Embora ameaçada pelo avanço da agropecuária e da ocupação urbana, a flora do Estado de São Paulo é um espaço de descobertas para o Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (NuBBE), do Instituto de Química (IQ), Câmpus de Araraquara. É principalmente no Cerrado e na Mata Atlântica presentes em território paulista que seus integrantes realizam estudos responsáveis pela produção de um acervo valioso de substâncias retiradas diretamente da natureza.
As atividades do Núcleo – em cooperação com várias outras entidades de pesquisa – levaram ao isolamento e à caracterização de 640 moléculas inéditas, que podem ser conhecidas por meio de um banco de dados de acesso gratuito. Essas ações também geraram uma extratoteca de mais de 2 mil extratos brutos de plantas e micro-organismos.
Fundado em 1998, o núcleo dirige seus estudos para a purificação e identificação de princípios ativos – substâncias responsáveis por algum tipo de ação terapêutica – presentes em vegetais ou micro-organismos a eles associados, além de buscar compreender a formação dos compostos (moléculas de estrutura complexa) nesses organismos.
“Uma das características do nosso grupo é a versatilidade para se determinar a composição química seja lá do que for”, comenta a professora Dulce Helena Siqueira Silva, atual coordenadora do núcleo. Além dela, o NuBBE é atualmente formado pelos professores Alberto José Cavalheiro, Angela Regina Araujo, Ian Castro- -Gamboa, Marcia Nasser Lopes, Maysa Furlan e Vanderlan da Silva Bolzani, que é diretora- -presidente da Agência Unesp de Inovação (Auin).
Eles orientam as pesquisas de 22 estudantes de doutorado, 10 mestrados, uma iniciação científica, além de fazer a supervisão de oito pós- -doutorados. “O trabalho é feito de forma colaborativa entre todos os pesquisadores do grupo”, ressalta Maysa, que também é assessora da Pró-reitoria de Pesquisa (Prope) da Unesp.
Patentes
O núcleo realiza projetos em colaboração com outras unidades da Unesp, como a Faculdade de Ciências Farmacêuticas, laboratórios e universidades do Brasil e do exterior, além de empresas públicas e privadas. Entre os expressivos resultados alcançados ao longo de 15 anos está a dezena de patentes de produtos naturais e processos de biossíntese obtidas no Brasil, Estados Unidos e França, e mais outra dezena de pedidos de patentes em andamento no INPI (Instituto Nacional de Proteção Industrial).
O extrato seco do barbatimão-verdadeiro (Stryphnodendron adstringens), planta encontrada no Cerrado, rendeu uma patente em parceria com a Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto) e a empresa farmacológica Apsen. Desse extrato foi gerada a Fitoscar, pomada cicatrizante lançada em 2007. “É o primeiro agente cicatrizante aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a utilizar uma planta típica desse ecossistema”, destaca Vanderlan.
O taxi-branco é uma planta do gênero sclerolobium encontrada no Cerrado e na Amazônia que produz moléculas antioxidantes, ou seja, que combatem o envelhecimento. De seu extrato foi obtida a patente de um composto antioxidante, junto com a empresa Natura Cosméticos, para a fabricação de um produto para prevenir o envelhecimento da pele.
Participação no Biota
O NuBBE marca presença em grandes programas de estudo e formação sobre os ecossistemas brasileiros, como o Biota (Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Recuperação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo), da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), e o Sisbiota (Sistema Nacional de Pesquisa em biodiversidade), do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Criado em 1999, o Biota vem lançando editais dos quais o NuBBE participa com projetos temáticos para fazer uma avaliação de bioatividade – ou atividade biológica, que descreve os efeitos benéficos ou adversos de uma droga – de extratos vegetais coletados em ecossistemas. Entre as atividades biológicas testadas estão a antibacteriana, antifúngica, antioxidante, antitrypanosomal (que ataca o agente causador da Doença de Chagas), antiulcerogênica, antiansiolítica e de agentes citotóxicos (que matam as células cancerígenas), além de inibição da acetilcolinesterase (para combater o Mal de Alzheimer).
Um exemplo desses estudos é o projeto feito com Casearia sylvestris, a guaçatonga ou cafezinho-do-mato, planta utilizada no tratamento de gastrites, inflamações e até como estimulante sexual. De acordo com o professor Cavalheiro, o extrato obtido das folhas desse vegetal possui disterpenos, associados a outras moléculas, como taninos e alguns óleos que protegem a mucosa estomacal.
Segundo o especialista, o extrato pode levar à produção de um remédio com potencial para curar 100% das lesões gástricas, com a vantagem de não interferir na absorção de aminoácidos, como ocorre com alguns medicamentos já comercializados. A Auin entrou com um pedido de patente no Inpi, tanto para o extrato, quanto para as substâncias ativas presentes nele.
O núcleo também articulou a criação do BIOprospecTA (Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios), que entre 2004 e 2010 reuniu pesquisadores de São Paulo para ampliar e organizar os estudos sobre atividade biológica de produtos naturais. Nesse período, foram detectadas e isoladas mais de 200 moléculas com bioatividades diversas, como antioxidantes, antitumorais, antifúngicas. Entre as substâncias obtidas, Dulce destaca a morelloflavona, um composto da classe dos flavonóides encontrado na fruta bacupari (Garcinia brasiliensis), com potencial antioxidante e anticancerígeno.
Além da longa sintonia com o Biota – que atualmente conta com a professora Vanderlan entre seus coordenadores –, desde maio o núcleo integra o Cibfar (Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos), com laboratórios de química de produtos naturais e síntese orgânica da USP de São Carlos, da unicamp e da Ufscar. O projeto, coordenado pelo professor Glaucius Oliva, da USP, tendo como vice-coordenadora a professora Vanderlan, é voltado para a prospecção de novos fármacos e faz parte do programa Cepid (Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão), da Fapesp.
Novas fronteiras
Paralelamente ao estudo com plantas, o NuBBE realiza a bioprospecção e o perfil metabólico - isto é, a determinação das substâncias presentes em um extrato – de micro-organismos endofíticos.
Conforme explica a professora Angela, esses organismos, como fungos, estão associados às plantas, em simbiose. “Nós fomos pioneiros nos estudos com esses fungos no país”, afirma.
Ao longo dos anos, foram isolados cerca de 120 micro -organismos das plantas, com a identificação de 250 substâncias, cerca de 100 delas inéditas, e todas apresentaram atividade nos ensaios, segundo a professora. Um dos micro-organismos isolados foi um fungo do gênero Xylaria da planta Palicourea marcgravii, conhecida como erva-de-rato. Nele, foi obtida a molécula griseofulvina, um antimicótico, que o Brasil importa. O composto é usado na indústria farmacêutica e veterinária como antifúngico e, para os seres humanos, também serve para o tratamento de micoses no cabelo e na pele. “Poderíamos explorar esse micro-organismo para produzir o medicamento no próprio país e não ter mais que importá-lo”, destaca Angela.
Mais recentemente, o grupo começou a trabalhar com fungos endofíticos retirados de algas marinhas. “Estamos começando a conhecer como esses fungos reagem”, explica Dulce.
Química verde
O NuBBE destaca-se ainda na busca de novos métodos, mais eficientes em termos econômicos e ecológicos. Eles são úteis tanto para a identificação de substâncias quanto para sua síntese – que é o processo de reações químicas para a obtenção de uma molécula. Para se isolar uma molécula bioativa de uma planta pelos métodos tradicionais, segundo Maysa, gastam-se litros de reagentes para conseguir miligramas da substância pura. A partir de métodos que procuram identificar e caracterizar os compostos ainda nos extratos, estudos como os desenvolvidos pelo professor Castro-Gamboa evitam o processo de isolamento de substâncias conhecidas, prevenindo desperdício.
Uma pesquisa realizada por Maysa e Debora Baldoqui, doutora pelo IQ, sintetizou em laboratório o composto 4-nerolidilcatecol, um antioxidante utilizado em cosméticos, a partir de uma enzima produzida pelas folhas e raízes da planta pariparoba (Potomorphe umbellata). O método, patenteado pelo Inpi, elimina o uso de reagentes, e pode ser usado em larga escala pela indústria.
A utilização de enzimas na síntese de substâncias bioativas reforça os pressupostos da chamada Química Verde, que busca eliminar o uso de solventes e reagentes ou, então, a geração de produtos e subprodutos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente. “O conhecimento dos processos orgânicos de moléculas complexas está na fronteira de nossas pesquisas. E com a evolução desse saber, poderemos imitar a natureza em nossos laboratórios”, sentencia Maysa.