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Em debate na Folha, participantes discordam sobre sentidos da ditadura (1 notícias)

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Por Ricardo Mendonça

SÃO PAULO, SP, 25 de março (Folhapress) - Em debate sobre os 50 anos do golpe de 1964 promovido ontem pela Folha de S.Paulo, na capital paulista, os três expositores convidados concordaram num aspecto: a ideia de que a ditadura militar promoveu uma modernização de caráter conservador no capitalismo brasileiro. Em todo o resto houve discordância.

De um lado, a jornalista Mariluce Moura, atual diretora de redação da revista "Pesquisa Fapesp", ex-integrante da Ação Popular, grupo de esquerda de influência católica que combatia o regime. Do outro, o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. E entre os dois, prometendo fazer uma análise com "mais distanciamento", o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, pesquisador da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e autor de livros e artigos sobre o período.

Na maior parte do tempo o debate ficou polarizado entre Marluce e Paiva. A jornalista começou sua exposição dizendo que, no início de sua gravidez, aos 22 anos, foi sequestrada, presa e torturada por representantes do Estado. Lembrou também de seu marido, Gildo Macedo Lacerda, que foi assassinado na tortura dentro de um quartel do Exército em 1973. "Jamais devolveram o corpo, jamais explicaram ou justificaram a ocultação do cadáver", disse. Reclamando o direito de obter informações "insofismáveis" a respeito, afirmou: "Jamais pudemos nós, os familiares, cumprir o rito civilizado de dar enterro a quem amávamos".

Em sua primeira fala, Paiva fez uma defesa enfática do regime militar. "Em 1964, eu vi todo o encaminhar do golpe que estava se armando para transformar o Brasil num país feito Cuba ou União Soviética ou China." O militar listou nomes de algumas pessoas mortas em consequência de ações da luta armada "que nunca são lembradas ou indenizadas". E afirmou que o regime era "autoritário, mas não totalitário", pois manteve o Congresso aberto a maior parte do tempo e autorizou o funcionamento de um partido de oposição, o MDB. Sem citar a censura, afirmou também que "periódicos, músicas de protesto, festivais de canção, grupos e peças teatrais criticavam o governo".

Dirigindo-se a Mariluce, o general afirmou: "Eu lamento, sim, pelas famílias dos militantes mortos e desaparecidos. A senhora tem todo o direito de ter o corpo de seu marido. Mas eu lamento muito mais pelas 119 vítimas [da luta armada]".

As 119 vítimas citadas por Paiva são de um levantamento feito pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI de São Paulo nos anos 70. Inclui policiais e militares mortos em combate, pessoas comuns atingidas em tiroteios e casos em que a responsabilidade da esquerda é duvidosa.

Rodrigo Patto Sá Motta procurou mostrar que, durante a ditadura, o Brasil se modernizou do ponto de vista econômico, tecnológico e industrial. Citou ainda a estruturação do sistema brasileiro de pós-graduação nas universidades. Mas afirmou que "toda essa modernização poderia ter sido alcançada num regime democrático".

Segundo o pesquisador, restou provado, já logo após o golpe de 1964, que o presidente João Goulart e seus aliados não tinham qualquer plano de promover uma revolução esquerdista no país. "Mas os grupos que chegaram ao poder [com essa justificativa] passaram a ter então um outro projeto, o de manutenção no poder."

Lembrando que os grupos de oposição armados eram pequenos e mal articulados, Motta afirmou que foi um exagero decretar o AI-5 para combatê-los. "Parte da motivação do AI-5 era se segurar no poder", avaliou.

A crítica ao exagero da repressão é comum em avaliações históricas sobre o período. Paiva discordou dessa tese, lembrando que "a guerra revolucionária sempre começa pequena", mas pode se alastrar. "Se não mata na raiz, acontece o que aconteceu com as Farc na Colômbia ou com o Sendero Luminoso no Peru", disse.

Em diversas ocasiões o general afirmou que os conflitos daquele período eram manifestações de "uma guerra" em curso no país. Até que Mariluce retrucou. "Tortura não é combate de guerra, é genocídio", disse.

Questionada sobre os períodos de popularidade da ditadura, a jornalista afirmou que isso era fruto de uma "narrativa falsa" construída pelo Estado e imposta à TV e aos jornais. "Os jornalistas não tiveram liberdade para contar o que era [a ditadura]", afirmou. "Com o milagre [econômico] era fácil vender a ideia do país que vai pra frente e esconder o que ocorria nos porões."

A uma pessoa da plateia que perguntou por que os militares não faziam uma autocrítica e pediam perdão, Paiva respondeu que há hoje uma "orquestração socialista" para que as Forças Armadas peçam desculpas. Numa longa explanação, leu trechos do manual de guerrilha urbana feito pelo guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) e afirmou que "socialistas não têm legitimidade" para pedir isso. Ao final, concluiu, de forma ríspida: "Se [as Forças Armadas] são uma das instituições de maior credibilidade do país, elas não têm de pedir desculpa por nada".

No encerramento, Mariluce disse ter esperança de, ao final dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, ver o Exército, a Marinha e a Aeronáutica "reintegrados, em termos políticos, ao Estado brasileiro democrático". "Se conseguirmos saber o que aconteceu nos calabouços do regime, dos quartéis, nós teremos o prazer de ver as instituições militares de novo respeitadas, porque vão fazer uma profissão de fé democrática."

Paiva riu. "Quanto ao problema da integração das Forças Armadas na sociedade, pelo amor de Deus...", disse. "Então vamos tirar as Forças Armadas dos grandes eventos, tirar do [morro] do Alemão [no Rio], da construção de aeroporto, de estrada."

Mediado pelo jornalista Ricardo Balthazar, editor do caderno "Poder", o debate ocorreu no Teatro Folha, no bairro de Higienópolis. Durou cerca de 1h20min.