Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) descobriram que o parasita causador da doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi , não produz os aminoácidos serina e treonina, substâncias essenciais para sua sobrevivência. Os dois compostos são “sequestrados” nos hospedeiros do parasita, como os seres humanos, ajudando a se manterem mesmo em condições desfavoráveis. Os achados da pesquisa poderão contribuir para a criação de medicamentos que bloqueiam o metabolismo e destroem o parasita de forma mais eficaz e não tóxica. A pesquisa é descrita em artigo da revista científica mSphere , publicada pela American Society for Microbiology,.
O pesquisador Mayke Alencar, primeiro autor do artigo, explica ao Jornal da USP que a doença de Chagas afeta milhões de pessoas, principalmente em regiões pobres, e as opções terapêuticas atuais são limitadas e tóxicas. “Entender como o parasita depende de aminoácidos do hospedeiro para preencher as suas necessidades metabólicas pode revelar seu ‘calcanhar de Aquiles', abrindo caminho para medicamentos que bloqueiem sua fonte de nutrientes sem prejudicar os seres humanos”, afirma. “Estudos genômicos prévios permitiram identificar enzimas potencialmente envolvidas no processamento metabólico desses aminoácidos, sugerindo um mecanismo adaptativo para otimizar seu uso.”
De acordo com o pesquisador, o metabolismo compreende uma complexa rede de reações químicas, que varia entre as espécies em função de seu contexto evolutivo. “Parasitas, por exemplo, ao obterem recursos nutricionais diretamente de seus hospedeiros, frequentemente apresentam perdas adaptativas relacionadas à produção de enzimas e metabólitos [produtos do metabolismo de organismos vivos]”, descreve. “Dessa forma, tornam-se dependentes da captação de nutrientes essenciais.”
“O parasita exibe uma notável adaptação metabólica para sobreviver em ambientes contrastantes. Há evidências de que faz uso de carboidratos, alguns aminoácidos, como prolina e histidina, e ácidos graxos do inseto vetor como fontes energéticas”, observa Alencar.
O vetor da doença de Chagas é o triatomíneo, inseto conhecido popularmente como barbeiro. “Apesar dos avanços, o conhecimento sobre a bioquímica do parasita ainda é limitado, pois persistem lacunas, como entender a obtenção de energia em ambientes pobres em glicose, a regulação do metabolismo sob estresse e o uso de aminoácidos como a serina e a treonina para sobreviver.”
“Os aminoácidos são moléculas muito versáteis: além de serem essenciais para construir proteínas, eles atuam em funções vitais das células, como a formação de componentes da membrana celular, a manutenção do DNA, a resistência a condições de desidratação interna das células e até a obtenção de energia em forma de ATP a partir de nutrientes”, relata o pesquisador. “Essas moléculas são ‘sequestradas' pelo parasita de suas vítimas.”z
Ciclo de vida do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, entre os hospedeiros (inseto e humano), indicando os estágios de desenvolvimento do parasita – Imagem: Cedida pelo pesquisador Mayke Alencar
Produção de energia
Os pesquisadores descobriram que o Trypanosoma cruzi não possui as vias clássicas de síntese de serina e treonina, o que direcionou a investigação para os mecanismos de captação desses aminoácidos no parasita. “Identificamos um gene associado ao processamento metabólico de ambas as moléculas, sugerindo uma conexão indireta com a produção de energia (ATP)”, enfatiza Alencar. “Para validar essa hipótese, expressamos a proteína codificada por esse gene a partir do material genético do parasita e demonstramos em laboratório que a reação enzimática prevista ocorre tanto para a serina quanto para a treonina.”
“Em seguida, exploramos o papel desses aminoácidos na produção energética celular, tanto em condições fisiológicas normais quanto sob estresse nutricional, e observamos que ambos atuam de forma essencial na manutenção do ATP no Trypanosoma cruzi ”, relata o pesquisador. “Os resultados do trabalho, que aborda o metabolismo de serina e treonina de forma integrada, desde a captação até a excreção de subprodutos, evidenciam que a dependência do parasita em relação a esses aminoácidos não se restringe à síntese de moléculas, mas é estratégica para sua sobrevivência em ambientes hostis.”
Segundo Alencar, o trabalho oferece oportunidades estratégicas para o desenvolvimento de terapias inovadoras contra a doença de Chagas, focando em vulnerabilidades metabólicas exclusivas do parasita. “Os achados podem ser traduzidos em avanços práticos, por exemplo, o bloqueio da captação de aminoácidos”, sugere.
“Como o parasita não sintetiza serina e treonina, fármacos que inibam os transportadores específicos do parasita desses aminoácidos poderiam ‘matá-lo de fome' privando-o de recursos essenciais” – Mayke Alencar
“Outra possibilidade é inibição da enzima que processa serina e treonina para produção de energia, um alvo terapêutico promissor, e inibidores específicos poderiam interromper a geração de ATP, comprometendo a sobrevivência do parasita”, aponta Alencar. “Também pode ser testada a seletividade e redução de efeitos colaterais, como os humanos sintetizam serina, atacar a captação ou processamento desses aminoácidos no parasita tende a ser menos tóxico para o hospedeiro, diferindo de tratamentos atuais, como o benzonidazol, que tem alta toxicidade.”
“Um enfoque possível é a exploração de estresse nutricional, em situações de competição por nutrientes, como dentro de células hospedeiras, o parasita depende ainda mais dessas vias alternativas, tornando viável o uso de drogas que intensifiquem o estresse metabólico”, diz o pesquisador. “Por fim, há a sinergia com terapias existentes, esses alvos podem ser integrados a esquemas terapêuticos combinados, reduzindo o risco de resistência.” “Este trabalho não apenas avança o conhecimento da biologia básica do parasita, mas também ilumina caminhos para intervenções práticas, combinando inovação científica com urgência de saúde pública”, conclui Alencar.
A pesquisa foi realizada no Laboratório de Bioquímica de Tryps (LaBTryps) do Departamento de Parasitologia do ICB, com a supervisão do professor Ariel Mariano Silber, e a participação dos pesquisadores Richard Girard, Marcell Crispim e Gustavo Baptista. O trabalho foi realizado em colaboração com o grupo do professor Frederic Bringaud, da Universidade de Bordeaux, na França, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
O artigo The role of l-serine and l-threonine in the energy metabolism and nutritional stress response of Trypanosoma cruzi está disponível on-line e pode ser lido aqui
Mais informações: mayke@usp.br, com Mayke Alencar
Matéria – Jornal da USP
Texto: Júlio Bernardes
Arte: Simone Gomes