Adelto Gonçalves, 70 anos, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é um dos maiores especialistas em século XVIII português. Um de seus trabalhos notáveis é “Bocage — O Perfil Perdido”, que sai agora pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), depois de publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa, resultado de um trabalho de pesquisa em arquivos portugueses com bolsa de pós-doutoramento da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp).
Ainda sobre o século XVIII, o pesquisador publicou outro trabalho notável, “Gonzaga — Um Poeta do Iluminismo” (Editora Nova Fronteira, 1999), biografia do poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), sua tese de doutoramento, e os ensaios históricos “Tomás Antônio Gonzaga” (Academia Brasileira de Letras, 2012), “Direito e Justiça em Terras d’El-Rei na São Paulo colonial — 1709-1820” (2015), e “O Reino, a Colônia e o Poder: o Governo Lorena na Capitania de São Paulo – 1788-1797” (2019), publicados pela Imesp.
Jornalista desde 1972, Adelto Gonçalves passou por várias redações, incluindo “Cidade de Santos”, “A Tribuna”, de Santos, “O Estado de S. Paulo” e “Folha da Tarde” e as editoras Abril e Globo. Em Portugal, é colaborador do quinzenário impresso “As Artes Entre as Letras”, do Porto, e das revistas “Vértice” e “Colóquio/Letras”, de Lisboa. É também colaborador do Jornal Opção, de Goiânia, do “Diário do Nordeste”, de Fortaleza, e da revista digital “VuJonga”, de Lisboa, dedicada aos povos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entre outros sites do Brasil e Portugal.
Foi professor da Universidade Santa Cecília (Unisanta) e da Universidade São Judas-Unimonte, nos cursos de Jornalismo, e da Universidade Paulista (Unip), nos cursos de Direito e Pedagogia, em Santos. Ganhou os prêmios José Lins do Rego de Romance (1980) da Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro; Fernando Pessoa (1986) da Fundação Cultural Brasil-Portugal, do Rio de Janeiro; Assis Chateaubriand (1987) e Aníbal Freire (1994) da Academia Brasileira de Letras, e Ivan Lins de Ensaios (2000) da União Brasileira de Escritores e Academia Carioca de Letras. É sócio-correspondente da Academia Brasileira de Filologia.
É ainda autor dos romances “Barcelona Brasileira” (Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003) e “Os Vira-Latas da Madrugada” (Livraria José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015), do livro de ensaios e artigos “Fernando Pessoa: a Voz de Deus” (Unisanta, 1997), e do livro de contos “Mariela Morta” (Complemento, 1977).
Por que escolheu a vida e a obra do poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) para tema de seu pós-doutorado?
Com o conhecimento que havia adquirido do século XVIII português, entendi que só me restava escrever a biografia de Bocage. Deixando de lado os poetas do século XX — Fernando Pessoa, especialmente —, os maiores poetas da literatura portuguesa são, pela ordem, Luís de Camões (c.1524-c.1580), Bocage e Gonzaga. Em popularidade, em sua época, Gonzaga, que teve o seu primeiro livro publicado em 1792, quando já estava no degredo em Moçambique, só perdia para Bocage. Isso pode ser constatado se contarmos, por exemplo, as vezes em que os dois poetas são citados na Gazeta de Lisboa, entre 1790 e 1810. Mas é preciso ver que Bocage morava em Lisboa, enquanto Gonzaga estava desterrado na África Oriental. “Marília de Dirceu” servia como termo de comparação sempre que algum crítico queria elogiar algum poeta ainda desconhecido. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), quando apareceu o seu livro “Glaura” (1799). “Marília de Dirceu” é a coleção de poemas líricos mais popular da literatura de língua portuguesa, só perdendo, em número de edições, para “Os Lusíadas”, de Camões. Diante disso, só me cabia como pesquisador sair em busca de rastros de Bocage. Contei com o apoio do professor Fernando Cristóvão, da Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, e do professor Massaud Moisés (1928-2018), que foi meu orientador no doutorado. Fiquei em Portugal de 15 de março de 1999 a 15 de março de 2000. Também contei com o apoio de três ex-embaixadores em Portugal: José Aparecido de Oliveira (1929-2007), Dario Moreira de Castro Alves (1927-2010) e Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras.
Na rua de São Domingos não havia morado nenhuma família Bocage. Havia, sim, na casa onde diziam ter nascido Bocage um morador chamado Manuel Gomes Borralho. A semelhança no nome talvez tenha contribuído para a crença de que Bocage tivera nascido naquela casa
Uma das principais descobertas de sua pesquisa é que Bocage não nasceu numa casa localizada à rua de São Domingos, atual rua de Edmond de Bartissol, em Setúbal. Como descobriu que aquilo não passava de um equívoco ou de uma farsa?
No começo, não imaginava. Só comecei a desconfiar depois de pesquisar a documentação na Torre do Tombo, quando constatei que a família de Bocage tivera uma propriedade sequestrada pelo Estado. E que essa propriedade não ficava na rua de São Domingos, mas no largo de Santa Maria. Depois, confirmei na documentação da décima de prédios urbanos de Setúbal, na Torre do Tombo, que, na rua de São Domingos, na metade final do século XVIII, não havia morado nenhuma família Bocage. Havia, sim, na casa onde diziam ter nascido Bocage um morador chamado Manuel Gomes Borralho. A semelhança no nome talvez tenha contribuído para a crença de que Bocage tivera nascido naquela casa que, afinal, ficava muito próxima à igreja onde ele havia sido batizado. Isso descobri depois de quase seis meses de pesquisas nos arquivos.
Como foi a farsa montada pelo poeta setubalense Manuel Maria Portela?
Foi nos papéis do historiador João Carlos de Almeida Carvalho, no Arquivo Distrital de Setúbal, que encontrei a farsa já denunciada. Carvalho pretendia escrever uma biografia de Bocage. Fez algumas pesquisas, conversou com descendentes da família do poeta e deixou muitas anotações. Não escreveu a biografia, mas a sua família se lembrou de encaminhar esses documentos para o Arquivo Distrital de Setúbal. Ainda bem. Carvalho era contemporâneo de Portela e sabia que não havia nenhum fundamento na sua afirmação segundo a qual Bocage teria nascido numa casa da rua de São Domingos. Em 1863, descobriu-se alguns arabescos no teto de uma casa daquela rua que a alguém pareceu brasão de uma família. Disseram que na família de Bocage alguém fora representante do Vaticano e aquilo seria brasão de armas do papa, de algum bispo ou coisa que o valha. Mas nada daquilo era provado. Um bisavô paterno de Bocage tinha o sobrenome de Bispo, mas nada mais que isso. Talvez tenha surgido daí a confusão.