Existem três tipos de problemas nas ciências naturais. Os triviais, que qualquer cientista bem preparado, após o estudo adequado, pode resolver; os que valem Prêmio Nobel; e os mistérios profundos, capuzes de dar a seu desbravador glória eterna. Andrew Wiles, matemático e professor da Universidade de Princeton, é um desses raros homens. Sozinho, ele solucionou o Santo Graal da matemática: o último teorema de Fermat, uma hipótese que perdurou sem prova durante 368 anos. Ela foi finalizada somente em 1994, após a prova de 1993 feita pelo mesmo Wiles ter sido derrubada por uma inconsistência. E, embora a idéia do último teorema seja simples — não existe número inteiro (n) maior que 2 que satisfaça a equação xn +yn = zn —, a prova de Wiles é compreensível somente para meia dúzia de matemáticos em todo o mundo.
A busca de mais de três séculos é recheada de momentos irônicos e trágicos. Seu criador, Pierre de Fermat — não se sabe se por galhofa ou por não ter a solução —, disse não ter deixado prova por não ter espaço suficiente para demonstrá-la no pedaço de página que lhe restava. O matemático Évariste Galois morreu em um duelo de pistola por uma mulher enquanto trabalhava na sua solução. A lista dos matemáticos que se envolveu, em algum momento da vida com o último teorema, é infindável. Todos os grandes, sem exceção, tentaram e fracassaram, entre eles Gauss, Euler, Pascal e Poincaré; mas suas idéias construíram a estrada para a solução de Wiles.
No livro "O Último Teorema de Fermat", recém-lançado no Brasil, Simon Singh conta, com abundância de pormenores, a história da busca do Santo Graal. Singh faz um relato cronológico a partir do segundo capítulo - o primeiro é dedicado a um panorama geral do problema -, traçando sua origem no teorema de Pitágoras. O livro consegue não usar fórmulas para explicar o último teorema, tomando o entendimento trivial para os não iniciados. Singh fez também uma interessante pesquisa sobre a vida dos matemáticos envolvidos com o problema, povoando seu relato com histórias pessoais. Uma das mais interessantes é a da francesa Sophie Germain, uma das mais refinadas mentes matemáticas da história. Nascida no final do século XVI, Germain teve de se esconder atrás de um pseudônimo masculino para poder estudar matemática na recém-fundada École Polytechnique. As mulheres não eram admitidas na instituição. Monsieur Antoine-August Le Blanc (Germain) só foi desmascarado porque o supervisor do curso, o grande matemático Joseph-Louis Lagrange, ficou admirado com o brilho de suas respostas, tornando-se seu amigo e interlocutor intelectual. A contribuição de Germain para o último teorema é considerada a maior feita até o século XVIII.
A parte do livro que lida com o século XX foi escrita com base em entrevistas feitas por Singh com Wiles e seus colegas para série Horizon, que explora temas científicos, da BBC — o documentário é um exemplo impecável da complexa arte de traduzir conceitos abstratos em uma história saborosa sem fugir ao cerne da questão. O livro segue a mesma linha e fala dos sete anos de isolamento intelectual vividos por Wiles na busca da prova que lhe traria a fama e de seu fascínio pelo problema desde os dez anos, quando ficou fascinado pelo livro "O Último Problema", de Eric Temple Bell. O relato da crescente tensão nas três palestras dadas por Wiles no Instituto Isaac Newton em Cambridge, Inglaterra, para chegar à solução é emocionante, com a transcrição de e-mails e depoimentos de seus colegas. O relato do dia D, 25 de junho de 1993, dá idéia da comoção causaria na comunidade matemática. "Foi um acontecimento extraordinário... Você vai a uma conferência e assiste a palestras rotineiras, vê algumas boas, mas só uma vez em sua vida testemunha uma palestra onde alguém diz ter solucionado um problema que durou 350 anos. As pessoas estavam se olhando e dizendo: meu Deus, sabe que acabamos de presenciar um momento histórico", diz o matemático Ken Ribet, amigo de Wiles, presente à palestra. Wiles virou uma celebridade a contragosto e foi escolhido pela revista "People" uma das 25 pessoas mais interessantes do ano de 1993: prova cabal da confusão mental que tomou conta da mídia frente à demonstração.
A confusão se estendeu ao noticiário com manchetes sobre a prova do último teorema de Fermat. Na verdade, Wiles provou a conjetura Taniyama-Shimura, proposta 35 anos antes por Yutaka Taniyama e Goro Shimura. A prova do último teorema é conseqüência da prova da conjectura. O incentivo de Wiles foi a último teorema, mas sua contribuição maior residiu no suspiro de alívio que causou nos matemáticos. Novos campos da matemática haviam sido criados com base na hipótese Taniyama-Shimura e, se ela estivesse errada, o desastre teria proporções catastróficas para a matemática deste século. Wiles é o herói, mas Shimura e Taniyama foram seu sustentáculo. Infelizmente, somente Shimura pôde ver sua hipótese provada. Taniyama se suicidou aos 31 anos, em 1958, em uma perda comparável à morte prematura de câncer de John Von Newmann e ao suicídio de Alan Turing, os pioneiros da era do computador. Singh foi além do óbvio ao retratar a evolução da matemática, criando um livro enriquecedor feito para todos aqueles que se interessam pelo admirável mundo dos números.
Notícia
Gazeta Mercantil