Estudo mostra que dose 4 vezes maior do que recomendada, reduz em 78% risco de morrer se usada assim que paciente interna
O anticoagulante heparina reduz em 78% o risco de morrer por complicações da Covid-19 se administrado em dose terapêutica assim que o paciente chega ao hospital com sinais de insuficiência respiratória, indica estudo publicado na última quinta-feira (14) no Bristish Medical Journal.
Atualmente, a OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda para esses casos apenas uma dose profilática do fármaco (indicada para prevenir trombose), que é quatro vezes menor que a dose terapêutica e não mostrou benefícios no ensaio clínico randomizado. A pesquisa envolveu 465 pacientes atendidos em 28 hospitais de seis países, entre eles o Brasil.
“A gente acredita que esses resultados devem mudar a prática clínica”, diz à Agência FAPESP a médica Elnara Negri, coautora do artigo e integrante das equipes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e do Hospital Sírio-Libanês.
A pesquisadora ressalta, porém, que a recomendação não vale para todo mundo que for diagnosticado com a COVID-19. “O tratamento é indicado apenas para quem for internado e somente sob supervisão médica. Se uma pessoa tomar anticoagulante sem necessidade ou orientação pode sangrar até morrer.”
Participaram do ensaio clínico pacientes de ambos os sexos, com idade média de 60 anos, que deram entrada no hospital com saturação de oxigênio igual ou inferior a 93%. O objetivo foi avaliar o efeito da heparina sobre vários possíveis desfechos da infecção pelo SARS-CoV-2. Além de redução na mortalidade, portanto, buscou-se observar se o tratamento reduziria a necessidade de ventilação não invasiva (com cateter de alto fluxo ou máscara de oxigênio), de intubação e de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Os voluntários foram divididos em dois grupos, um tratado com a dose terapêutica e outro que recebeu apenas a dose profilática (grupo controle). O efeito sobre os desfechos foram avaliados 28 dias após a administração do fármaco.
“Não vimos diferença expressiva em termos de necessidade de internação em UTI, de ventilação não invasiva ou de intubação. Mas o número de mortes foi significativamente menor no grupo que recebeu a dose terapêutica. E a ocorrência de sangramentos importantes, que foi o principal efeito adverso observado no estudo, foi muito baixa. Ou seja, a terapia é segura”, afirma a médica.
Os resultados evidenciam ainda que, para trazer benefícios, a heparina deve ser administrada entre o sétimo e o 14o dia após o início dos sintomas. Estudos anteriores já haviam mostrado que a anticoagulação não traz resultados importantes quando é feita após a internação em UTI.
A médica destaca que os benefícios nessa fase da doença foram observados apenas com o uso de heparina injetável. Anticoagulantes ministrados por via oral não surtiram efeito. “Isso possivelmente se deve ao fato de esse fármaco também ter efeitos antivirais e anti-inflamatórios já confirmados no contexto da COVID-19. A boa notícia é que se trata de uma droga barata e disponível no SUS [Sistema Único de Saúde].”
Primeiras evidências
Em parceria com os colegas do Departamento de Patologia da FM-USP Marisa Dolhnikoff e Paulo Saldiva, Negri foi uma das primeiras pessoas no mundo a levantar a hipótese de que distúrbios de coagulação sanguínea estariam na base dos sintomas mais graves da COVID-19 – entre eles insuficiência respiratória e fibrose pulmonar. O grupo publicou o primeiro artigo da literatura científica que descreveu “evidências patológicas de fenômenos trombóticos pulmonares em COVID-19 grave” (leia mais em: agencia.fapesp.br/33175).
“O vírus entra pelo sistema respiratório e alguns organismos conseguem contê-lo antes que chegue aos alvéolos pulmonares. Mas quando ele invade os capilares que irrigam o pulmão começa a fazer buracos no endotélio [camada de células que reveste a parte interna dos vasos] e isso faz com que o sangue comece a empelotar. Formam-se microtrombos que impedem a passagem do sangue para as estruturas pulmonares onde ocorrem as trocas gasosas”, explica.
A heparina ajuda a evitar que isso ocorra por dois mecanismos: o fármaco desfaz os microtrombos que impedem o oxigênio de passar do alvéolo para as pequenas artérias pulmonares e, além disso, ajuda na recuperação do endotélio vascular.
Estudos publicados no último ano indicam que aproximadamente 15% dos infectados pelo novo coronavírus desenvolvem alterações na coagulação sanguínea. “Essa é a população que pode se beneficiar do tratamento com heparina, mas o timing é fundamental”, diz Negri.
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