E se nós ornamos com tantos ornatos as Cazas particulares dos moradores, com quanta mais razão o devemos fazer ás Cazas de Deos, e dos seus Santos? E tomara eu que por nenhum modo nelle se consentissem couzas q’ não fossem as mais perfeitas que pudessem ser, e que toda a pessoa que entrasse nellas ficasse dizendo logo: Isto parece Caza de Deos.
Matheus do Couto, Tractado de Architectura, 1631
A tese de doutorado de Rodrigo Almeida Bastos, defendida em 2009 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e orientada pelo professor Mário Henrique Simão D’Agostino, ganhou o prêmio Marta Rossetti Batista de História da Arte e da Arquitetura em 2010 e agora se tornou edição primorosa da Editora da USP (Edusp).
A maravilhosa fábrica de virtudes – O decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822) retrata a arte barroca da antiga Vila Rica, atual Ouro Preto, em Minas Gerais, do ponto de vista do decoro. Em edição quatro cores, papel couchet, o livro encanta pela qualidade das fotos e pesquisa rigorosa. Apresenta a arquitetura e as artes plásticas e pictóricas nas Minas Gerais do século 18, demonstrando ter sido aquele um século muito mais longo do que os cem anos convencionais. De acordo com D’Agostino, o leitor tem diante dos olhos o desafio de uma arqueologia de procedimentos, preceitos e noções basilares referentes aos engenhos fabris das Minas Gerais.
O esplendor – O autor, Rodrigo Bastos, conta que interessava muito ao reino português, à Igreja e também aos colonos congregados em irmandades leigas que a arquitetura se fizesse e se apresentasse com decoro. Esse pensamento foi utilizado em todas as etapas da construção das igrejas barrocas, desde a escolha dos terrenos mais vistosos, aptos, elevados e decentes, a invenção das plantas e a disposição das partes até os últimos procedimentos da ornamentação, talha, escultura, pintura e douramento. “Era recomendável que as igrejas manifestassem em sua aparência o ornato, a dignidade e o caráter capazes de fazer com que toda pessoa, ao adentrar nelas, exclamasse: ‘Isto parece Caza de Deos’”, como escreveu Matheus do Couto no Tractado de Architectura, de 1631.”
As igrejas refletiam a dignidade de seus fiéis, mas também a integridade do reino. “A decência e a maravilha da arquitetura representavam as virtudes da Igreja, do Estado e de seus membros, por tratarem com zelo e piedade as coisas divinas, requisitos com que se manter a concórdia, a ordem e o bem comum”, analisa Bastos. “Além de corresponder à glória de Deus, da Igreja triunfante e da monarquia, o esplendor do aparato arquitetônico excitava os ânimos na fé, na piedade e mais virtudes interessantes de decoro do Estado católico.”
Tanto zelo e dedicação à casa do Senhor justificava-se pelo fundamento teológico de que Deus era a causa primeira, mas também o fim, de todas as coisas. E também porque os colonos ajudavam cotidianamente na materialização da igreja, assim como a Coroa doava terrenos e auxiliava na construção, reforma e nos ornamentos das capelas-mores das matrizes.
As práticas artísticas, a escultura, a talha eram conservadas e continuamente imitadas, dentro de uma mesma devoção, para garantir a manutenção dos costumes através dos efeitos de coerência, decência e verossimilhança ao corpo da arquitetura.
A nave eucarística da Igreja do Pilar, as Capelas do Carmo e de São Francisco, por exemplo, apresentam claramente os efeitos de agudeza e maravilhamento usados na ornamentação, com a intenção de obter aplausos e reconhecimento, destaca Bastos.“A posição, altura, proporção e ornatos deveriam espelhar o decoro do lugar. Assim também é que se regravam adequadamente as hierarquias, as elevações, os degraus, as aberturas, as disposições de retábulos, o caráter em geral dos ornatos, o meio-termo adequado entre o juízo e a fantasia que especificava, conforme o lugar, o tempo e o gosto, as distintas proporções de clareza e estilo, tão diversas, por exemplo, na Matriz Nossa Senhora do Pilar e nas capelas do Carmo e São Francisco.”
A maravilhosa fábrica de virtudes – O decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822), de Rodrigo Bastos, Edusp/Fapesp, 360 páginas