O "Encontro Nacional de Produtores e Usuários de Informações Sociais. Econômicas e Territoriais", que o IBGE estará promovendo no final deste mês de maio, terá como um dos temas centrais a questão do trabalho, que será tratada em uma série de seminários organizados em conjunto com a Associação Brasileira de Estudos sobre o Trabalho (Abet). O Primeiro de Maio, combinado com o aumento das taxas de desemprego nas pesquisas do IBGE e da Fundação Seade de São Paulo, colocou o tema no centro da atenção nacional, dando a impressão de que estamos atravessando uma crise extremamente grave, que colocaria em dúvida os benefícios conseguidos pela estabilização da moeda.
Para entender bem o que está ocorrendo, é preciso distinguir os fenômenos de longo prazo, relacionados com processos mais profundos, dos de curto prazo, relacionados com o comportamento da economia neste momento. O processo de mais longo prazo tem seu lado mais visível na redução progressiva no número de pessoas regularmente empregadas no setor industrial e em outros setores da economia formal, que vem ocorrendo apesar de a produção industrial continuar crescendo. Este processo vem-se dando em todo o mundo de forma mais ou menos intensa, e foi analisado recentemente pelo sociólogo francês Robert Castel (Les métamorphoses de Ia question sociale, Paris, Fayard, 1995), que anuncia o começo do fim da "sociedade assalariada", estabelecida na Europa sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial que criou a expectativa de que todas as pessoas teriam como que um direito natural a um emprego estável. Existe muita discussão sobre as razões desta mudança, que vão dos efeitos da automação ao impacto da globalização e da competitividade em escala mundial. O resultado deste processo, como mostra o exemplo norte-americano, não é necessariamente o desemprego e o estanca-mento da economia, mas sobretudo a privatização do trabalho, com o aumento de pessoas trabalhando por conta própria, a proliferação de pequenas unidades de prestação de serviços, grande rotatividade e insegurança crescente quanto ao futuro. Os altos níveis de desemprego na maioria dos países da Europa, que afetam sobretudo os grupos mais jovens e menos educados, são interpretados, na versão otimista, como problemas de ajuste e acomodação a uma economia mais produtiva e mais competitiva, ou, na versão pessimista, como a criação de grupos sociais "excedentes", que não encontrariam mais espaço em uma economia cada vez mais tecnificada e concentrada.
Algo semelhante parece estar ocorrendo no Brasil, com o agravante de que nossa "sociedade assalariada" nunca conseguiu incorporar mais do que uma pequena parcela da população brasileira. A "Belindia" criada pelo modelo de desenvolvimento concentrado não produziu somente um país rico ao lado de um país pobre, mas um modelo quase utópico de welfare state, consagrado nas nobres intenções da Constituição de 1988, superposto a uma sociedade totalmente desregulada, desprotegida e vitimizada pela estagnação do crescimento econômico e quase falência do setor público ocorrida após o "milagre" da década de 70.
A grande questão que se coloca agora, e que o encontro de maio deverá discutir, é se os dados que estamos captando sobre as transformações do mercado de trabalho apontam para a criação de uma economia mais pujante e eficiente, capaz de produzir mais riqueza e criar condições para ir reduzindo as diferenças entre os beneficiados e os excluídos de nosso welfare state, ou se trata, simplesmente, de um processo irreversível de degradação progressiva de nosso mercado de trabalho.
O que dizem os dados? "Desocupado", na pesquisa mensal do IBGE. é a pessoa do 15 anos e mais que não teve nenhum trabalho na semana anterior á pesquisa, e que esteve ativamente procurando trabalho. Quem não teve nem procurou trabalho está fora da população economicamente ativa - estudantes, aposentados, donas de casa, desalentados. Quando entram mais pessoas no mercado de trabalho, seja trabalhando, seja procurando trabalho, a população economicamente ativa aumenta, mesmo quando a porcentagem dos que não encontram trabalho também cresça. É exatamente o que está ocorrendo. Entre fevereiro e março deste ano, cerca de 240 mil pessoas ingressaram na população ativa nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, e o número de desempregados aumentou em 133 mil. Existe mais gente trabalhando e ganhando dinheiro do que antes, apesar de a taxa de desemprego ser também maior. Outros dados mostram a continuação da redução dos empregados na indústria, o aumento das pessoas que trabalham sem carteira assinada, o aumento de pessoas que trabalham por conta própria, o crescimento do comércio e dos serviços, e o aumento do rendimento médio real para a população ocupada (índice de 112,06 a 124,23 de fevereiro de 1994 a fevereiro de 1996, tomando por base julho de 1994 = 100). Não é um quadro de euforia, mas está longe da catástrofe que a leitura superficial dos dados poderia sugerir.
Os níveis relativamente altos de desemprego resultam de um fenômeno de curtíssimo prazo, que é a variação sazonal do fim do período de férias, e dos efeitos mais prolongados do esforço em manter atividade econômica contida em níveis compatíveis com a estabilidade da moeda. A prazo mais longo, as transformações do mercado de trabalho poderiam estar sinalizando um reordenamento da economia que pode conduzir, a médio prazo, a uma sociedade mais rica e menos desigual do que a que tivemos até aqui, ainda que possivelmente mais fluida e sujeita a incertezas para os estratos mais altos. A redistribuição de renda gerada pela estabilização da moeda foi um passo importante neste sentido, mas esta mudança só se consolidará se a economia reencontrar seu ritmo histórico de crescimento, e se houver um trabalho intenso de qualificação da mão-de-obra nacional, através, sobretudo, da melhoria do sistema de educação pública. É um longo processo, que deve ser acompanhado por políticas específicas de geração de empregos e aumento da cobertura aos setores mais carentes da sociedade.
* Presidente do IBGE
Notícia
Jornal do Brasil