Por motivos trágicos, uma nova oportunidade de Goiás se tornar referência em pesquisa genética surgiu, dessa vez no interior do Estado, em Faina. É onde está, no pequeno povoado de Araras ? confirma um dos maiores especialistas do assunto no Brasil, Carlos Menck ?, a maior comunidade reunida no mundo a manifestar o xeroderma pigmentoso (XP), doença genética rara, acelerada pelo sol. Menck conta que só há grupos na Guatemala e na África, com menos indivíduos e tempo de vida inferior.
Uma corrida contra o tempo está sendo travada para amenizar o sofrimento dos portadores goianos do mal, mas o conhecimento ainda está sendo levantado e sistematizado sobre eles. Especialistas em genética e de outras áreas, ligados a organizações como o Laboratório de Reparo do DNA do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), ao Centro de Atendimento aos Radioacidentados (antiga Superintendência Leide das Neves ? a Suleide, que cuidava em Goiânia das vítimas do acidente com o césio 137), e do Hospital Geral de Goiânia (HGG), se esforçam para identificar porque há tantos casos de XP juntos em Araras ? são 23 portadores vivos e relatos de pelo menos 20 mortes.
Saber como desacelerar a doença, tratando e mapeando a raiz genética para evitar nascimentos de mais pessoas doentes é outro desafio. Entre as ações imediatas, um heredograma (mapeamento genético) das pessoas está sendo elaborado pelos pesquisadores do Laboratório de Reparo do DNA da USP para evitar as mutilações comuns à doença ? já presentes entre vários deles ?, e também que as gerações futuras dos doentes de Araras adquiram o mesmo defeito genético.
Em 2004, o POPULAR mostrou que 17 anos depois do acidente radioativo com o césio (hoje já são 23 anos), quem fazia o rastreamento e encontrava casos de câncer entre vizinhos de áreas atingidas (ignorados pelas autoridades de saúde), eram as próprias vítimas. Hoje, com a tragédia nuclear no Japão, o mundo voltou a falar do acidente ocorrido em 1987, em Goiânia, mas muitos se perguntam onde estão as contribuições, os estudos continuados acerca dos efeitos genéticos da radiação que matou 4 pessoas imediatamente e expôs 700 outras à radiação ? das quais 55 por altas doses ?, além de causar sequelas individuais e trauma psicológico coletivo que atingiu não apenas os descendentes das vítimas.
A surpreendente presença do grande número de doentes de XP no mesmo município pode, portanto, ser novo estimulante para que surja interesse das autoridades sanitárias brasileiras em instalar um complexo para pesquisas da área genética no Estado. É nessa ansiedade que vivem as vítimas da doença, inclusive as que não têm proximidade nenhuma com Araras, mas que também sofrem de xeroderma pigmentoso, e estão espalhadas em diferentes localidades do País. Muitas até buscando por conta própria alguns tratamentos.
Sequelas
O aposentado João Ribeiro da Silva, 53 anos, portador de XP que mora no bairro de Campinas, em Goiânia ? e sem parentesco nenhum com os doentes do pequeno distrito de Faina ?, é um exemplo. Ele fez, por conta própria, uso de uma planta do Cerrado, creditando melhoras a ela contra o terrível avanço da doença.
João descobriu na infância ser portador do mal que atinge 4 de 8 irmãos da família. A farmacêutica Aurides da Silva, 63, uma das irmãs de João, moradora do Parque das Laranjeiras, descobriu que sofria de XP aos 5 anos de idade. "Aos 8 anos fiz a primeira cirurgia. Hoje já são mais de 30, entre incisões menores para remoção de tumores e outras cirurgias maiores".
Como os moradores de Araras ? muitos dos quais usuários de próteses na face para minimizar os danos já decorrentes dos tumores ?, João e Aurides trazem no rosto as marcas do que dizem. No íntimo, têm a esperança de que outras pessoas, como os doentes mais jovens de Faina, e até o irmão Maurício Ribeiro da Silva, morador de Jaraguá, paralisem o avanço do XP. Dos três, Maurício é o único que ainda apresenta sinais pouco agressivos do xeroderma.
Após mais de 50 procedimentos cirúrgicos na face e outras regiões do corpo para combater os tumores cancerígenos do XP, João tem esperanças de que alguém pesquise mais sobre a doença e sobre a planta. "Se os efeitos positivos (da erva) compensarem, a medicação poderia ser recomendada a doentes avançados", torce o aposentado.
Deide Freire de Andrade, 41 anos, é um dos doentes de Araras, já aposentado por causa do xeroderma. A doença o afetou a ponto de exigir uma prótese para proteger partes do nariz e da boca, removidas por causa dos tumores.
Para os mais novos, como o primo de Deide, Evando Aparecido Freire, de 29 anos, qualquer novidade científica sobre a doença é bem-vinda. "Trabalho em borracharia, com solda, exposto a calor e sol, tudo o que não é recomendável no nosso caso", diz ele, que por enquanto assiste ao avanço das pintas típicas do XP junto aos olhos.
O mesmo ocorre com Cláudia Sebastiana Jardim, 33 anos. Vivendo em Araras, ela viu apreensiva a morte de um irmão de 21 anos de idade, vítima do problema genético que atinge 4 de sete irmãos.
Além de próteses em alguns casos (mais graves), o XP exige de todos os portadores proteção contra o sol, que é um acelerador da doença. Por isto, os portadores carecem de muito protetor solar, roupas especiais e áreas cobertas. "O povoado não conta sequer com uma quadra coberta para as crianças", alerta a médica Sulamita Chaibub, coordenadora do setor de Dermatologia do HGG que acompanha as famílias desde a identificação do grupo.
Para manter os cuidados preventivos, os pacientes de Araras precisam de doações de bloqueadores solares, óculos com proteção contra raios solares, película para aplicação nas janelas de casas e veículos e roupas de manga longa (tecido 100% algodão e com cores claras).
Quem encaminha as doações que chegam, e está organizando o grupo, é Gleice Francisca Machado. É ela quem aponta que, mesmo após a intervenção do Ministério Público estadual e de várias reportagens sobre o drama, as famílias ainda têm problemas com o transporte para o tratamento em Goiânia ? com uma só viagem por semana. Recentemente ela lançou o livro Nas asas da esperança ? A história de dor e resistência da comunidade de Araras, com renda para a Associação dos Portadores do Xeroderma Pigmentoso (Apoderma).
"Vida ao sol é paradoxo a XP"
Só em mais dois locais do mundo há registros de grupos de portadores de xeroderma pigmentoso (XP) ? menores que o de Araras, em Faina. Revela nesta entrevista Carlos Frederico Menck, doutor em Biologia Genética, estudioso do XP há quatro décadas, e professor titular do Laboratório de Reparo do DNA do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Desde julho, quando conheceu a realidade dos doentes de Araras, ele apela por remédios e atendimento adequado às vítimas.
O que mais chamou a atenção foi a imensa claridade, o sol inclemente. Não pelo calor, mas pela quantidade de luz e muito raio ultravioleta. Isso é um paradoxo com a presença de pacientes XP.
Então, a incidência solar é mais determinante para que eles estejam com alto nível de lesões?
Sem dúvida. A incidência solar é muito forte em Araras, mas a deficiência do gene é o que faz com que tenham lesões na pele. Todos nós temos problemas na pele, devido a lesões no material genético, mas nesses pacientes falta a proteína codificada por um gene que ajuda as células a resolver o problema dessas lesões.
O senhor conhece outra comunidade assim, ou a de Faina é a maior reunida no mundo?
Há dois outros relatos no mundo de alta concentração de pacientes XP, uma tribo indígena da Guatemala, mas são 12 pacientes e eles não vivem mais do que 10 anos, e no leste da África, onde há também uma alta frequência de pacientes XP negros, mas esse estudo ainda não foi publicado. Acredito que a concentração de pacientes em Araras seja mais alta. São cerca de 20 pacientes em um total de 1 mil habitantes. Para comparação, na França existe o total de 70 pacientes (são mais de 65 milhões de habitantes).
O problema de Araras deve-se certamente a casamentos entre primos e ao isolamento da região. O gene mutado está naquela região e, torna-se comum, primos de terceira ou quarta geração terem o mesmo problema.
Não estamos fazendo um mapeamento clássico. Na verdade, com o uso das células de pacientes analisamos a sensibilidade à luz ultravioleta, capacidade ou não de reparo de DNA e análise de oito proteínas codificadas por genes que sabidamente levam a XP. Identificamos o gene afetado em três dos pacientes, que deve ser o mesmo em todos os pacientes da região. Eu suspeito que afete outras pessoas no Estado e no Brasil. Agora vamos sequenciar o gene e identificar a mutação exata.
Estamos pesquisando o que ocorre em termos de reparo de DNA de uma forma geral em células humanas. A pesquisa visa compreender porque os seres humanos desenvolvem câncer, e muito foi descoberto no mundo graças a células de pacientes XP. No caso dos pacientes XP de Araras, esperamos que a identificação da mutação permita fazermos uma análise de todos da comunidade para sabermos quem é portador, o homozigoto, e, assim, portador da síndrome, ou heterozigoto, que são os que podem ter filhos XP. Os dados servirão ao aconselhamento genético das famílias.
É verdade que os estudos vão durar dois anos?
Sim, o projeto inicial é de dois anos, e quem está financiando é a FAPESP. Um projeto específico foi aprovado pelo CNPq. Espero que traga um retorno direto a eles. Vários pesquisadores estão envolvidos no projeto, no trabalho com as células dos pacientes de Araras.
Nós identificamos o gene mutado (de XP) em três famílias brasileiras, mas o ganho para os pacientes foi muito pequeno, infelizmente. No caso da comunidade de Araras, como o gene afeta muitas famílias, talvez o ganho seja um pouco maior, no sentido de ajudar as famílias a saber o que os aflige. O mais importante mesmo para eles é se proteger do sol. Espero que a sociedade ajude esses pacientes a se proteger. Eles precisam de cremes solares, o mais forte possível, fator 60 ou 100, receber tratamento dermatológico no local. Talvez até devam ser promovidos estágios de residência médica, com atendimento periódico a Araras. Eles precisam receber tratamento psicológico. No aconselhamento genético vamos colocar aos casais eventuais qual o risco genético.