É inquietante. Há meses a comunicação brasileira discute, todos os dias, as conveniências e inconveniências de um sistema de vigilância para a Amazônia, da mesma forma que trata do debate sobre o Código da Propriedade Industrial (lei de patentes), ambos os temas em foco no Congresso Nacional. Mas não aparece quase nada sobre a questão da conservação e proteção da biodiversidade, estreitamente relacionada com os dois. E, no entanto, talvez seja o ângulo mais importante para o Brasil. Para o futuro brasileiro, pois na biodiversidade podem estar os futuros alimentos, os novos materiais (que substituirão o petróleo, os minérios que se esgotarem) e novos medicamentos.
Há quem afirme que nos 50% do território brasileiro ainda preservados - Amazônia e Centro-Oeste - está cerca de um terço da biodiversidade do planeta, quase toda ela concentrada em área do que se chamava, até a queda do Muro de Berlim, de Terceiro Mundo: 10 das 12 áreas importantes para a biodiversidade estão em países subdesenvolvidos. Por isso, a ex-diretora do Jardim Botânico de Brasília, Anajúlia Heringer Salles, costuma dizer que "em matéria de biodiversidade nós somos o Primeiro Mundo".
Para lhe dar razão, basta conferir os números. Ninguém sabe exatamente quantas são as espécies da biodiversidade - fala-se em 5 milhões a 100 milhões. Mas é certo que, do total, apenas 1,4 milhão de espécies já foram identificadas, aí incluídos 751 mil insetos, mais de 300 mil plantas, mais de 30 mil protozoários, quase 20 mil peixes, mais de 25 mil algas, quase 10 mil pássaros, 4 mil bactérias e assemelhados, uma quantidade espantos de fungos. Como cada espécie tem entre mil e 400 mil genes, são praticamente infinitas; as possibilidades de avanços científicos a partir da utilização, troca ou combinação de fatores contidos nesses organismos. O que significará, então, deter um terço dessas possibilidades?
Na Eco 92, no Rio de Janeiro, aprovou-se uma convenção sobre a preservação e proteção da biodiversidade - um documento importante, porque pela primeira vez reconheceu aos países detentores das espécies da biodiversidade a soberania sobre essas espécies e o direito de partilhar os , resultados de sua exploração científica e comercial; ao mesmo tempo, previu a obrigatoriedade de acordos entre empresas e países para explorar essas espécies.
Mas resta um problema: como provar que esta ou aquela espécie, este ou aquele organismo, a partir dos quais se desenvolveu um produto, pertence a este ou aquele país? E isso é decisivo.
Hoje, quase toda a pesquisa centrada no aproveitamento da biodiversidade ocorre nos países mais desenvolvidos - que depois vendem ao mundo todo as aplicações comerciais, sob a forma de sementes, produtos farmacêuticos, novos materiais, etc. Mas de onde saiu o conhecimento originário? E as espécies? O Grupo Internacional de Assuntos Indígenas calculou há poucos anos em mais de US$ 40 bilhões o valor dos produtos derivados de conhecimentos indígenas da flora que se comercializam anualmente no mundo. Thomas Lovejoy, da Smithsonian Institution, situou em US$ 200 bilhões/ano o valor de produtos das indústrias químicas e farmacêuticas obtido a partir de biotecnologias centradas em vegetais, animais e microorganismos, em sua maior parte originários dos países mais pobres. Só o comércio mundial de sementes - estima o cientista Darrel Posey - chega à casa dos US$15 bilhões/ano.
Neste ponto, pode entrar também na discussão o espanhol José Esquinas-Alcazar, da Comissão de Recursos Genéticos, Vegetais da FAO (Organização para a Alimentação e a Agricultura, das Nações Unidas), para dizer que mais de metade das - 20 variedades de alimentos mais importantes que existiam no início do século já se perderam, aí incluídos arroz, trigo, milho, aveia, cevada, feijão e ervilha. Cada uma delas, com genes únicos, específicos, insubstituíveis para sua adaptação aos tipos de solo, aos climas, às pragas, etc. É o problema da padronização de sementes, com todas as conseqüências para o plantio, o uso de fertilizantes e defensivos, a colheita, o transporte, a armazenagem, a comercialização - já comentados neste espaço, na edição de 30 de janeiro último.
Quando se somam as conseqüências de dois processos - desmatamento de florestas tropicais e padronização de espécies - chega-se a um resultado preocupante: segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), pelo menos 25% das espécies vivas podem desaparecer nos próximos 20 anos. Porque o desmatamento das florestas tropicais prossegue à razão de 17 milhões de hectares por ano (quase 500 quilômetros quadrados por dia; uma cidade de São Paulo a cada três dias). Na Amazônia brasileira, o último dado, de 1991, aponta um desmatamento anual de 11 mil quilômetros quadrados.
Não é raro que nas poucas discussões sobre o tema algumas vozes digam que não têm tanta importância as perdas, se tantas espécies ainda sobrevivem. Sem lembrar que cada uma delas é única. E que cada espécie é parte de uma cadeia reprodutiva e de uma cadeia alimentar: se desaparecem outras espécies da cadeia, as demais também ficam ameaçadas. E essa é uma das razões pelas quais deveríamos inverter a ótica com que costumamos avaliar as culturas indígenas: não são elas que precisam de nós; nós é que dependemos delas, na medida em que essas culturas - e apenas elas - têm demonstrado a capacidade de preservar ecossistemas inteiros (basta olhar o mapa-múndi para ver onde estão as áreas preservadas: é onde vivem essas culturas). Se é assim, até por conveniência nossa, deveríamos proteger as culturas capazes de preservar o banco genético capaz de assegurar o nosso futuro, que está nas reservas indígenas. Ainda mais porque parece longínquo o dia em que teremos de fato condições de trabalhar com competência - e recursos - essa questão. O Brasil investe muito pouco em ciência e tecnologia, entre 0,6 e 0,7% do PIB, segundo o ministério respectivo (que PIB? de 400,600 ou 900 bilhões de dólares?), contra 2,8% nos Estados Unidos e no Japão, que têm PIBs muito maiores. Estamos aplicando US$ 15 per capita (menos que a Índia e o México), contra 619 do Japão, 576 da Alemanha, 507 dos Estados Unidos. Então, seria conveniente preservar a biodiversidade contida nas reservas indígenas, até termos condições de conhecê-la e aproveitá-la.
E não é tudo. Enquanto não conseguimos propor e concretizar a discussão correta, outros países correm quilômetros à nossa frente, até dentro do nosso espaço. Por exemplo: uma empresa de nome Shaman Inc., dos Estados Unidos, com capital de US$ 55 milhões, está colocando etnofarmacologistas nas florestas tropicais do mundo todo, junto a pajés e feiticeiros, para colher informações sobre ervas e outros materiais e processos que eles utilizam em seus tratamentos de doenças, infecções, ferimentos, etc; as informações são levadas a computadores, que as cruzam e confrontam; quando a mesma informação aparece em vários lugares, a erva ou material é levado à pesquisa de laboratório.
Mais complicado ainda, enquanto sequer conseguimos trabalhar com a biodiversidade vegetal mais aparente, pesquisadores de laboratórios de vários países estão recolhendo ao redor do mundo microorganismos encontráveis no solo de dezenas de nações, assim como materiais contidos em fontes surpreendentes, como orelhas infectadas de gatos, entranhas de insetos e até água benta de igrejas. Em cada uma dessas fontes - revela o cientista Pat Ron Mooney na revista Alternativas (publicada no Brasil pela Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa) - podem estar bactérias e outros microorganismos dos quais se extrairão novos medicamentos e materiais.
Esse cientista pesquisou nos arquivos da American Type Culture Collection, nos Estados Unidos, onde os laboratórios farmacêuticos e outras empresas depositam fragmentos de vida coletados em muitos lugares, quase todos eles já patenteados. Já são 60 mil amostras, colhidas em solos, esgotos e outros lugares estranhos, que vão de lêvedos e algas a linhagens de cédulas humanas e vírus, de plantas, fungos e protozoários ao sangue de animais e pessoas. Todas elas estocadas num depósito de materiais vivos que pertence ao Serviço de Marcas e Patentes dos Estados Unidos.
Do México, por exemplo, saíram fungos do solo já utilizados na produção de testosterona; bactérias retiradas do olho de um cão doente; lama de praia; água benta de igreja, água de estações termais; e secreções das narinas de um cavalo. Da Papua e Nova Guiné, saíram fungos para a produção de esteróides. Do Egito, Filipinas e Índia, bactérias do solo para a produção de antibióticos. Do Brasil foram recolhidas 258 amostras, entre elas uma ervilha a partir da, qual se patenteou um inibidor da renina; uma bactéria do solo que gerou materiais para produzir hedamicina; outros microorganismos do solo que geraram materiais para medicamentos antitumorais; a folha da seringueira, da qual se extraiu uma película protetora de materiais.
A coleção é fantástica. Inclui ainda amostras de coração e fígado de lagartos, sangue da preguiça de três dedos, pústula de mão humana, lesão ulcerosa de perna humana, pelos de rato espinhoso e por aí afora.
E nesse ponto se retorna ao início: como se vai proteger a biodiversidade brasileira, seja na Amazônia e Centro-Oeste, seja no âmbito da lei de patentes? Ainda uma vez, não se trata de xenofobia. Trata-se de pensar nos números da balança comercial e da balança de serviços. E trata-se de política de ciência e tecnologia e de política industrial.
* Jornalista.
Notícia
Gazeta Mercantil