Instituição criada em 1973 para receber arquivo de Getúlio Vargas quer ampliar presença de mulheres e busca novas formas de classificação
Até 1973, a única maneira de ter acesso aos documentos de Getúlio Vargas (1882-1954) para pesquisas acadêmicas era consultá-los na casa de sua filha, Alzira Vargas do Amaral Peixoto (1914-1992). Naquele ano, em carta ao engenheiro-agrônomo Luís Simões Lopes (1903-1994), então presidente da Fundação Getulio Vargas (FGV), Alzira ofereceu o acervo à instituição, acrescentando, “à guisa de sugestão”, que existiam “esparsos em todo o país ou guardados em arcas familiares centenas de papéis importantes para a reconstituição histórica de um período altamente valioso na vida de nosso Brasil, rico em acontecimentos e repleto de vultos eminentes”.
A doação deu origem ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (FGV CPDOC), fundado pela neta do líder político, a socióloga Celina Vargas do Amaral Peixoto. Aos 50 anos, o CPDOC é conhecido sobretudo por resguardar a memória da política brasileira desde 1930, por meio de três iniciativas principais: o Programa de Arquivos Pessoais (PAP), como o de Vargas e outros até então “guardados em arcas familiares”; o Programa de História Oral (PHO), iniciado em 1975 e baseado em entrevistas; e o Dicionário histórico-biográfico brasileiro , cuja primeira edição foi publicada em 1984. A partir de 2003, o CPDOC passou a agregar também o ensino, com cursos de graduação e pós-graduação e a criação da Escola de Ciências Sociais da FGV.
Em 21 de junho, quatro dias antes do cinquentenário da instituição, uma sessão solene na Câmara dos Deputados, em Brasília, homenageou o CPDOC. A sessão foi requerida pela deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), ex-prefeita de São Paulo (1989-1992) e ministra da Administração Federal (1993-1994). No requerimento, Erundina escreveu que a instituição, sediada no Rio de Janeiro, “se consolidou como paradigma de integração entre documentação e pesquisa, divulgação de conhecimento, ensino, conservação documental e preservação do patrimônio histórico brasileiro”.
O caso da própria Erundina é um exemplo de como funciona o centro. Além de ter concedido dois depoimentos, em 2001 e 2010, para o PHO, a parlamentar doou seu acervo pessoal ao CPDOC em 2019, que foi digitalizado e disponibilizado on-line em maio passado. Sua documentação, composta de 14.225 páginas, 342 vídeos e 789 fotografias, também ilustra de duas maneiras as transformações pelas quais as instituições arquivísticas atravessam o momento.
Uma delas é técnica. Quando os documentos de Erundina chegaram ao CPDOC, em meio aos papéis, fitas e fotos havia um elemento ainda pouco frequente no dia a dia dos profissionais da instituição: um HD externo, contendo arquivos de texto, imagem, vídeo e áudio. O conteúdo desse dispositivo, cujo propósito é justamente armazenar informações, impõe alguns desafios para quem vai catalogá-lo, como explica a socióloga Carolina Gonçalves Alves, coordenadora de documentação do CPDOC.
“Sempre digitalizamos os documentos, mas os que já chegam nesse formato trazem novas perguntas. Entre elas, como organizar e preservar um grande volume de documentos digitais? Como lidar com formatos que podem ser descontinuados? A chegada dos documentos digitais traz novos desafios para a gestão, conservação e acesso aos arquivos”, diz Alves. Segundo a socióloga, entre os problemas estão a multiplicidade de formatos e a resolução das imagens. “As fotografias físicas são sempre escaneadas em formatos-padrão de preservação e acesso. Mas, quando a foto é digital, às vezes a resolução é baixa e não pode ser alterada. É importante que o pesquisador esteja ciente disso.”
De acordo com o antropólogo e historiador Celso Castro, atual diretor do CPDOC, a grande transformação tecnológica dos últimos 20 anos, com a crescente digitalização documental e a disseminação da internet e do registro audiovisual, impactou a forma como a produção de acervos e o trabalho de pesquisa sobre eles é realizada. Além dos desafios técnicos, Castro menciona também uma mudança de procedimento introduzida pela pandemia: “Ela pôs em primeiro plano a possibilidade de realizar entrevistas de maneira remota”. Antes, as entrevistas eram sempre presenciais, com raras exceções.
A segunda maneira pela qual o acervo de Erundina sinaliza esse período de mudança no CPDOC é a integração dos documentos de uma liderança política feminina. A medida reflete o esforço por maior diversidade no rol da instituição. Em 2015, seus pesquisadores constataram que, do conjunto de cerca de 230 arquivos pessoais, com mais de 2 milhões de documentos, apenas 11 eram de mulheres. Desde então, o acervo se enriqueceu apenas com arquivos de mulheres: hoje, são 20, de um total de 239, relata Alves. “Os arquivos de mulheres eram muito poucos no total do acervo. É claro que isso pode ser explicado em razão de a elite política brasileira ter sido formada majoritariamente por homens, mas passamos a buscar de forma ativa mais arquivos de mulheres”, observa Castro.
Uma consequência dessa procura foi a mudança realizada naquele mesmo ano na política de arquivos do CPDOC, documento de duas páginas que define o perfil da instituição e orienta a captação de novos arquivos. Onde se lia que o acervo é constituído “por arquivos pessoais de homens com destacada atuação na vida pública brasileira contemporânea”, passou a constar que são de “homens e mulheres”. Além de Erundina, também estão no catálogo, entre outros, os acervos de duas participantes da Assembleia Nacional Constituinte de 1933: a advogada e sindicalista Almerinda Farias Gama (1899-1999), que atuou ali como delegada classista, e a médica Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), primeira deputada federal do Brasil. Gama é a única mulher negra com arquivo pessoal no CPDOC, assinala Alves.
Outra iniciativa foi a criação da Rede de Arquivos de Mulheres (RAM), no ano passado, em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Segundo Alves, a ideia nasceu em um seminário virtual realizado em 2020, durante a pandemia, em que pesquisadoras do IEB-USP relataram preocupações semelhantes com a invisibilidade feminina em seus acervos. “No mapeamento que fizemos nas duas instituições naquele ano, encontramos apenas 37 arquivos ao todo”, recorda a socióloga, uma das coordenadoras da RAM. “Com a rede, pretendemos mobilizar outras instituições a se indagarem sobre essa representatividade.” Hoje o grupo inclui ainda o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles.
Nos arquivos, em geral, o desafio tecnológico e a ampliação dos esforços para incluir mulheres e outros grupos pouco ouvidos vêm convergindo nos últimos anos. Isso provoca transformações até mesmo na documentação já armazenada há mais tempo. Um elemento central da catalogação é o uso de metadados e indicadores, que permitem identificar o que se encontra em cada documento e orientam o trabalho de pesquisadores. No entanto, as palavras-chave utilizadas ao longo das décadas para facilitar a busca nos textos e imagens refletem o cenário em que o arquivo se formou. Por isso, a prevalência de arquivos de homens não é a única marca patriarcal nos acervos: até mesmo as legendas de fotografias podem esconder a presença de grupos como mulheres, pessoas negras e indígenas.
No caso do CPDOC, Alves observa que palavras-chave como “feminismo” ou “direitos das mulheres” não existiam e foram acrescentadas a partir do trabalho de digitalização de arquivos de mulheres, alguns deles guardados na instituição desde os anos 1970. “Hoje, vivemos um momento em que a sociedade civil e os pesquisadores estão fazendo novas perguntas para os arquivos. E essas perguntas têm nos mobilizado a trabalhar as presenças que não víamos. É todo um mundo que se abre e leva as instituições arquivísticas a olhar seus acervos de outro modo”, afirma a socióloga.
Transformações semelhantes, mas não idênticas, afetam uma outra vertente do trabalho do CPDOC: o PHO, criado por iniciativa da socióloga Aspásia Camargo dois anos após a chegada do arquivo de Vargas. A instituição foi pioneira no Brasil em história oral, cujo surgimento, na década de 1940, é atribuído ao historiador e jornalista norte-americano Allan Nevins (1890-1971), que se aproveitou da disseminação de gravadores portáteis.
“Naquela época, a história oral era um método ainda pouco conhecido e valorizado no país”, declara Castro. “O CPDOC foi pioneiro tanto na produção de entrevistas, que geram documentos que são arquivados e depois tornados públicos, quanto na discussão metodológica”, afirma. Em julho deste ano, a instituição sediou o 22o Congresso da Associação Internacional de História Oral, do qual foi uma das criadoras. O centro também publicou em 1990 o Manual de história oral (cuja primeira edição se chamava História oral: A experiência do CPDOC ), da historiadora Verena Alberti. Neste ano, lançou o volume História oral e audiovisual: Experiências do CPDOC , editado por Castro, pela historiadora Vivian Fonseca e pela comunicadora Thais Blank.
As primeiras entrevistas de história oral antecedem a criação do programa. Em 1974, a própria filha de Vargas, Alzira, que exerceu influência política sobre o pai, conversou com os pesquisadores. No mesmo ano, foi a vez do ex-presidente da República Juscelino Kubistchek (1902-1976). Hoje, o programa abriga mais de 2.500 entrevistas e 8 mil horas de gravações, a maior parte transcrita. A partir de 2006, as entrevistas passaram a ser feitas também em vídeo, quando autorizado pelo entrevistado. O Núcleo de Audiovisual e Documentário (NAD), criado nesse mesmo ano, compartilha a equipe, o espaço e os equipamentos com o PHO. “Quando passamos a filmar as entrevistas, renovamos nossa reflexão sobre história oral e audiovisual”, diz Castro.
Segundo a historiadora Vivian Fonseca, coordenadora do PHO, a gravação em vídeo ainda não é plenamente aceita entre adeptos da história oral. Pesquisadores contrários à imagem em movimento consideram que os entrevistados não se sentem tão à vontade perante a câmera quanto com um gravador. Por outro lado, as gravações em vídeo favorecem a produção de documentários e outros produtos para difusão mais ampla. “A integração com o núcleo de documentários levou a uma série de pequenas mudanças em nossa dinâmica”, conta Fonseca. “Podemos, por exemplo, usar mais de uma câmera, o que não é comum na história oral. Além disso, fizemos mudanças no estúdio para deixá-lo mais interessante do ponto de vista estético. E evitamos sons e comentários durante a fala dos entrevistados.”
Entre os produtos audiovisuais recentes do CPDOC está Magia e poder: Fronteiras entre o sagrado e o profano (2019), dirigido por Gyovanna Alves e Lucas Pipolos. O filme se baseia no arquivo da antropóloga carioca Yvonne Maggie, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doado ao CPDOC. Nas décadas de 1970 e 1980, Maggie fez trabalhos de campo em terreiros de umbanda e candomblé no Brasil ( ver Pesquisa FAPESP nº 295
Tanto nos acervos pessoais quanto na história oral, nas últimas décadas o CPDOC ampliou seu escopo, mas manteve a diretriz de se dedicar à história política e social do Brasil republicano. O ponto de partida, contudo, não é a Proclamação da República, em 1889, mas os eventos que, a partir de 1922, culminaram na revolução de 1930. A primeira leva de acervos a chegar ao centro, além da coleção pertencente a Vargas, continha os papéis de seu ministro da Justiça, da Fazenda e das Relações Exteriores Oswaldo Aranha (1894-1960) e de seu ministro da Educação Gustavo Capanema (1900-1985). Segundo o relato de Celina Vargas ao PHO, a intenção foi criar uma instituição para abrigar “um arquivo não de Getúlio Vargas, mas do tempo de Getúlio Vargas”. Mais tarde, esse arquivo inaugural seria também o primeiro do CPDOC a ser digitalizado em 2000. Já a fundação do PHO se pautou no projeto inaugural da instituição, “Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras de 1930 até os dias de hoje”.
Atualmente, os arquivos e entrevistas estão ligados a projetos de temas variados, como futebol, a partir da pesquisa do sociólogo Bernardo Buarque de Hollanda ( ver Pesquisa FAPESP nº 322 ); megaeventos esportivos, patrimônio e política urbana, assuntos investigados por Fonseca; e diplomacia, graças a estudos realizados por pesquisadores de relações internacionais, como Matias Spektor. A chegada do acervo do antropólogo Roberto Da Matta, em 2022, inspirou uma parceria com lideranças do povo indígena Apinajé, para identificar etnias e indivíduos nas fotografias. Após a conclusão das pesquisas, entrevistas e demais documentos são incorporados ao acervo do CPDOC.
Dessa forma, pesquisa e documentação se alimentam mutuamente, conforme consta no nome da instituição. Um dos resultados mais conhecidos da prática é o Dicionário histórico-biográfico brasileiro , projeto iniciado pelos historiadores Israel Beloch e Alzira Alves de Abreu (1936-2023) em 1974. A primeira edição, que saiu 10 anos mais tarde, tinha quatro volumes e 4.493 verbetes. A segunda versão, de 2001, trouxe 6.620 verbetes distribuídos em cinco volumes, além de uma versão em CD-ROM. Finalizada em 2010, a terceira edição está disponível on-line gratuitamente. Dos 7.553 verbetes, 6.584 são biográficos e 969 temáticos, ou seja, relativos a instituições, eventos e conceitos políticos. Para Castro, o dicionário é “o produto de maior impacto público na história do CPDOC”, sendo consultado por pesquisadores, jornalistas e figuras políticas de todo o Brasil.
Em 2007 o CPDOC passou a realizar entrevistas com cientistas sociais. A iniciativa deu prosseguimento a um dos primeiros grandes projetos de história oral realizados pelo centro, de 1977 a 1979, em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep): o mapeamento da produção em ciências naturais no Brasil. Coordenada pelo sociólogo Simon Schwartzman, então professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da própria FGV, a proposta original gerou 69 entrevistas, que foram incorporadas ao acervo da instituição.
Schwartzman relata que não tinha prática em história oral quando se dedicou ao trabalho. “Nas entrevistas, os roteiros eram bem abertos. Perguntávamos sobre a carreira da pessoa, como se interessou pela ciência. O foco estava nas instituições científicas”, lembra. E completa: “O material é muito rico. Algumas entrevistas duravam muitas horas e, nas transcrições, podem chegar a 200 páginas”. O projeto resultou na publicação do livro Um espaço para a ciência: A formação da comunidade científica no Brasil (Companhia Editora Nacional/Finep, 1979), de Schwartzman.
No momento, o sociólogo participa da proposta de criação de um projeto de pesquisa no qual pretende voltar ao tema. “Quero fazer uma rodada de entrevistas com a nova geração de líderes e compará-las com os relatos da geração dos anos 1970, que colhi para o CPDOC”, finaliza.
Livro
CASTRO, C. BLANK, T. e FONSECA, V. História Oral e Audiovisual: experiências do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 2023.