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Edição genética acelera melhoramento de bovinos (1 notícias)

Publicado em 16 de junho de 2025

Bezerros com pelo mais curto representam os primeiros usos da técnica Crispr na reprodução animal

Após quase 10 anos de planejamento, batalhas por financiamentos, formação de equipes e sucessivos ajustes nas técnicas em laboratório, apareceram os resultados de uma nova abordagem de melhoramento genético animal. São os dois bezerros da raça angus, um macho e uma fêmea, vindos do mesmo pai, com pelo curto, liso e brilhante, que pastam e dormem com tranquilidade na fazenda experimental da Embrapa Gado de Leite. Eles mostram que até aqui deu certo o experimento para induzir características desejadas em animais usando uma técnica de edição gênica conhecida como Crispr-Cas9 (ver Pesquisa FAPESP nos 240 e 288).

Nesse caso, pretendia-se induzir uma mutação genética que poderia resultar em pelos curtos. Essa característica interessava aos pesquisadores por ser visível já ao nascer, indicando se o experimento havia sido bem-sucedido ou não. Esse atributo poderá também aumentar a tolerância dos bovinos ao calor, em comparação com os de pelo longo.

Em laboratório, a equipe da Embrapa Gado de Leite, sediada em Juiz de Fora (MG), produziu 16 embriões, implantados no final de junho de 2024 em 16 vacas previamente preparadas para recebê-los. Seis gestações avançaram, embora uma delas não tenha chegado ao final. Na última semana de abril e primeira de março, nasceram cinco bezerros. Cada um deles apresentou graus variáveis de eficiência da edição gênica, com taxas de incorporação da mutação entre 0% e 83%. Dois animais apresentaram 74% e 83% de edição no genoma, o que explica o comprimento curto dos seus pelos. Dos outros três, dois apresentaram pelos longos e sem edição no genoma. Um terceiro de pelo intermediário apresentou 50% de edição, mas morreu com 41 dias por causa de uma infecção bacteriana.

“Com o melhoramento genético de precisão, por meio da edição genética, podemos fazer em apenas alguns anos o que a natureza demora décadas”, comenta o médico veterinário Luiz Sérgio de Almeida Camargo, coordenador da pesquisa. Ele se refere ao fato de que os animais trazidos de Portugal e Espanha para a América Latina e Caribe durante a colonização tinham pelo longo; parte de seus descendentes desenvolveu mutações naturais que resultam em uma pelagem curta. Essa característica permite a esses animais uma melhor regulação da temperatura corpórea, reduzindo o estresse causado pelo calor e umidade excessivos do ambiente tropical e subtropical. Esse estresse térmico prejudica o bem-estar e leva a perdas na produção de carne e leite (ver Pesquisa FAPESP no 340).

Por meio de cruzamentos e seleção ao longo de várias gerações, que constituem o melhoramento genético convencional, o desenvolvimento de novas características em animais de criação pode demorar décadas – muito mais do que o de plantas. “Para fixar uma característica em uma população bovina, podem ser necessárias cinco ou mais gerações”, conta Camargo. Segundo ele, o melhoramento de precisão permite que uma característica desejada, desde que se conheça o gene que a determina, possa ser fixada em duas ou três gerações, sem interferir em outras características, diferentemente do que pode ocorrer no melhoramento convencional.

Camargo conta que começou a discutir em 2014 com seus colegas do Brasil e de outros países as possibilidades de edição gênica de bovinos. Em 2022, ele obteve o primeiro financiamento, por meio de um edital para inovação do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Em seguida vieram os apoios da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Igualmente bem-recebida foi a parceria com a Associação Brasileira de Angus e Ultrablack, que cedeu as vacas que gestaram os embriões. Um artigo de fevereiro de 2022 na CABI Agriculture and Bioscience e outro de fevereiro de 2023 na Animal Reproduction expõem a visão do grupo da Embrapa sobre o uso da Crispr para melhoramento de bovinos. O trabalho com os resultados mais recentes ainda está sendo escrito.

A modificação genética se apoia na fertilização in vitro, à qual se acrescentaram outras. “Durante quase dois anos, tentamos outro método para acessar o interior das células, a microinjeção, e outra técnica de edição gênica, a Talen [transcription activator-like effector nucleases ou nucleases efetoras do tipo ativador de transcrição], mas o rendimento era sempre muito baixo”, conta o líder da pesquisa. A partir de 2023, a taxa de mutação triplicou com outra técnica, a chamada eletroporação, e a Crispr.

A eletroporação consiste em pulsos elétricos de alta voltagem e duração de microssegundos para abrir poros nas membranas das células reprodutivas. Por esses poros entra a molécula formada por um RNA e uma enzima que vai agir no DNA para que ocorra a modificação desejada no genoma (ver infográfico acima).

Com essa intervenção, sairá truncada a proteína que formará o receptor da superfície celular para o hormônio prolactina. Como resultado, o receptor será mais curto e, quando ativado pela prolactina, resultará em pelos mais curtos. “A produção de leite continua normal”, assegura Camargo. “Nosso feito mais inovador foi ter usado embriões fecundados in vitro e associar eletroporação e edição gênica para resolver um problema nosso, o bem-estar dos animais no calor.”

Nos últimos anos, também usando a Crispr, a empresa de biotecnologia Acceligen, dos Estados Unidos, lançou bovinos editados com pelos curto e desenvolve pesquisas para promover edições também em suínos e peixes com maior resistência a doenças, maior produção de carne ou maior capacidade de adaptação às regiões tropicais, principalmente na África.

“A tecnologia está dominada e pode levar a outras aplicações”, comenta o médico-veterinário Flávio Meirelles, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (FZEA-USP), campus de Pirassununga, que não participou da investigação com os bezerros de pelo curto. Ele trabalha com Crispr para estudar o desenvolvimento embrionário de bovinos e já fez uma vaca transgênica capaz de produzir leite com insulina humana (ver Pesquisa FAPESP no 339).

Transmissão para descendentes

Nos próximos meses, Camargo pretende realizar outros testes para verificar se não houve mutações em outros lugares do DNA que possam prejudicar o desenvolvimento dos animais editados geneticamente. Daqui a um ano, quando o bezerro macho atingir a maturidade sexual, ele quer coletar sêmen e ver se os gametas incorporaram a mutação para pelo curto. O resultado indicará se a mutação poderá ou não ser transmitida para seus descendentes.Segundo o pesquisador da Embrapa, à medida que a edição gênica por Crispr se firmar, talvez seja possível fazer modificações mais complexas. Por exemplo, ampliar a produção de leite, que depende de vários genes e não de apenas um só, como no caso do comprimento do pelo. “Fazer um gene perder sua função parcialmente, como no caso do pelo curto, é mais fácil do que levar a um ganho de função ou a uma maior expressão dos genes”, comenta Meirelles.

A equipe da Embrapa de Juiz de Fora pretende formar um grupo inicial de animais de pelo curto, que poderia ser distribuída aos criadores, e povoar o Centro-Oeste, naturalmente mais quente. Esse plano depende da aprovação pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

“As perspectivas de liberação são boas, mesmo sem otimismo excessivo, porque já há outros casos semelhantes”, comenta o médico-veterinário Marcelo Demarchi Goissis, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, na capital paulista, que usa Crispr para estudar a diferenciação das células do embrião de bovinos e não participou da pesquisa com os angus. Ele lembra que, além dos animais com o DNA editado nos Estados Unidos, empresas da Argentina e do Japão produzem peixes modificados por Crispr com maior volume de carne que as mesmas espécies que não receberam nenhuma modificação.

Em 2022, a CTNBio liberou para plantio uma variedade de cana-de-açúcar desenvolvida na Embrapa usando a técnica Crispr (ver Pesquisa FAPESP no 313). O argumento, que será usado novamente, é que não se trata de organismos transgênicos, cuja aprovação é mais burocrática, mas apenas da indução de uma mutação que poderia ocorrer naturalmente nas mesmas espécies. “Os organismos editados geneticamente não contêm DNA de outra espécie. Portanto, não são transgênicos”, ressalta Goissis.

Artigos científicos
DE ALMEIDA CAMARGO, L. S. e PEREIRA, J. F. Genome-editing opportunities to enhance cattle productivity in the tropicsCABI Agriculture and Bioscience. v. 3, n. 8. 14 fev. 2022.
CAMARGO, L. S. A. et alPerspectives of gene editing for cattle farming in tropical and subtropical regionsAnimal Reproduction. v. 19, n. 4. 20220108. 13 fev. 2023.
LUBIENIECHI, S. A. et alRegulation of animal and plant agricultural biotechnology

Revista Pesquisa FAPESP