Especialistas se dividem sobre a difícil questão
Os jovens de hoje eram muito novos, em 1989, para conhecer a polêmica em torno do combate à epidemia de aids no Brasil. Mas, neste mês, eles puderam ver de perto o conflito entre pontos de vista em dois episódios semelhantes. Após serem divulgados pela imprensa como ação de apologia às drogas, uma cartilha sobre o uso seguro de cocaína, distribuída há três anos pela ONG responsável pela Parada Gay, e um folheto sobre os efeitos do ecstasy elaborado por uma pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) foram retirados de circulação para "análise técnica".
As medidas espantaram os profissionais da área, mas deram força a um debate ainda pouco aprofundado: por que o Brasil, que tem um programa de combate ao vírus HIV exemplar, ainda está engatinhando quando o assunto é a redução dos danos causados pelas drogas?
O médico Fábio Caldas de Mesquita, um dos responsáveis pelo primeiro programa de DST/aids no País, explica que "o programa ficou em torno da epidemia da aids. É um aspecto importante, mas não o único". Para ele, a crítica de que o material faz apologia às drogas "coloca na berlinda uma política pública com resultados comprovados".
Tampouco ajuda o fato de que, entre os cerca de 250 programas apoiados pelo Ministério da Saúde, de acordo com Mesquita, 230 deles estejam ligados somente à prevenção da aids e ao uso de drogas injetáveis. "O governo ainda não está financiando programas que abordem outras conseqüências, como violência, overdose, exclusão."
Presidente da Rede Paulista de Redução de Danos, Domiciano Siqueira afirma que redução de danos é diferente de apologia. "Apologia é um crime e deve ser punido. Redução de danos são estratégias que reduzem a violência e dão responsabilidade ao usuário." Para Mesquita, há duas maneiras de enfrentar o problema das drogas. A primeira é admitir que é um fenômeno com uma série de impactos e que se pode no máximo reduzir o dano causado. A outra é "às vezes admitir o problema, mas ter como única solução a abstinência".
Há, porém, especialistas que vêem perigo no programa. "Não é possível dizer que existe dose segura, pois não se sabe a concentração das substâncias", afirma Fábio Bucaretchi, do Centro de Controle de Intoxicações da Unicamp .
Gabriel, 24 anos, tentou parar de usar maconha e cocaína quando, aos 17, percebeu que "só poderia cumprir um papel político na sociedade se fizesse uso responsável". Mas, após cinco meses de tratamento, viu que só aumentava a vontade. Ele resolveu aplicar a redução de danos, que compara com "uma corda a qual se apega". Hoje, controla a freqüência de consumo, tem trabalho e vida estáveis.
Estatísticas mundiais afirmam que tratamentos clássicos de abstinência têm 30% de sucesso. "Do ponto de vista da saúde pública, isso é um fracasso", diz Mesquita. A redução de danos, para ele, não substitui a abstinência, mas serve para atingir os outros 70%.
Redutores de danos vão a campo
Programa que começou em Santo André com prostitutas se tornou exemplar
O trabalho de campo da equipe do programa de redução de danos de Santo André é feito diariamente, à tarde e à noite, em várias regiões da cidade e com públicos diferentes. Quando não vão com os kits, os redutores de danos investem o tempo conversando com a população atendida, que acolhe a equipe com amizade e até a defende de usuários hostis. "Temos dias de distribuição e dias de acolhimento", explica a coordenadora da divisão, Sílvia Moreira da Silva.
O conceito chegou ao governo de Santo André, no ABC, há dez anos. Hoje, o programa é exemplo nacional e premiado, graças à abordagem do usuário de drogas como cidadão e portador de direitos humanos, em vez de doente, criminoso ou pecador. A idéia, segundo o coordenador de saúde mental do município, Décio Castro Alves, é a obrigação do agente sanitário de incluir as pessoas que procuram o serviço.
O programa custa entre R$ 15 mil e R$ 20 mil por mês, um valor considerado pequeno. "Mas o que é caro quando falamos de sobrevivência de pessoas?", questiona Décio.
Quando foi implantada, em 2002, a divisão de redução de danos tinha dois públicos específicos: prostitutas e meninas vítimas de exploração sexual. Com o tempo, porém, a demanda de outros grupos, como os travestis, e de órgãos municipais de educação, habitação e assistência social, ampliou o programa. Hoje, além de distribuir os insumos do kit sugerido pelo Ministério da Saúde, com camisinha e seringas descartáveis, a equipe de 10 pessoas também fornece o "kit crack" para crianças de rua, com cachimbo descartável, chocolate, mel e água de coco, entre outros. A pedido das prostitutas, também são distribuídas luvas e gel lubrificante.
Em 2006, foram mais de 2.700 atendimentos por mês, número que já aumentou este ano, pois as ações foram incorporadas ao Programa de Saúde da Família (PSF).
O impacto individual, porém, é difícil de mensurar. Para Rochelle Martins, 46, o programa mudou sua vida. Depois de perder um filho e um irmão para as drogas, ela era uma das prostitutas atendidas pelo programa quando foi selecionada para integrar a equipe. "Como eu já tinha vínculo com essa população, isso deu mais facilidade de acesso ao programa", conta ela.
Folheto trazia dicas de uso
Nas últimas semanas, duas iniciativas de redução de danos foram contestadas
A pesquisadora Stella Pereira de Almeira ainda não sabe se vai concluir seu projeto pioneiro no Brasil de redução de danos para o uso do ecstasy. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), financiadora da pesquisa, suspendeu a bolsa no dia 18, enquanto investiga as "denúncias veiculadas pela imprensa". O projeto incluía a distribuição de folhetos com dicas de como reduzir os riscos do consumo da droga - uma delas é tomar metade da dose, esperar os efeitos e só depois decidir se toma a outra metade. As análises devem durar até 19 de julho.
Segundo ela, seu projeto levou cerca de três meses para ser aprovado pela Fapesp, e todo o cronograma e conteúdo eram de conhecimento da instituição. A própria distribuição do folheto, elaborado após extensa pesquisa com usuários e não-usuários de ecstasy, estava prevista para terminar em junho, quando iniciaria a fase de avaliação dos resultados.
O ecstasy foi escolhido devido ao crescente consumo. Stella explica que desenhou seus folhetos de maneira a ganhar a confiança dos usuários. "Se eu escrevo 'droga mata' e ele já usou e não morreu, o folheto fica desacreditado. É melhor dizer que 'droga pode matar'."
Outro caso
Os organizadores da Parada Gay de São Paulo, realizada no último dia 10, pretendiam distribuir 40 mil cartilhas com dicas sobre como usar drogas. Para evitar a transmissão de doenças, recomendava-se por exemplo não usar notas de dinheiro enroladas para cheirar cocaína - o indicado era utilizar canudos individuais - e não compartilhar cigarros de maconha.
Os panfletos, com as marcas das secretarias Estadual e Municipal da Saúde e do Ministério da Saúde, foram recolhidos dois dias antes da Parada Gay pelos organizadores do evento .
O que diz a Lei
Portaria Nº 1.028 (2005): define que ações de redução de danos serão voltadas "a usuários ou a dependentes que não podem, não conseguem ou não querem interromper o referido uso, tendo como objetivo reduzir os riscos associados sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo"
Alguns conteúdos obrigatórios das ações: informações sobre possíveis riscos e danos, desestímulo ao compartilhamento de instrumentos, orientação sobre prevenção e conduta em caso de intoxicação aguda (overdose)
Define-se também que, nas ações, "devem ser preservadas a identidade e a liberdade de decisão do usuário ou dependente ou pessoas tomadas como tais"
Lei 11.343/2006: define que quem portar droga para uso pessoal não poderá ser punido com prisão, mas com pena alternativa