendo atualmente: é professora titular de genética, coordena o CEPID (Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano) sobre células-tronco e o INCT (Instituto Nacional de Células-Tronco) sobre doenças genéticas [ambos financiados pela Fapesp, a agência paulista de amparo à ciência], escreve e publica livros (no ano passado lançou, em parceria com a jornalista Martha San Juan França, “O legado dos genes) e artigos científicos (seu perfil na Wikipédia informa que ela já publicou 377 trabalhos científicos). “Eu terei que me aposentar como professora, mas continuo com as pesquisas. O laboratório continua porque eu tenho verbas. Enquanto eu tiver projeto, posso continuar”, diz.
Pouca gente sabe, por exemplo, que Mayana também está envolvida com duas startups nascidas a partir de pesquisas feitas por seus alunos nos laboratórios da USP. Ela diz que contribui com conversas científicas, na discussão de ideias e que, eventualmente, também faz parte da sociedade. Apoiar jovens cientistas que decidem empreender foi a forma que ela encontrou para segurá-los no país. “Me dá pena ver jovens talentosos sem perspectivas de continuar na carreira científica no Brasil. Muitos estão indo embora. Então, os que quiseram ficar e empreender, dou o maior incentivo”.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista que Mayana Zatz concedeu a Época NEGÓCIOS.
Como surgiu seu envolvimento com as duas startups criadas por pesquisadores sêniores?
Eu acho uma tragédia a debandada de cientistas do Brasil. Toda vez que alguém vai embora, eu choro. Investimos um monte nesses jovens e na hora que eles poderiam dar retorno, vão embora. Eles são mais valorizados lá fora, principalmente pelo jogo de cintura, que é muito importante em pesquisa. Por isso, fico feliz com os que querem abrir uma startup e continuar no Brasil. Alguns me chamaram para participar. Eu ajudo na parte científica e participo da sociedade. Um dos projetos está relacionado às pesquisas de xenotransplante (transplante de órgãos entre duas espécies diferentes, como o fígado do porco em humano).
Quem primeiro pensou em xenotransplante foi o Silvano Raia [doutor pela Faculdade de Medicina da USP e PhD pela Universidade de Londres, é pioneiro dos transplantes de fígado no Brasil; está com 91 anos], que veio me procurar há alguns anos. Ele viu nessa técnica a possibilidade de acabar com as filas de transplantes de órgãos no país. Acontece que os órgãos suínos são muito semelhantes aos de humanos, mas se fossem transplantados hoje seriam rejeitados. É preciso modificá-los, isto é, editar os genes dos suínos para que seus órgãos possam ser transplantados para humanos sem que haja rejeição. Nosso grupo no Centro do Genoma tem a expertise para modificar genes e ele é um supercirurgião. Foi criada então a startup XenoBrasil, que recebeu inicialmente um aporte da farmacêutica EMS e da FAPESP. Nesse momento estamos iniciando uma nova fase do projeto, junto com o IPT, para criação de animais em ambiente totalmente estéril, uma “pig facility”. Para isso, esperamos receber recursos do governo de São Paulo e da FAPESP.
E a outra startup?
Também nasceu de uma pesquisa realizada no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL). A gente descobriu que o vírus da zika pode ser um grande aliado na destruição de tumores cerebrais. A aplicação sistêmica de três injeções com vírus zika em camundongos com tumores no cérebro mostrou-se capaz de destruir o câncer sem provocar lesões neurológicas ou em outros órgãos, aumentando a sobrevida dos animais. Ou seja, o inimigo virou nosso aliado. A startup Vyro está buscando investimentos internacionais para expandir essa pesquisa. O objetivo é conseguir um tratamento inovador para tumores cerebrais agressivos e para os quais não há alternativas terapêuticas. Isso é tudo muito novo, está na fronteira do conhecimento.
Você tem reputação internacional e pesquisas relevantes que interessam a outros países. O que a faz ficar no Brasil?
Eu tomei essa decisão quando terminei meu pós-doutorado nos Estados Unidos [Universidade da Califórnia]. Eu e meu ex-marido tínhamos uma oferta para ficar, mas preferimos voltar. O primeiro motivo é que lá eu seria mais uma e, no Brasil, poderia fazer mais diferença. O segundo motivo é que nossos dois filhos eram pequenos e eu não gostava de como as crianças por lá são competitivas. Eu cheguei a ver criança de 6 anos com úlcera por causa dessa mentalidade. Não queria isso para os meus filhos. E nunca me arrependi de ter voltado, apesar de todas as dificuldades.
Como você financia as suas pesquisas?
Eu tenho muita sorte de estar em São Paulo, pois consigo financiar projetos de longo prazo pela Fapesp. E essa tem sido a minha maior fonte de recursos. A gente tem algum dinheiro do governo federal, mas é muito pouco em comparação. E em 2020, pela primeira vez, eu consegui dinheiro privado: a JBS aprovou um projeto do CEGH-CEL para pesquisas sobre a covid-19. Eu submeti dois projetos, e consegui R$ 1 milhão [em 2020, a JBS anunciou que estava destinando R$ 50 milhões para pesquisas científicas sobre o vírus]. Um dos projetos desenvolveu o teste RT-Lamp, capaz de identificar a covid-19 pela saliva, uma alternativa ao RT-PCR. O outro foi um estudo de casais discordantes, aqueles em que um foi infectado e apresentou sintomas e o outro permaneceu assintomático.
Como as empresas privadas podem apoiar a ciência no Brasil?
Aqui na USP, elas podem contribuir com a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo - FUSP, com a Fundação da Faculdade de Medicina e tantas outras que apoiam pesquisas. Em ciência, é preciso acreditar na importância do trabalho a longo prazo.
Qual é a proposta do Projeto80mais?
A ideia do 80mais é coletar amostras de pessoas com mais de 80 anos, saudáveis e ativas, para ter um banco de dados da nossa população e também para poder entender o que faz uma pessoa envelhecer e permanecer saudável, tanto do ponto de vista cognitivo quanto do ponto de vista físico. Ainda não temos respostas pois, para você ter uma ideia, cada genoma humano tem mais de três bilhões de pares de bases. E nós estudamos 1.300 genomas até agora. Consegue fazer as contas?
Não consigo, eu sou de humanas...
Por enquanto, temos conclusões do ponto de vista social, tiradas a partir de entrevistas com octogenários, nonagenários e centenários. Uma das coisas em comum é a alegria de viver. A conversa é uma delícia, pois eles são otimistas, têm senso de humor, são positivos. Do ponto de vista genético, ainda estamos estudando. Já sabemos que a nossa população, que é muito miscigenada, pode trazer dados diferentes dos encontrados em bancos de genomas internacionais, que contém só genomas de europeus. Para você ter uma ideia, nós descobrimos 2 milhões de variantes genéticas que não estavam nos bancos internacionais por causa da nossa mistura racial. Qual a importância disso? Vou dar um exemplo: existe uma mutação que é descrita nos bancos internacionais como responsável pelo câncer de mama hereditário, o mesmo detectado na atriz Angelina Jolie. A mãe, a avó e a tia materna dela tinham essa mutação.
Pois nós achamos essa mesma mutação numa pessoa da nossa base de idosos: uma senhora que tinha 93 anos e que nunca teve câncer na vida. Ela faleceu com 95 de outras causas. Isso mostra que uma mesma mutação responsável pelo câncer hereditário na população europeia, na nossa população pode atuar de forma diferente. A descoberta traz um impacto muito grande no aconselhamento genético. Antes, se eu tivesse descoberto essa mesma mutação numa mulher jovem, eu diria que ela tinha alto risco de vir a desenvolver câncer de mama e deveria pensar em medidas preventivas. Agora, estamos iniciando um projeto só com centenários.
Pode falar mais sobre esse projeto?
Vamos estudar como funcionam os neurônios das pessoas que passam dos 100 anos e mantêm a capacidade cognitiva - como funcionam suas células musculares, suas células dos vasos sanguíneos. Por meio de técnicas de reprogramação de células do sangue, eu posso gerar músculos e neurônios, entre outros, para estudá-los em laboratório. E continuamos coletando DNA, só que agora quero pessoas com mais de 90 anos. Oitenta ficou jovem, há muitos. O mais velho do banco tem 106 anos, mas já coletamos gene de uma senhora de 114 anos e dois senhores de 110.
Como ficaram suas pesquisas na pandemia?
Quando veio a pandemia, minha pergunta foi: como as pessoas mais velhas, que são as mais vulneráveis ao vírus, vão resistir? Conseguimos 100 amostras de sangue de pessoas com mais de 90 anos que tiveram covid-19, mas se curaram ou ficaram assintomáticos. Dentre elas, estavam 15 centenários. Quando me perguntavam como um centenário conseguiu sobreviver ao coronavírus, eu respondia que era exatamente por serem centenários. Eles têm genes que os protegem de qualquer desaforo do ambiente. Agora, queremos entender quem são esses genes protetores, como eles atuam.
O que você quer dizer com desaforos do ambiente?
A pirâmide se inverteu. A população do mundo inteiro está envelhecendo, apesar da poluição, estresse, trânsito e outras características do mundo moderno, às quais chamo de desaforos do ambiente. Com os avanços da medicina, com certeza, teremos mais pessoas vivendo mais de 100 anos. A expectativa é que as crianças que estão nascendo agora vão ter uma chance enorme de passar dos 100. Espero que as nossas pesquisas ajudem essas pessoas a envelhecer com saúde.
Você quer passar dos 100 anos?
Sim, se ainda conseguir ser útil. Eu quero viver enquanto puder ser útil. No ano passado, perdemos uma de nossas idosas com 106 anos, estava super lúcida, morreu dormindo. Quando falei com ela em abril, no aniversário de 106 anos, ela disse que estava cansada de ficar presa em casa por causa da pandemia, mas que, apesar de tudo, não podia se queixar pois sabia que tinha muita gente passando necessidade. Chegar aos 100 anos lúcida é uma coisa boa. Até agora não senti nenhum sinal do envelhecimento.
O que você faz para cuidar do físico?
Atualmente, ando pelo menos 5 km por dia, a passos rápidos. Também estou fazendo pilates duas vezes por semana. O pilates reforça a musculação e o equilíbrio. Eu tenho muita energia, não sinto cansaço ou necessidade de parar. Não sei por quanto tempo ainda terei essa energia para fazer tudo o que eu gosto. Tenho uma alimentação saudável. Não como carne, porque não suporto a ideia de matar um animal para comer. Quando eu era criança, vi matar um carneiro, fiquei tão impressionada que nunca mais consegui comer carne. Como muitas frutas, cereais, iogurte porque gosto dessas coisas.
Você sente alguma dificuldade na sua produção provocada pela idade?
Olha, quando me comparo com jovens, vejo que eles têm muito mais facilidades com internet, com os gadgets. Os jovens já nasceram conectados, enquanto nós tivemos que ensinar nosso cérebro a trabalhar com isso. Mas envelhecer tem suas vantagens. Com a experiência, você consegue fazer mais conexões: às vezes vejo jovens focados numa coisa, e eles só veem aquele pedacinho, naquele problema. O fato de ter vivido mais, de ter experiência, me ajuda a conectar mais ideias.
Como vai ser sua aposentadoria da USP quando completar 75 anos?
Eu vou ter que me aposentar como professora, da parte burocrática, que vou achar ótimo, mas continuo com as pesquisas. Enquanto eu tiver projeto, posso continuar. Tenho um monte de alunos desde a iniciação científica ao pós-doutorado que vou continuar apoiando. O laboratório continua porque eu tenho verbas.
Pelo que falou até aqui, você não tem planos de parar de trabalhar e curtir a vida?
Não, de jeito nenhum. Eu não bordo, não pinto, não sei fazer nada, o que vou ficar fazendo em casa? Enquanto eu tiver energia e cabeça, vou continuar fazendo pesquisa. Eu tenho três projetos que eu julgo muito importantes para os próximos anos. O primeiro é o da zika, com o qual queremos começar a tratar pessoas que têm tumores letais. O segundo é dos xenotransplantes, queremos zerar a fila. E o terceiro é sobre distrofias musculares, pois temos a expectativa de ter descoberto um gene protetor; tem um aluno meu trabalhando nisso nos EUA e um grupo inteiro na USP. Então, tenho coisas para fazer.
PROFISSIONAIS 50+
Mayana Zatz, 74 anos
Atividade atual: professora titular de Genética do Instituto de Biociências e coordenadora do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP)
Maior orgulho da carreira: “Consegui formar pessoas mais inteligentes e mais bem preparadas do que eu”
Qual a vantagem de ter a idade que tem hoje: “Ter a sabedoria para valorizar as coisas que realmente têm valor”
O que sabe hoje que gostaria de ter sabido aos 40: “Não me preocupar com bobagens que não valem a pena”
Conselho ao jovem de 20: “Não desista dos teus sonhos, lute por eles e não se preocupe tanto em ganhar dinheiro agora.”Mayana Zatz faz pesquisas com doenças genéticas e dá aulas no Departaento de Genética da USP (Foto: Thinkstock) (Foto: )