O trabalho está na raiz dos maiores avanços e dilemas da civilização. A história prova que, embora sempre tenha feito parte da natureza humana, é inerentemente instável, com modelos que se transformaram radicalmente ao longo do tempo. Nas sociedades tribais, o trabalho respondia a um ímpeto de sobrevivência, quando homens tinham que caçar seu próprio alimento e construir suas próprias vilas.
O conceito evoluiu de formas distintas em diferentes culturas, como na Grécia Antiga, onde trabalhar era mal visto e o ócio era o ativo mais valorizado. Na passagem da idade média para a moderna, com a ascensão das religiões protestantes, trabalho virou sinônimo de "vocação divina'; processo que, segundo estudiosos, pode ter acelerado o desenvolvimento do capitalismo. No modelo industrial, séculos depois, passou a ocupar uma parte ainda mais significativa da rotina das pessoas, moldando seu estilo de vida e identidade, mas ainda ligado principalmente à troca da atividade produtiva por salário. Foi só em décadas mais recentes que "trabalhar por paixão" se tornou algo aspiracional, com processos digitalizados e diferentes caminhos de entrada e transição na vida profissional. O momento atual, porém, é permeado pelo desemprego e pela instabilidade econômica, além da iminência do envelhecimento da população e de transformação tecnológica de diversos setores pela inteligência artificial.
Ao mesmo tempo, nunca houve tantas oportunidades para uma carreira flexível, seja pelo empreendedorismo ou novas relações trabalhistas. Esse cenário provoca profissionais de diferentes níveis hierárquicos a repensarem o futuro de suas carreiras, enquanto empresas passam a rever suas estruturas organizacionais. Para se aprofundar no tema, Meio Mensagem apresenta, nas quatro edições semanais de janeiro, o projeto especial Futuro do Trabalho, que inclui uma pesquisa proprietária idealizada pela publicitária Cintia Gonçalves e pelo consultor de inovação e consumer insight Diego Selistre, da SEL Histórias de Comportamento.
O estudo, realizado de outubro a dezembro de 2019, mesclou metodologias qualitativas e quantitativas, com o objetivo de entender o que pensam profissionais iniciantes e seniores sobre o universo do trabalho. Na parte qualitativa, foram realizados cinco grupos de discussão em outubro de 2019, em São Paulo: dois com jovens da geração Z (entre 18 e 25 anos), que têm até cinco anos de atuação em diferentes indústrias; dois com profissionais da geração X (entre 40 e 60 anos), que acabaram de passar por uma transição de carreira; e um com profissionais da geração X com carreiras estáveis e, no mínimo, dez anos de atuação no mercado em que trabalham atualmente. Na etapa quantitativa, realizada pelo Instituto Qualibest, 428 pessoas responderam online, de 3 a 13 de dezembro, sendo 201 participantes com idades de 18 a 25 anos e 227 com idades de 40 a 60 anos - nos dois casos, de ambos os sexos, pertencentes às classes A, B e C, de nível superior (completo ou não), moradores do estado de São Paulo e trabalhadores de companhias privadas, profissionais liberais, autônomos ou sócios de empresas. Neste especial de quatro capítulos, Meio Mensagem apresentará os resultados do estudo, apontará tendências para o futuro do trabalho e analisará aspectos como o impacto das mudanças demográficas sobre os empregos; a evolução das relações de trabalho, com formatos flexíveis; competências e profissões emergentes; e a importância do equilíbrio mental em um contexto de pressões crescentes. Neste primeiro capítulo, o foco são as expectativas das gerações Z e X em relação ao trabalho no futuro, assim como diferenças entre elas no ambiente profissional. A perspectiva de mudanças e a incerteza afetam profissionais de diferentes idades. O aumento da longevidade da população, neste contexto, é o primeiro aspecto que pesa nos planos dos profissionais.
Em 2030, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil terá a quinta população mais idosa do mundo. Além disso, entre 2012 e 2018, o número de brasileiros com 65 anos ou mais subiu 26%, chegando a 21 milhões de pessoas. Se a vida de uma pessoa antes seguia uma trajetória relativamente homogênea, a tendência é que carreiras se tornem cada vez menos lineares. "A vida antes era dividida entre educação, trabalho e aposentadoria. Com o aumento da longevidade, isso se desorganiza, pois aos 60 anos uma pessoa pode estar voltando a estudar, e competindo por uma vaga na faculdade com uma pessoa de 20. Ao mesmo tempo, um profissional de 45 anos pode se tornar aprendiz depois de mudar de carreira, da mesma forma que uma pessoa mais jovem'; afirma Cintia Gonçalves, idealizadora da pesquisa. Por um lado, o maior acesso à informação abre novas possibilidades de estudo, e por outro, a reforma da previdência estimula que profissionais trabalhem por mais tempo. Assim, eles passam a, cada vez mais, vivenciar carreiras multifacetadas, nutrindo diferentes profissões e relações com várias empresas ao longo da vida. Esse movimento, no entanto, impõe desafios para todas as gerações. Cursar o ensino superior, pós-graduação e trabalhar em uma única empresa pela maior parte da vida, trajetória comum entre profissionais mais velhos, muito provavelmente será exceção entre os trabalhadores do futuro.
"A expectativa da geração X era ter um bom trabalho a vida inteira - ter sua casa, carro e estabilidade -, em um roteiro super claro e linear. A geração mais jovem muda de smartphones e plataformas o tempo todo, e isso cria uma nova lógica transitória: as pessoas não querem mais ficar 15 anos no mesmo trabalho até terem uma boa remuneração e se desenvolverem'; diz Juliano Costa, vice-presidente de educação da Pearson, multinacional britânica facada em educação. A psicóloga Marina Segnine, especialista em orientação profissional, afirma que o trabalho tem valores diferentes para cada geração. Gerações maduras, por exemplo, o encaram como pilar construtor de suas vidas. "Os mais velhos acreditam que é o trabalho que vai lhes dar identidade e fazer com que sejam reconhecidos socialmente. Já os mais jovens tendem a ter outras referências de sucesso'; explica, citando como exemplos os youtubers, que se construíram longe de instituições formais. "A geração mais jovem, embora carregue o discurso da carreira linear, não vê tanto valor no penar do trabalho, pois acredita que a evolução pode acontecer de outras formas e sabe que talvez essa carreira linear não se concretize'; diz. Na parte quantitativa da pesquisa, 62% dos respondentes, considerando diferentes faixas etárias, disseram acreditar que poucas empresas terão estabilidade e empregos de longa duração.
Desafio em comum
Apesar das visões divergentes, profissionais experientes ou mais jovens devem se preparar para um futuro de constantes atualizações e transições de carreira. O ponto comum, não importa a geração, é a dúvida. A pesquisa Futuro do Trabalho mostra que profissionais esperam um mercado de trabalho ainda mais incerto no futuro: 52% dos respondentes da fase quantitativa dizem não saber quais profissões existirão ou deixarão de existir. "Acho que teremos um futuro bem desafiador, que vai exigir que as pessoas se transformem o tempo todo para se adequar às novas demandas'; afirma a analista jurídica Bárbara Campioni, de 24 anos, uma das representantes da geração Z nos grupos de discussão da fase qualitativa. O investimento de empresas na automação de processos também é uma preocupação para os trabalhadores ouvidos.
"As empresas sempre vão pensar em fazer mais com menos, tendem a investir mais em especialistas e cortar gastos Vão investir em tecnologia e reduzir o número de pessoas'; projeta outro participante, o analista de vendas Vinicius Cardoso Almeida, de 24 anos. Segundo o estudo quantitativo, 71% das pessoas acham que empresas terão menos funcionários no futuro. Para Ana Paula Assis, presidente da IBM para América Latina, profissionais não devem focar tanto nas profissões que surgirão ou deixarão de existir, mas entender que 100% delas serão modificadas pela tecnologia. "Se você é um médico, um jornalista ou um profissional de marketing, vai ter que aprender como usar novas ferramentas. Todo mundo vai precisar se capacitar, em maior ou menor grau, e isso realmente passa por um desafio grande'; diz (veja a entrevista nas páginas 34 e 35). Cintia Gonçalves diz que a insegurança em relação à empregabilidade é também resultado de um processo histórico recente, iniciado com a crise de 2008 e acirrado com o alto índice de desemprego desde 2015.
"O profissional mais novo provavelmente viu alguém de sua família perder o emprego, e o mais velho já se deparou com essa ameaça em algum momento'; contextualiza. Entre profissionais da geração X, a pesquisa detectou o medo de serem substituídos pelos mais jovens e de não conseguirem acompanhar a tecnologia. Metade dos profissionais consultados na parte quantitativa acham que a juventude será muito mais valorizada do que a experiência. Quando questionados sobre os sentimentos que associam ao futuro do trabalho, 58% apontaram a curiosidade e esperança, e outros 41%, a preocupação. Já entre os mais jovens, há uma ansiedade relacionada ao desconhecido. A geração Z também apontou a curiosidade como o principal sentimento associado ao futuro do trabalho (58%), seguida da ansiedade ( 48%) e esperança ( 46%). "Será que vou conseguir ser boa o suficiente e conseguir estudar o necessário para conseguir crescer na carreira? Fazer o básico já não serve mais, e isso me assusta um pouco. As pessoas antes tinham uma visão mais fechada do trabalho, e agora vão ter que ter uma visão muito mais ampla'; opina a advogada Camila Conte Cardoso, de 23 anos.
Como consequência da longevidade e da carreira não-linear, outra tendência do mercado é valorizar cada vez mais a vivência e experiências profissionais diversas das pessoas, em detrimento de títulos hierárquicos. "Veremos profissionais jovens e outros mais experientes competindo pelas mesmas vagas'; projeta Cintia Gonçalves. A mesma visão é compartilhada pelos respondentes da pesquisa: 63% disseram acreditar que o futuro será de alta competitividade, e que muitas pessoas lutarão pelas mesmas vagas. Na flor da idade Em um exercício projetivo do estudo, profissionais das gerações X e Z foram convidados a se descrever, citar suas qualidades, defeitos profissionais e o que mudariam em suas empresas. Os participantes da geração Z se auto denominaram ágeis e adaptados à tecnologia, porém imediatistas e estressados. "Na minha experiência com essa geração, percebo que eles não veem o trabalho como algo construído cotidianamente, dia após dia'; avalia a psicóloga Marina Segnine. Sobre o ambiente corporativo, gostariam de ter mais flexibilidade e reconhecimento dos mais velhos, além de desejarem maior integração e contato com pessoas de outras áreas.
Também há uma crítica ao que consideram ambientes tóxicos, com rotinas cansativas demais ou culturas pouco receptivas à diversidade. No futuro, esperam ter mais abertura para serem quem são no trabalho. "As pessoas vão ter mais liberdade de ser realmente quem são e colocar a personalidade delas no que elas estão fazendo'; afirma Diogo Pereira Silva, assistente contábil, de 22 anos, participante dos grupos de discussão. A geração X, por outro lado, se vê como determinada e madura. Porém, se considera pouco paciente, além de ter maiores dificuldades tecnológicas. "O elemento mais complexo para os mais velhos é incorporar a tecnologia, trocar de softwares como quem troca de camisa, como fazem os mais jovens. Porém, esse desafio tem muito mais a ver com a atitude do que com o conteúdo em si'; afirma Juliano Costa, da Pearson Brasil. Nesse grupo, profissionais em posições estáveis dizem se considerar acomodados e com medo de arriscar, mas também gostariam de mais flexibilidade e processos mais simples nas empresas onde trabalham. Aqueles que acabaram de passar por uma transição de carreira sentem-se bastante otimistas e motivados em relação ao futuro.
Sob o olhar do outro Nos grupos de discussão, quando perguntados sobre sua percepção sobre a outra geração, participantes da geração Z afirmaram que a geração X é mais burocrática, e, por vezes, não respeita a informalidade e autenticidade dos mais jovens. Também não acreditam que, necessariamente, profissionais mais velhos podem ajudá-los com as demandas do futuro. "Nossos pais, por mais que tenham experiência, não tiveram que lidar com as mesmas coisas'; pondera a jornalista Beatriz Mateus de Oliveira, de 23 anos. A geração X, por sua vez, vê os mais jovens como muito ansiosos, criticando o ritmo rápido com o qual querem crescer. Também gostariam que valorizassem mais sua experiência. "A perspectiva deles é a do imediato. Eles já entram na empre sa pensando que amanhã vão conseguir uma nova posição'; afirma a empresária Mariane Cardoso Macedo, de 42 anos. Na fase quantitativa da pesquisa, 38% das pessoas da geração Z disseram acreditar que as gerações ainda terão dificuldades em entender umas às outras daqui a 20 anos, em 2040, mas que trabalharão bem juntas em alguns projetos.
A geração X é mais otimista: 37% acredita que profissionais de diferentes idades se entenderão bem, e que suas experiências se complementarão. Considerando a amostra total da pesquisa, porém, apenas 7% dos profissionais consultados acreditam que as diferentes gerações trabalharão perfeitamente juntas no futuro. Um dos esforços das empresas atualmente está em garantir que o conhecimento dos profissionais mais experientes não se perca. Outra pesquisa, da consultoria de recursos humanos Robert Half, descobriu que gestores atuais estão preocupados com a saída de profissionais mais experientes do mercado. Realizada em janeiro de 2019 com 508 executivos brasileiros, a pesquisa identificou que 34% deles se dizem "muito preocupados" com a saída de baby boomers do mercado - aqueles nascidos entre 1940 e 1959.
Apesar disso, 59% já buscam desenvolver equipes multigeracionais e 50% criaram programas de mentoria para aproximar diferentes perfis. Afinal, o futuro do trabalho exigirá que empresas saibam unir talentos de diferentes gerações - o que deve ser encarado como uma oportunidade, em vez de um conflito. "O que um profissional de 20 anos deseja é diferente do que quer um profissional com 40 anos. O desafio é entender o que é valor para cada um deles'; avalia Levi Girardi, CEO da consultoria de design Questtonó. Além das equipes multigeracionais, a consultoria busca manter um diálogo franco com todos os colaboradores, para que possam expor abertamente suas críticas e demandas. "Todas as sextas, todo mundo da empresa se reúne e as pessoas podem falar do que quiserem, seja um projeto, uma relação de horários ou qualquer outro temam, de forma aberta. Conseguimos resolver muitas coisas com essas conversas, sem ter que levar para a diretoria, por exemplo'; exemplifica, argumentando que esse tipo de processo ajuda a reduzir as distâncias entre profissionais mais jovens e mais velhos. Além disso, a mentoria cruzada entre profissionais mais velhos e mais jovens tende a ser cada vez mais valorizada nas empresas.
"Como diria Voltaire, não há um sábio que não possa aprender e um ignorante que não possa ensinar. Tem havido muita troca entre pessoas jovens que buscam mentoria, aproveitando a experiência e conhecimento dos mais velhos, e profissionais mais velhos que querem absorver o pensamento inovador e experiência dos mais jovens'; considera Juliano Costa, da Pearson. Talvez a única certeza para o futuro seja que as diferentes gerações podem evoluir juntas, deixando de lado as diferenças para desbravar o novo mercado de trabalho.
Tecnologia humanizada
O futuro do trabalho exigirá das empresas responsabilidade com o uso da tecnologia e comprometimento com a recapacitação da força de trabalho. "Empresas terão um papel protagonista em acelerar a capacitação, mesmo porque há áreas em que, se não participarmos do passo de aprendizagem, teremos impactos na evolução da tecnologia", afirma Ana Paula Assis, presidente da IBM para a América Latina. A executiva personifica a versatilidade que é cada vez mais exigida de profissionais em vários setores, e por isso mesmo acredita que empresas e indivíduos tendem a ser mais plurais, combinando competências técnicas e humanas. Em entrevista ao Meio Mensagem, ela falou sobre as parcerias de capacitação da IBM junto a agentes públicos, universidades e iniciativa privada, da estratégia de inclusão da companhia e dos dilemas éticos de se estar em uma das principais empresas de tecnologia do mundo.
Meio Mensagem- Você está há quase 25 anos na IBM, veio de uma área técnica, a ciência da computação, e depois migrou para posições estratégicas. De que forma essa experiência múltipla contribui para o trabalho como Líder da operação Latinoamericana?
Ana Paula Assis - Tive uma formação muito técnica, mas minha primeira oportunidade já foi na área comercial e de vendas. Sou de Goiânia, comecei na IBM de lá e fui transferida para São Paulo. Desenvolvi uma carreira na área comercial muito facada na indústria financeira, tive vários clientes do setor bancário, operadoras de cartão de crédito e seguradoras dentro desse segmento. Quando fui para Nova York, tive a oportunidade de ver a companhia pela ótica do centro de decisão. Na volta, fui para a área de serviços, que na época passava por um processo de reestruturação grande. Estávamos começando a ver a indústria se movimentar de um modelo de infraestrutura de tecnologia dedicado para um modelo mais compartilhado e virtualizado. Depois, quis ir para a área de software, porque achava que o futuro da companhia realmente estaria ali. Naquele momento, a IBM fazia praticamente uma aquisição a cada mês. Fiquei nessa posição por mais ou menos quatro anos e surgiu a oportunidade de ir para a China, que estava deixando de ser um país copycat para se transformar em um país que realmente desenvolve tecnologia de ponta, e isso obviamente era uma oportunidade para nós. Ter passado por diversos mercados em diversas regiões me ajuda a ter um olhar multifacetado. Temos uma presença muito longeva na América Latina, é um mercado com potencial de crescimento e que adota tecnologia com uma velocidade muito grande, e isso torna a minha vida um pouco mais fácil.
MM- Em que estágio está o Brasil no desenvolvimento de capital tecnológico? Quais tecnologias emergentes têm se mostrado mais aderentes ao nosso mercado?
Ana Paula- Vemos claramente um processo de adoção de soluções em nuvem nas empresas. Todas as indústrias estão passando por um processo forte de transformação digital e reinventando seus modelos de negócios. A América Latina e o Brasil, especificamente, não estão distantes do que acontece no resto do mundo, no sentido de que as empresas têm entendido que precisam olhar para dentro de seus processos e estruturas para fazer transformações muito profundas. Também há cada vez mais clareza da importância de ter um modelo de colaboração e inovação aberto, que permita trocar experiências e negócios em um ecossistema. Nunca vimos urna atividade tão intensa de fundos de venture capital e private equity vindo e retornando ao Brasil. Todos estão vendo a possibilidade de criação de ecossistemas de inovação, porque o País tem muitos problemas para resolver, assim como todos os países emergentes, e isso se apresenta realmente como uma grande oportunidade. Com tecnologia, você consegue resolver muitos problemas complexos de maneira mais eficiente.
MM-Você é a primeira mulher a liderar a operação da IBM na América Latina, mesmo vinda de uma área onde a presença de homens ainda é maior, principalmente em cargos de liderança. Quais são as políticas de inclusão da IBM na área de tecnologia?
Ana Paula-A primeira política oficial de inclusão da IBM é de 1933. Desde a criação da IBM, um dos valores da empresa já era o respeito ao indivíduo e o olhar para as pessoas independentemente de raça, gênero ou credo. Mais recentemente, urna das coisas que procuramos fazer é criar formas de tornar o trabalho na operação mais flexível, especificamente olhando questões de gênero. Um dos momentos mais cruciais para as mulheres é quando voltam da licença-maternidade e questionam o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional, e, por isso, temos pensado em maneiras para tornar esse momento mais flexível para que elas possam se adaptar a essa nova vida.
Também decidimos conceder a licença paternidade de 30 dias para os homens. Na parte de treinamento de mulheres, temos uma parceria com uma ONG, chamada Laboratória, que tem o objetivo de dar capacitação técnica às mulheres e fazer um mapeamento das profissionais do mercado. Temos também os grupos de diversidade para olhar as necessidades específicas de cada grupo, como para discutir questões LGBT, questões raciais e para pessoas com deficiência. Fizemos um trabalho muito bacana com a Specialisterne para trazer para dentro de casa o tema da neurodiversidade. Acabamos de contratar nossa primeira turma de pessoas com autismo, em Hortolândia: 20 pessoas que estamos trazendo para a área de TI para desenvolver tecnologia. No fundo, um dos grandes problemas que empresas têm queresolver é sobre como ter acesso a talentos. Para nós, a diversidade, além de todo o seu impacto social e moral, é uma questão de negócio. Temos um déficit enorme de recursos capacitados na indústria de tecnologia, e a projeção para 2020, segundo a consultoria IDC, é a de que teremos quase 600 mil posições de TI em aberto na América Latina. Não dá para resolver essa lacuna das formas tradicionais. Então, buscamos oportunidades de identificar e capacitar talentos para trabalhar conosco. Também treinamos os nossos times gerenciais para criar um ambiente onde as pessoas venham trabalhar sabendo que podem ser 100% elas mesmas, pois serão aceitas como são.
MM-Uma das discussões sobre o futuro do trabalho gira em torno da automação e das novas habilidades que serão exigidas dos profissionais. Como vê o desafio darecapacitação da força de trabalho?
Ana Paula- Esse tema é interessante. Como estou há muito tempo nessa indústria, dá para fazer alguns paralelos com o passado. Quando o computador começou a chegar nas empresas, ninguém sabia trabalhar com ele e encontrar programadores era muito raro. Naquela época, fizemos um trabalho enorme de treinar pessoas, e as universidades também começaram a criar cadeiras de computação. A turma de Ciência da Computação na qual estudei foi a quarta turma da Universidade Federal de Goiás. Era uma disciplina muito nova e tivemos que criar todo esse conhecimento que não existia. Com o advento da Inteligência Artificial, tecnologias de automação e IoT, teremos que fazer a mesma coisa, recapacitar as pessoas, só que agora a diferença é maior.
Os computadores antes ficavam numa sala isolada e só um conjunto de pessoas especializadas trabalhavam com eles. Hoje há uma simbiose completa entre tecnologia e negócios. Não focamos tanto em quais profissões vão deixar de existir ou surgir, mas no entendimento de que 100% das profissões serão modificadas pela tecnologia. Se você é um médico, um jornalista ou um profissional de marketing, vai ter que aprender como usar novas ferramentas como aliadas para desenvolver o seu trabalho. Todo mundo vai precisar se capacitar, em maior ou menor escala, e isso realmente passa por um desafio grande. Fizemos um estudo com a Universidade de Oxford e nossa projeção é de que mais ou menos 120 milhões de pessoas terão que ser retreinadas nos próximos três anos, nas doze maiores economias do mundo, por conta da inteligência artificial.
MM-Como vê a responsabilidade das grandes empresas diante da necessidade de capacitação em massa?
Ana Paula- Você não pode esperar que o governo resolva essa questão sozinho, ou que a academia resolva o problema. Empresas vão ter um papel muito protagonista de acelerar esse processo de capacitação, mesmo porque há certas áreas em que, se não acelerarmos o passo de aprendizagem, vamos começar a ter impactos na própria evolução da tecnologia. Quando olhamos para cibersegurança, por exemplo, é uma área que neste momento tem um déficit de três milhões de profissionais no mundo inteiro. Não dá para pensar em avanços tecnológicos se não tivermos cibersegurança. Para que a gente tenha soluções de impacto, vai ter que ser através de vários agentes.
MM-Como é a articulação da IBM com agentes externos, como governos e comunidade científica, por exemplo?
Ana Paula-Um dos exemplos mais práticos que a gente tem é um programa que se chama Pathways in Technology, ou P-Techs, que estamos desenvolvendo com as escolas públicas. Começamos na Colômbia, em Bogotá, com duas escolas, e hoje estamos com mais ou menos cinco escolas na América Latina. Atingimos 200 estudantes ao longo de 2019, e o plano para 2020 é chegar em 50 escolas e atingir mais ou menos 3,1 mil estudantes. É um modelo de ensino que olha competências técnicas, obviamente, mas também soft skills. Isso tem a ver com o contexto que estamos falando. Hoje, você ensina uma tecnologia e daqui a dois anos ela está obsoleta. Não posso capacitar uma pessoa em uma visão muito estreita, tenho que dar para ela competências para que busque novos conhecimentos depois. Isso tem a ver com soft skills de aprendizado contínuo, criatividade e capacidade de colaboração. As pessoas acham que essas habilidades não são treináveis, mas entendemos que são, através de mentoria e exemplos.
Com esse programa, a gente conecta estudantes com mentores que estão no mundo profissional. Vamos ter que preparar profissionais de uma forma muito mais profunda e mais ampla do que fazemos hoje, e buscamos fazer isso direto na fonte, trabalhando com escolas e treinando professores. Capacitar uma pessoa em uma ferramenta tem valor, mas, no fundo, você está dando um conhecimento muito específico. O que queremos é dar autonomia para que as pessoas possam ser aprendizes a vida toda. É urna visão muito mais de longo prazo e mais profunda do que ensinar tecnologia A, B ou C. Aqui no Brasil, a nossa parceria é com o Centro Paula Souza, que cria muito bem essa conexão entre o poder público e privado. Também vamos construir com a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) um centro de pesquisa para inteligência artificial. No mundo inteiro a IBM se conecta com universidades através de uma rede chamada lA Horizon Network, e o Brasil e a Índia são os únicos países emergentes que fazem parte dessa rede. A ideia é que a gente utilize esse novo centro de conhecimento para entender os impactos que a inteligência artificial terá na nossa economia e as ações que a gente deve tomar para evitar impactos negativos.
MM- Muito se discute sobre o impacto de vieses inconscientes e questões éticas sobre a aplicação da tecnologia. Como vê a responsabilidade ética de empresas como a IBM?
Ana Paula- Esse é talvez um dos pontos de maior foco das nossas pesquisas ultimamente, o de trazer ética e responsabilidade para o uso de inteligência artificial. Temos princípios muito claros sobre IA, e nosso propósito é fazer com que a tecnologia atue para aumentar a capacidade humana, e não a substituí-la. Uma das nossas preocupações está na definição da propriedade do dado. Na nossa visão, os donos dos dados e insights com os quais lidamos são quem os gerou.
A questão do data ownership é muito clara no nosso modelo de negócios, e temos urna preocupação muito grande com a proteção deles, de maneira que você não exponha indevidamente o dono das informações. Finalmente, nos preocupamos muito com como os dados estão sendo utilizados para treinar algoritmos, para garantir que as decisões tomadas por eles não sejam contaminadas por preconceitos. Nesse sentido, desenvolvemos soluções que analisam a base de dados usada para treinar os algoritmos e mapear seu processo de tomada de decisão. Assim, você pode identificar potenciais vieses ou preconceitos embutidos no processo de decisão da plataforma. Entendo que é com tecnologia, princípios e propósito que esses problemas podem ser resolvidos. A regulação da tecnologia é importante, mas ela não anda na mesma velocidade do desenvolvimento tecnológico. Temos que ter princípios bem definidos desde o início, porque, se depois houver algum problema e você quiser consertar lá na frente, já será tarde, pois as tecnologias escalam com uma velocidade muito rápida.
MM- Empresas como IBM, Google, Amazon e Microsoft lideram o registro de patentes em tecnologias de ponta. Como vê esse movimento de concentração tecnológica nas mãos de poucas empresas?
Ana Paula- Teremos uma combinação de empresas muito interessante e muito rica. Se olharmos a história das corporações, não só de tecnologia, vemos que realmente houve momentos em que as empresas que conseguiram criar um ecossistema mais forte foram aquelas que dominam um segmento. O que acho interessante no momento que estamos vivendo é que, se por um lado a gente tem grandes fornecedores de serviços de tecnologia, por outro nunca tínhamos visto uma proliferação tão grande de pequenas empresas e startups trazendo novas soluções e modelos de negócio. A tecnologia está permitindo que você crie um negócio muito rapidamente, com pouco investimento. As barreiras de entrada para criar um novo negócio tendem a ficar muito pequenas com o uso de tecnologia e com a possibilidade de você criar um ecossistema, como vimos com a economia compartilhada. Existe um saldo muito positivo na maneira como os negócios se configuram hoje.