No primeiro artigo, iniciei a discussão sobre como, ao longo do tempo, as diversas políticas públicas que visavam extirpar o analfabetismo absoluto no Brasil acabaram por criar o escandaloso quadro da educação que temos hoje. Sem medo de errar, reitero que foi a partir delas que o compromisso com o estudo da língua desapareceu e o número dos analfabetos funcionais se proliferou com rapidez espantosa. Entre os muitos equívocos, essas estratégias contemplavam apenas fazer o indivíduo ler e escrever o básico, assinar um documento, reconhecer identificar um produto. Ignoraram a importância de cultivar o hábito de leitura para a construção de seres pensantes com capacidade de discernimento, com espírito crítico, cidadãos, enfim.
Acredita-se que bem mais de 50% da população é produto desse descompromisso. E o pior é que são esses mesmos analfabetos funcionais que agora alfabetizam nossas crianças, e não apenas na rede pública, mas no interior de muitas instituições de ensino frequentadas pela alta classe média, formada por um número expressivo de famílias que cresceram financeiramente, mas que educacionalmente foram formadas – ou, melhor, deformadas – em seu intelecto por essas precárias condições educacionais
Agora, um grande número de analfabetos funcionais chega à universidade disposto a se profissionalizar. Há muito as universidades perderam seu caráter de templo do conhecimento, mas é inaceitável que coloquem um diploma nas mãos de quem não sabe usá-las para bem escrever. Nós, professores universitários sérios, não podemos compactuar com esse absurdo e, assim sendo, vemo-nos diante da necessidade de complementar a alfabetização desses alunos para que consigam levar a termo sua formação. Mas isso se torna complicado, pois temos uma quantidade imensa de disciplinas a serem trabalhadas e a carga horária não foi elaborada contando com a necessidade de se ministrar, por exemplo, aulas de língua portuguesa. E essa disciplina se faz indispensável, pois um aluno que não sabe ler um texto, que nunca foi habituado a ler um livro não tem como acompanhar um curso universitário.
Não estou aqui procurando culpados por essa situação, o que não significa que não devemos conhecê-la. Pelo contrário, é urgente conhecê-la para compreendê-la e, então, combatê-la, mudá-la. Não se trata também de colocar a responsabilidade por esta situação nos órgãos governamentais, e esperar que a resolvam imediatamente. Não que eles não tenham que se responsabilizar por isso – esta é uma de suas muitas tarefas. Mas esses órgãos não são coisas; são formados por pessoas que, em sua maioria, fazem parte daquela parcela de analfabetos funcionais e, por isso mesmo, talvez não consigam nem ao menos enxergar a urgência da situação
O tempo passa e enquanto esperamos ações e resoluções do governo, nossos jovens precisam de socorro para que não sejam tão vitimados pela deseducação e pela incultura como o foram seus pais e essa situação se perpetue, prejudicando o avanço social e econômico do País. A relação direta entre avanços da economia e educação é confirmada pelos resultados do Pisa (sigla, em inglês, para Programa Internacional de Avaliação de Alunos), que testa o desempenho dos países na educação. Nações que estão no topo da educação mundial também são destaques no desenvolvimento humano, de riqueza e de compartilhamento desses bens.
O que venho propor com essa série de artigos neste importante espaço é que comecemos a refletir sobre essas questões no sentido de tentarmos encontrar, quem sabe, algumas saídas que alterem esse quadro tão escandaloso que corrói de forma profunda a integridade do nosso corpo social
*Professora Neide Coelho Boechat é coordenadora do curso de Filosofia do UNIFAI – Centro Universitário Assunção, doutora em Filosofia pela PUC/SP e bacharel em Psicologia pela Universidade Gama Filho (RJ). Seu último livro – História e escassez em Jean-Paul Sartre lançado pela EDUC com apoio da FAPESP, foi indicado ao Prêmio Jabuti 2012, na área das ciências humanas.