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Meio & Mensagem

Em defesa do espaço público

Publicado em 21 fevereiro 2011

Por Luiz Antonio Cintra

Nascido em Trieste, na Itália, o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim chegou ao Brasil em 1940, aos 12 anos, acompanhado da família. Fugiam da perseguição aos judeus pelo governo fascista de Mussolini, que, entre outras barbaridades, proibia as crianças de origem semita de frequentar escolas e outros locais públicos.

Talvez resida aí a origem da obsessão desse senhor de olhos de menino e raciocínio rápido pela cidade livre. Um local para todos, ricos e pobres, viverem com dignidade.

Em São Paulo, sua obra é vasta. Projetou o Anhembi, o Hospital Albert Einstein, a sede da Fapesp e a do Sesi na Vila Leopoldina, dentre muitas outras edificações. E principalmente dedicou-se a intervir na cidade, que teima em crescer à revelia do bom senso. Para tentar ordenar o caos, articulou o plano diretor que hoje legisla sobre as construções e os usos do solo paulistano.

Na entrevista a seguir, realizada em seu escritório, instalado em uma casa modernista no bairro de Perdizes, Wilheim fala do direito à paisagem urbana, um de seus tópicos preferidos. Também tece críticas e elogios à publicidade e, como sempre, defende o espaço público.

Aos 82 anos, Wilheim prepara mais um livro, a ser publicado em março, no qual volta a refletir sobre a metrópole que o acolheu.

Meio & Mensagem - O senhor fala da paisagem urbana como um direito. Como esse direito tem sido exercido em São Paulo?

Jorge Wilheim - Um urbanista inglês chamado Gordon Cullen escreveu que "uma casa é uma casa. Duas casas já é uma paisagem urbana". Na realidade, é quando se forma a rua, como o cenário de um palco. Então é possível fazer uma análise da cidade pela leitura desses cenários. Só que os cenários estão muito vinculados ao que chamo de sistema de vida. Cada um de nós tem a sua cidade e um sistema de imagens que é do seu cotidiano. Mas se você integra os diversos sistemas de vida, percebe que existem lugares importantes para muita gente, mais importantes do que outros. Também é possível criar cenários, projetá-los ou deixar que eles aconteçam sozinhos. No caso de São Paulo, perdemos muitas oportunidades de ter cenários importantes já que a cidade é cheia de relevos, o que permitiria horizontes amplos. Mas tapamos todos os horizontes com prédios altos, sem pensar que deveria haver brechas para as pessoas terem aquilo que uma cidade de costa tem: ao menos um lado aberto com mais generosidade. A topografia de São Paulo permitiria termos uma paisagem mais generosa, prejudicada pela voracidade do consumo do espaço e por um mercado imobiliário que, atendendo à demanda existente, foi voraz e continua voraz. Não houve planejamento adequado nem força na implementação do planejamento existente para evitar o desperdício de horizontes.

M&M - Há quem diga que a Companhia City foi o único planejador urbano que a cidade de fato teve. É curioso, porque se trata de uma empresa privada moldando a cidade, não do poder público.

Wilheim - Os urbanistas ingleses da City foram trazidos para cá. E vieram com a tradição da "cidade-jardim" criada pelo urbanista inglês Ebenézer Howard. Tinham um respeito muito grande pela topografia. No caso do Jardim Europa e do América, se tratava de ocupar um pantanal, a várzea do rio Pinheiros. Fizeram daquilo uma cidade-jardim no estilo de Howard. No Pacaembu, outro loteamento da City, também tiveram um grande respeito pelas curvas de nível. Os loteamentos feitos no início do século XX, ao mesmo tempo da companhia City, eram, em geral, parcelamentos vulgares. Eram sítios e chácaras que os proprietários parcelavam porque a demanda habitacional do começo do século passado, devido à imigração, era muito grande. Foi assim no Carmo, Mooca, Lapa ou Leopoldina. O Estado não tinha nada. A cidade se urbanizou entre aspas por conta dessas ações individuais.

M&M - O Brasil é a bola da vez. Ao mesmo tempo, somos foco do capital especulativo nacional e internacional, financeiro e imobiliário. Como o senhor vê as cidades brasileiras nessa conjuntura?

Wilheim - Não dá para desligar a questão urbana brasileira do contexto mundial. Vivemos um período de transição. O século XXI poderá ser um século de renascimento com todas as características humanistas ou poderá ir realmente para um desastre maior. Depende de aceitarmos que existe uma crise, econômica e social. E essa crise tem de ser aprofundada para ser superada. Se tentarmos voltar a um capitalismo do tipo do século passado, a coisa não vai dar certo porque as condições todas mudaram. É preciso olhar para frente, ver o que vai acontecer. O capital vai ser partícipe de tudo isso, mas em um novo contrato social. Hoje em dia, para voltar à sua questão, o mercado imobiliário faz e desfaz, lutando contra as regras do Estado, no caso a prefeitura, com uma rapidez de ação muito maior. E está matando a própria galinha dos ovos de ouro com grande voracidade, por meio de uma visão curtíssima, míope. Por isso é importante a sociedade apoiar o Estado em normalizar e limitar o poder do mercado, senão vamos destruir bairro atrás de bairro.

M&M - O senhor foi secretário de Planejamento durante a gestão Marta Suplicy, quando surgiu a chamada Operação Belezura, embrião do projeto mais tarde aprovado pela Câmara, o Cidade Limpa. Como surgiu a ideia de regulamentar a publicidade outdoor na cidade?

Wilheim - O projeto Belezura... bem, quem deu esse nome foi a Marta, quando ainda era candidata...

M&M - Não é um nome muito feliz...

Wilheim - Eu não o usei. Fiz um trabalho sobre intervenções na paisagem urbana de São Paulo, não usei a palavra "belezura" (risos)... Antes de a Marta assumir, fizemos um trabalho mostrando como a paisagem urbana pode ser reconquistada, pode e tem de ser melhorada. E falo de quem intervém na paisagem. E que os anúncios publicitários são parte importante na paisagem, mas às vezes exorbitavam, tapavam coisas só para aumentar o efeito e, portanto, deveriam ser normatizados. Então foi criada uma comissão da Paisagem Urbana, que começou a elaborar uma (proposta de) lei da paisagem. Ao mesmo tempo, na Câmara, a vereadora Miriam Athiê, do PMDB — cujos familiares eram donos de uma empresa de locação de outdoors, um negócio muito bom — se antecipou e fez outra lei, muito permissiva. Tivemos de negociar, não pudemos implantar a lei que pretendíamos e que veio a ser implantada posteriormente pelo Kassab. Mas tínhamos de negociar na Câmara porque o PMDB tinha uma posição muito forte. As negociações políticas se dão dessa maneira: ou você aprova isso ou não aprova o orçamento, por exemplo, e assim por diante. Na negociação, conseguimos melhorar um pouco a lei, mas ainda assim era muito permissiva. Aí houve aquele exagero, o abuso da brecha legal. No fim do governo Marta e início do seguinte, primeiro com o Serra e depois com o Kassab, se viu realmente o abuso. Sabíamos que a publicidade não sofreria com a restrição porque uma parcela muito pequena era voltada para o outdoor. De qualquer forma, por que a paisagem de São Paulo tem de ser caracterizada pelo incentivo ao consumo? Não há necessidade disso, já se consome bastante em São Paulo. Essa era a resposta que dei muitas vezes a jornalistas depois da lei do Kassab. E ele teve ou sorte ou a habilidade de pegar uma Câmara com as mesmas pessoas e colocá-las a favor do projeto. Embora eu fosse do outro lado político, tive de dizer que a lei aprovada era boa.

M&M - O publicitário Icaro Doria, seu neto, enviou a pedido uma pergunta. É a seguinte: "Você acha que a propaganda pode deixara paisagem urbana mais bonita?"

Wilheim - Pode sim. Tem de ser normatizada, mas a publicidade pode ser bonita ou feia. E quando é bonita ela acrescenta, melhora aquilo que está sendo visto.

M&M - Como o senhor avalia a propaganda brasileira?

Wilheim - Acho a publicidade brasileira de muita qualidade. É muito inventiva e com aspectos que são realmente da nossa cultura: o senso de humor, a rapidez do segundo sentido, daquilo que é sugerido, mas não é dito. Tudo isso nos diferencia muito de Portugal, que tem a mesma língua e, no entanto, é muito diferente. Isso em relação ao texto. Do ponto de vista formal, do desenho, da composição, acho que nós temos bons designers. De forma geral, a publicidade é muito viva. talvez essa seja a razão de muitos publicitários brasileiros terem sucesso no exterior. Mas a coisa se liga muito ao objetivo da publicidade; há todo um problema ético e mesmo político, em nível individual. O problema ético do publicitário de não fazer propaganda de alguma coisa que vai fazer mal ao povo, por exemplo, ou que seja prejudicial à saúde.