Notícia

Jornal da Cidade (Bauru, SP)

Ele fica cara a cara com a Covid-19

Publicado em 07 junho 2020

Por Cinthia Milanez

Diariamente, ele acorda antes do sol nascer e passa o restante da manhã cara a cara com a Covid-19. Diretor da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB/USP), o cirurgião-dentista Carlos Ferreira dos Santos integra a equipe de testagem do novo coronavírus. Ao lado do Adolfo Lutz e do Lauro de Souza Lima, a FOB/USP é responsável pelo diagnóstico de pacientes de Bauru de toda a região. Sem o procedimento, segundo ele, o País perderia o controle da pandemia.

As funções de pesquisador e superintendente do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) deixam a sua rotina ainda mais árdua. Apesar de ser bastante reservado, o professor se abriu ao falar sobre os cuidados tomados por ele. “Eu só não quero sair do front, afinal, o meu trabalho tem ajudado muitas pessoas”, alega.

Por isso, Carlos lança mão de um verdadeiro aparato de guerra quando está no laboratório: luvas, óculos, viseiras, aventais, máscaras etc.

Inclusive, o especialista preferiu conceder esta entrevista por telefone. Abaixo, ele revela como é a sua rotina e exalta a importância das universidades públicas no que diz respeito ao enfrentamento do atual cenário.

Jornal da Cidade - De que forma o seu conhecimento tem ajudado a enfrentar a pandemia?

Carlos Ferreira dos Santos - Eu sou formado em Odontologia pela FOB/USP. Fiz mestrado e doutorado em Farmacologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP). Durante este último curso, entre 2000 e 2001, tive a oportunidade de ficar um ano e meio nos Estados Unidos, com uma bolsa do CNPq. Lá, eu aprendi a utilizar técnicas moleculares. Hoje, elas permitem a execução dos testes do novo coronavírus.

JC - Esta experiência também o levou a ocupar posições de representação junto à FOB e ao HRAC?

Carlos - A FOB tem uma tradição de preparar os profissionais de forma subliminar. As pessoas, naturalmente, são indicadas pelos conselhos de departamento e colegiados para ocupar posições de representação. Ao longo da carreira, elas podem subir até os cargos maiores. Isso aconteceu comigo. Em 10 de março de 2018, me tornei diretor da FOB/USP e, em 8 de junho de 2019, superintende do HRAC.

JC - O senhor se lembrou das datas exatas. Pelo visto, possui uma memória muito boa...

Carlos - Na adolescência, eu tinha uma bolsa em uma escola particular de São José dos Campos, onde nasci, porque sempre ia muito bem nas Olimpíadas de Matemática. Inclusive, cheguei a conquistar o 1.º lugar da minha cidade e o 5.º de todo o Estado de São Paulo. Apesar de trabalhar na área da saúde, os números são a minha segunda paixão.

JC - O senhor passou boa parte da vida dentro de universidades públicas. A pandemia ressaltou a importância destas instituições?

Carlos - Com certeza. Em um passado recente, as universidades públicas - principalmente, as paulistas - sofreram muitos ataques. Agora, nós temos mostrado o quão importantes elas são em termos de pesquisas. Veja o meu exemplo: viajei aos Estados Unidos com uma bolsa de estudos brasileira. Hoje, devolvo à população todo o conhecimento que adquiri com o dinheiro público.

JC - As universidades públicas dependem da arrecadação de impostos para sobreviver. Com a crise econômica, os investimentos e, consequentemente, as pesquisas deverão cair?

Carlos - Nós trabalhamos com planejamento. Os pesquisadores contam com auxílios oriundos das agências de fomento. Logo, as pesquisas em andamento não serão prejudicadas. A FOB e o HRAC também investem parte do orçamento neste sentido. Os estudos só sofrerão algum impacto caso os repasses da reitoria diminuírem. Até o momento, tudo está mantido.

JC - A FOB e o HRAC desenvolvem várias pesquisas sobre a Covid-19. O senhor gostaria de destacar alguma?

Carlos - Nós temos um estudo muito importante, liderado pela professora Marília Buzalaf e ao qual estou associado. O projeto, que propõe uma parceria com o Adolfo Lutz local e o Hospital Estadual, já foi liberado pelo Comitê de Ética. Nós pretendemos analisar o plasma dos pacientes acometidos pela Covid, desde a entrada até a alta hospitalar ou o óbito, para identificar as proteínas ali existentes. Isso nos permitirá pensar nos medicamentos mais úteis. Além disso, já submeti uma pesquisa minha à Fapesp e ao Comitê de Ética. Ela objetiva descobrir se os medicamentos usados para baixar a pressão arterial ajudam ou pioram o prognóstico das pessoas diagnosticadas com o novo coronavírus.

JC - O senhor trabalha dentro do laboratório de testagem da Covid-19. Como é a sua rotina por lá?

Carlos - Nas unidades públicas de saúde, os profissionais fazem a coleta das amostras, chamadas swab. Eles introduzem três "cotonetes" longos, dois nas narinas e outro na garganta dos pacientes. Em seguida, depositam o material dentro de um tubo com soro fisiológico estéril e encaminham ao Instituto Adolfo Lutz local. Lá, a equipe inclui os itens coletados em um sistema do Ministério da Saúde e distribui para a FOB ou para o Lauro de Souza Lima. Todos os dias, no final da tarde, nos dirigimos ao Lutz para pegar uma remessa de amostras e deixamos em uma geladeira. No dia seguinte, a minha participação começa. Por volta das 6h, eu entro no laboratório para fazer a primeira parte do processo, que consiste na extração do RNA viral. Já o final do expediente varia conforme o número de amostras. Na última terça-feira, por exemplo, terminei às 13h, porque havia 100 delas para analisar. Ficamos dentro de uma cabine de segurança biológica e usamos uma paramentação especial, com luvas, óculos, viseiras, aventais, máscaras etc. Na parte da tarde, outra equipe executa a reação de RT-PCR em tempo real, que detecta se existe RNA do SARS-CoV-2, o novo coronavírus. No final do dia, já obtemos os resultados. A rotina é pesada.

JC - Quantas amostras a FOB já analisou? A maioria delas testou positivo para a Covid-19?

Carlos - Desde o dia 15 de abril, quando começamos a fazer os testes, analisamos 1.517 amostras de Bauru e diversas cidades da região, como Jaú, Lins etc. Boa parte deu positivo. Porém, eu continuo negativo para a Covid-19. Visando trabalhar com tranquilidade, o pessoal do laboratório se submete ao exame uma vez por semana. Até agora, ninguém se infectou.

JC - Na sua opinião, qual é a importância da testagem?

Carlos - A testagem é o item mais importante dentro de tudo o que nós podemos pensar para o controle da pandemia. O procedimento permite isolar os pacientes, aderir ao tratamento médico mais adequado e planejar o retorno às atividades normais. Em um mundo perfeito, teríamos de aplicar testes em massa. Isso porque, em Bauru, há muitas pessoas assintomáticas. Elas acabam passando o vírus para as demais, incluindo aquelas se encaixam no grupo de risco da doença.

JC - O senhor acredita que o número de testes, no Brasil e, consequentemente, em Bauru, é baixo?

Carlos - Sim, mas entendo que há uma limitação de recursos. Logo, o município precisa se basear na ciência na hora de pensar na melhor forma de utilizá-los. Falando nisso, existem métodos estatísticos que permitem mapear toda a cidade. Paralelamente, o poder público deve insistir na orientação da população. Não basta apenas testar, também é necessário conscientizar.

JC - Sem estes poucos testes, a pandemia sairia do controle?

Carlos - Se não tivéssemos qualquer testagem, dificilmente conseguiríamos controlar a situação. Além disso, eu me preocupo com a flexibilização. Em todo o Estado de São Paulo, a retomada gradual da economia aconteceu justo no dia em que registramos o recorde de casos positivos e mortes. Nós ainda não chegamos ao pico da curva. Logo, a população precisa entender que o que ocorreu na Batista de Carvalho, em 1 de junho, é inadmissível. O vírus quer aglomerações para se espalhar. O procedimento, portanto, exige uma maturidade muito grande de todos os envolvidos. Eu, por exemplo, sinto medo de frequentar o supermercado. Em três meses, fui duas vezes e fiquei assustado, porque quase ninguém cumpre as recomendações.

JC - O senhor, então, prevê uma explosão de casos da doença dentro dos próximos dias?

Carlos - O pico da curva, em Bauru, está projetado para o período de 10 a 30 de junho. Infelizmente, eu prevejo uma explosão de casos da doença, fato que pode levar ao esgotamento dos leitos de UTI da rede pública.

JC - Quais são as precauções que o senhor toma para evitar a contaminação pelo novo coronavírus?

Carlos - Todas as reuniões são feitas por plataformas digitais. Evito ao máximo conceder entrevistas pessoalmente e, quando não tem outro jeito, o faço usando máscara e mantendo uma distância segura. Também ando com um frasco de álcool em gel. Quando chego em casa, coloco a roupa na máquina de lavar e sigo para o banho, antes de falar com as crianças.

JC - O senhor tem medo de se infectar?

Carlos - Não, porque tomo todas as precauções. Eu só não quero sair do front, afinal, o meu trabalho tem ajudado muitas pessoas.

JC - Em relação ao HC, o senhor vê algum risco de o hospital não seguir adiante depois que a pandemia passar?

Carlos - Eu sou muito positivo quanto ao HC, porque, desde outubro de 2019, existe um termo de cooperação técnica aguardando assinatura na Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Quando isso ocorrer, a pasta assumirá todo o custeio da unidade.

JC - O senhor sentiu alguma tensão por parte dos servidores da FOB/USP quando ficou decidido que o HC atenderia, em um primeiro momento, apenas pacientes com Covid?

Carlos - Não, porque eu fui muito firme em dizer que nós adotaremos todas as medidas preventivas. Os pacientes, por exemplo, só ingressarão dentro de ambulâncias. Os veículos e os funcionários da Famesp também terão uma entrada exclusiva.

JC - Por fim, qual é a mensagem que o senhor deixa aos profissionais que atuam no enfrentamento à Covid-19?

Carlos - Gostaria de agradecer e pedir que o pessoal do front não se descuide. Se bobearmos, nós perdemos uma guerra que temos plenas condições de vencer, desde que cuidemos da biossegurança e persistamos nas pesquisas. Eu também sou muito grato às equipes do HRAC e da FOB, que me dão todo o suporte necessário.