Governos precisam investir mais em obras de saneamento básico e em unidades de saúde adequadas, e não em obras-fetiches
O que todos os seres humanos querem? Crescimento econômico e desenvolvimento. O desenvolvimento é a distribuição dos frutos do crescimento (a divisão do bolo, diria o economista Delfim Netto). Mas a expansão acelerada, se gera consumo cada vez elevado, também produz problemas, como os ambientais. O filósofo John Gray não é adversário do “progresso”, mas tem apontado, assim como outros pesquisadores, o seu custo, cada vez mais pesado, para os seres — e não apenas os humanos, que se consideram o centro do universo — e para a Terra. O ritmo pode ser refreado? Pode-se consumir menos, e com mais qualidade? Talvez.
O filósofo francês Jean-Pierre Dupuy, adepto do “catastrofismo esclarecido”, sugere, em entrevista ao “Valor Econômico” (sexta-feira, 20), que “o futuro deve ser visto como um destino que pode ser escolhido”. Frisa que “a humanidade caminha para sua autodestruição, mas é olhando esse perigo de frente que o pior pode ser evitado”.
Há problemas mais graves do que o novo coronavírus — um perigo imediato, mas que, com vacina, pode ser contido e, portanto, administrado pelos homens. A questão do clima parece distante, para alguns, mas não é, para todos. “Os estudiosos do clima veem três tipos de solução [para evitar a catástrofe]: mitigação, reduzindo as emissões. Tarde demais. O sistema tem inércia e, mesmo se parássemos de produzir CO2 agora, o que está na atmosfera continuaria por séculos. Adaptação: há muita gente dizendo que é preciso pensar em como vamos nos adaptar. Na França, serão verões de quatro meses acima de 40ºC. A terceira categoria é a geoengenharia, que é desmedida completa. (…) A alternativa mais verossímil é a adaptação mas a condições cada vez mais duras”, afirma Dupuy. Estamos dispostos a adotar um novo modo de vida — mais simples e com menos, digamos, “conforto”? “Temos que produzir e consumir de outra maneira”, pontua o filósofo. Nós queremos mesmo aderir a isto?
Neste momento, os governos pressionam para as pessoas ficarem em casa, como medida para evitar uma contaminação ampla devido ao novo coronavírus. Mesmo que isto afete a economia, até prejudicando os mais pobres (podem perder e não conseguir novos empregos), é um sinal de preocupação real com a vida de todos. Daqui para frente, com o objetivo de criar melhores condições de vida — por causa das mudanças do clima —, a tendência é que os governos aumentem as proibições. Vamos aceitá-las e vamos incentivá-las? Isto pode levar ao avanço de governos autoritários, impositivos?
Mudar o sistema de produção não significa “defender” o socialismo e “atacar” o capitalismo? Será, antes, uma estratégia para garantir a sobrevivência dos humanos e dos outros seres (muitos estão sendo extintos, com escassa repercussão, exceto em reportagens episódicas que, a rigor, não “escandalizam” ninguém; o escândalo ocorre, isto sim, quando humanos são atingidos de maneira frontal). “O que tem quer ser reorganizado é basicamente tudo. O tamanho das unidades de produção”, postula Dupuy. O sistema de transporte, por exemplo, precisa ser repensado — tornando-se mais público. Queremos isto? Ou queremos continuar andando em carros grandes, possantes, poluentes e consumidores de produtos que são finitos? Vamos continuar dizendo uma coisa, para nosso conforto espiritual, e fazendo outra? As sociedades industriais, com sua produção em alta escala, melhorou a vida dos humanos, por um lado. Por outro, a longo (na verdade, já a médio) prazo, colabora para a devastação da Terra, piorando as condições de vida de todos. Teremos de nos tornar coletores? Impossível, claro. Mas o sistema terá de ser repensado, o que será feito sobretudo quando a condições de existência piorarem.
O futuro remete a uma guerra? Dupuy avalia que sim. “O clima provoca violência. (…) A Europa está à beira da decomposição por não conseguir lidar com os migrantes.” A mudança climática vai assustar cada vez mais, não tanto como coronavírus. Porque ela “não é súbita”, apesar de constante, e sempre piorando. “É o fim do mundo como um gemido”, afirma o filósofo, ecoando o poeta americano T. S. Eliot.
O destino dos seres — repita-se, como postula John Gray, não apenas dos humanos — está nas mãos da humanidade e da natureza. Inteligentes e criativos, com rara capacidade de adaptação, os homens certamente serão capazes de se reinventarem — para sobreviver. Apesar de seu ceticismo esclarecido, Dupuy é crítico dos “colapsólogos” e dos “otimistas beatos”. Inquirido sobre Greta Thunberg, a adolescente darling do ambientalismo, o filósofo é crítico: “Ela faz uma moralização que não é boa. É um discurso formatado: é preciso fazer algo, vocês são criminosos. É um discurso punitivista. Não é esse caminho. Não adianta ir pelo lado moral. Alguns poluem mais do que outros, e é bom denunciar o que deve ser denunciado. Mas o discurso moralista não nos fará avançar. Por exemplo, fui contra o imposto do carbono. (…) Implicitamente, as pessoas podem interpretá-lo como a compra do direito de fazer um mal. (…) A iniciativa de transformar um valor moral em dinheiro produz o contrário”.
Como o crescimento a qualquer custo é o que buscam os governos e os cidadãos — há incentivos fiscais para atrair indústrias, que são geradoras de empregos e melhoria de renda —, é muito difícil desacelerar o mundo. Aos poucos, porém, com o incentivo e pressão de vários governos, haverá uma certa reorganização da produção? Dada a concorrência entre os países, inclusive entre Estados de cada país, a batalha não é para desacelerar o consumo, e sim para aumentar o seu ritmo. Os indivíduos assustam-se com uma doença, como o coronavírus — porque as mortes às vezes são rápidas, visíveis, comunicadas globalmente —, mas ainda não se incomodam tanto com a questão climática, a rigor, muito pior, mais destrutiva para todos os seres que habitam a Terra.
Há um despertar em todo o mundo? Há — para além do coronavírus — cada vez mais, ainda que a preocupação atual não seja suficiente. As relações dos homens com a natureza estão melhorando — inclusive o interesse pela vida dos demais animais.
Luiz Henrique Mandetta e Jair Bolsonaro: o primeiro está em sintonia com o país, o segundo está perdendo o timing | Foto: Reprodução/Internet
Rigor nos sistema de saúde
Entrevistado pelo “Valor Econômico” (sexta-feira, 20), o infectologista David Everton Uip divulgou uma informação que diz muito sobre o Brasil: “São Paulo tem 101 hospitais estaduais. Sabe quantos no Rio de Janeiro? Zero! No Rio Grande do Sul? Dois”.
No Brasil, os governos investem em obras de infraestrutura caríssimas e nem sempre tão necessárias. Determinadas intervenções visam facilitar o tráfego de automóveis, mas não necessariamente dos veículos do transporte coletivo e do transporte de produtos. Ora, se é preciso proteger o ambiente, quanto mais se facilita o acesso aos carros, em geral usados por uma única pessoa, mais se polui as cidades, além, claro, de torná-las mais congestionadas. Em Goiânia, há hospitais públicos de referência de qualidade — como o HDT, o HGG, o Hugo, o Hugol, o Crer —, mas, fora os postos de saúdes, às vezes precários, não há um único hospital municipal de atendimento amplo. Paulo Garcia, quando prefeito, tentou construir um hospital municipal, mas não conseguiu. Neste momento, há uma estrutura particular vazia, a do Hospital São Salvador, que poderia ser transformada num hospital público — por exemplo, para tratamento de pessoas contaminadas pelo coronavírus que estejam em estado grave. Os chineses constroem hospitais em poucos dias. Os goianienses têm condições de reformar a unidade citada em poucos dias.
Ecoando o médico Drauzio Varella, David Uip afirma que o SUS é o maior modelo de inclusão social do Brasil. “Sou fã. Tem problemas, falta de financiamento, o acesso é difícil, mas tem hospitais públicos com trabalho de arrepiar. Quem critica o SUS é porque nunca foi”.
O infectologista frisa que “20% dos infectados terão que ser hospitalizados e 5% vão precisar de cuidado em UTI”. David Uip informa que “os primeiros medicamentos devem chegar no início de maio e podem ou não ser efetivos; já as vacinas, em cerca de um ano e meio”. Pode ser antes? Pode.
O governo Bolsonaro informa que o Brasil não vai participar do desenvolvimento da vacina. Trata-se de um equívoco, afirma David Uip. Até porque “pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo — nenhuma das instituições é subordinada ao governo federal — estão desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)”.
Retomando às obras de infraestrutura, que são uma espécie de “fetiche” para alguns gestores. Algumas, de fato, são necessárias. Outras merecem ser chamadas de meramente faraônicas, consumidoras de recursos públicos. Os Estados estão excessivamente endividados, em alguns casos, por causa de obras que são pouco necessárias. Um investimento maciço em saneamento básico — água tratada e esgoto sanitário (várias cidades do país ainda mantêm fossas) — e em saúde pública, com foco na prevenção, contribuiria para reduzir doenças. E, também, diminuir os gastos com saúde.
Recessão será global
No momento, conter a crise do novo coronavírus é mesmo mais importante do que as preocupações econômicas. Há vidas em jogo, e vidas, obviamente, não são peças, portanto, não podem ser “repostas”. Claro que, a partir de certo momento, os governos terão de afrouxar as determinações. Porque senão as economias privadas quebrarão e, daí, além de não gerar novos empregos, parte daqueles que trabalham perderá seus empregos. Por isso, ao mesmo tempo que cuida da saúde dos indivíduos, os governos — que devem e podem investir a fundo perdido, pois seu objetivo não é lucro (seu lucro é social) — terão de adotar medidas compensatórias tanto para os pobres quanto para empresários (sobretudo pequenos e médios).
O presidente Jair Bolsonaro, talvez por ser mal informado e acreditar em teorias da conspiração — está se tornando um prisioneiro de guerras ideológicas (depois de Mao Tsé-tung, nem a China perde tempo com isso) —, não se mostra atento à crise do coronavírus. Ele está certo ao sugerir que a população rejeite o clima de histeria. Mas precisa enfatizar a gravidade da situação e deve deixar que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tome conta da situação. Se se assumir como estadista, a Bolsonaro cabe mais dizer aos brasileiros que terão apoio do governo, em termos de atendimento médico e, também, de possíveis compensações financeiras. Na crise, não se discute se o político é liberal ou não. Mas se ele contribui para atender bem, e com rapidez, a população — que, neste momento, não está preocupada com ideologias. Todos estão preocupados com a própria vida e com a vida de parentes e amigos. A vida de todos.
Quanto à economia, as previsões é que os países já estão entrando em recessão. O economista Barry Eichengreen, professor da Universidade da Califórnia, afirma que, “na melhor hipótese, haverá entre oito e dez semanas até que os casos da doença atinjam um platô. Nos Estados Unidos e na Europa, se tudo der certo, a confiança e os gastos dos consumidores só devem retomar no início do verão [em meados de junho]. Nesse ponto, metade do ano terá ficado para trás. Ou seja, na prática, já estamos em uma recessão global”.
O Credit Suisse frisa que o Brasil, que deveria crescer 1,4% em 2020, tende a não crescer. Será 0%. Com a tendência de uma nova onda de desemprego. As empresas não vão contratar e tendem a demitir, até para recuperar perdas dos dias parados, parte de suas equipes.
O sistema capitalista funciona porque é altamente conectado. Agora, por ação dos governos e do medo da população, está prevalecendo a desconexão (ainda que as pessoas estejam conectadas pela internet, várias empresas paralisaram suas atividades). Retomar a conexão tende a demorar e a afetar o sistema de crédito, dado o aumento da inadimplência das empresas e dos consumidores.
Segundo o empresário americano Mohamed El-Erian (“Valor Econômico”), “a economia vai se reerguer no momento em que as autoridades de saúde garantirem às pessoas que o novo coronavírus foi contido e a imunidade à doença que ele causa, a covid-19, aumentou. Nesse caso, a recuperação pode ser rápida, mas ainda assim não deve ser instantânea. Em suma, o principal campo de batalha é a saúde”.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, mostrou três coisas. Primeiro, bom senso, ao informar a população sobre a gravidade da crise. Segundo, ao tomar medidas rápidas de isolamento dos indivíduos. Terceiro, não cedeu, em nenhum momento, ao populismo. Ele quer garantir a sobrevivência dos goianos. E é isto o que realmente importa. Não é hora de fazer a politicazinha dos não-estadistas. O líder goiano está em sintonia fina com os habitantes de seu Estado. Pisando nos “astros”, distraído, Bolsonaro parece que está em sintonia tão-somente com Olavo de Carvalho.