Alicerçado no tripé ensino, pesquisa e assistência, o Hospital do Câncer transformou-se, nestes 50 anos, numa instituição de referência internacional. E mostrou que é possível e viável fazer Ciência e Medicina de ponta atendendo a toda população, sem distinções.
No final da década de 80. o Brasil sofreu os abalos da onda globalizante que varria o mundo, cujo efeito mais significativo foi a abertura de sua economia. Para inserir-se nessa nova ordem internacional, as empresas brasileiras tiveram que se reestruturar, rever seus focos e estratégias, fixar claramente suas missão, visão e seus objetivos. Para atender às exigências dessa nova ordem, havia a necessidade de se tomarem mais produtivas e competitivas, tentando atingir rigorosos padrões mundiais de qualidade. Nesse processo de realinhamento estratégico, muitas empresas nacionais sucumbiram, outras se associaram ou foram absorvidas por concorrentes mais preparados, daqui ou do exterior.
Se no primeiro momento essas mudanças concentraram-se no setor industrial, não tardou para que as mesmas exigências de competitividade fossem aplicadas ao setor de comércio e serviços. Obviamente, os segmentos de medicina e saúde também tiveram que se adequar aos novos tempos, reavaliando seus métodos e adotando sistemas mais avançados de gestão.
Essas reflexões não são de nenhuma fornia aleatórias, mas muito úteis para entendermos a trajetória do 50 anos do Hospital do Câncer de São Paulo, completados no ano passado. A instituição teve origem na obstinação de um jovem cirurgião paulista, António Prudente, que já em 1933 iniciava uma verdadeira cruzada contra a doença, mobilizando os diversos setores da sociedade, com a publicação de
memorável série de cinco artigos no jornal "O Estado de S.Paulo", onde defendia que o câncer tinha cura c era necessário buscá-la. Naqueles tempos, era ainda mais difícil lutar contra o câncer. Além da carência de estudos sistemáticos sobre a doença, que sequer era considerada objeto de especialidade nas faculdades de Medicina, havia ainda barreiras sociais e culturais quase intransponíveis. Era tal o estigma sofrido pelos pacientes, que a doença nem era tratada pelo nome. palavra maldita, a que se referiam como "aquela doença" ou "coisa ruim".
Sem apoio governamental nem respaldo financeiro de qualquer entidade, Prudente organiza o primeira núcleo de médicos e colaboradores interessados na descoberta das causas e tratamentos adequados dos pacientes com câncer, fundando a Associação Paulista de Combate ao Câncer, em 1934. No final da década, agora já ao lado de sua esposa Carmen Prudente, viabiliza sucessivas campanhas de esclarecimento sobre a doença e outras para o levantamento de fundos para iniciar a construção de um hospital específico para o estudo e tratamento da doença. Em 1946, em convênio com o Hospital Japonês (Santa Cruz), funda a primeira Clínica de Tumores. No ano seguinte, já era lançada a pedra fundamental do futuro Hospital do Câncer, em terreno cedido pela Prefeitura, entre os bairros do Paraíso c da Liberdade.
Inaugurado em 23 de abril de 1953, o hospital contava com 307 leitos c o mais avançado conjunto para diagnóstico do câncer no País. Eram 92 especialistas compondo o corpo clínico: cirurgiões, radioterapeutas, laboratoristas e outros, e um núcleo de 35 enfermeiras de alta eficiência, vindas especialmente da Alemanha, as schwesters, treinadas pela Cruz Vermelha. Por orientação de António Prudente, constituíram-se equipes multidisciplinares. que desde o início das atividades do hospital, já se dedicavam à pesquisa científica do câncer. Essa articulação entre tratamento, ensino e pesquisa possibilitou a catalogação intensiva de informações sobre a doença e a conseqüente formação de um formidável acervo. Hoje. já são mais de 400 mil fotos e desenhos, a mais completa biblioteca de oncologia do País, além do arquivo médico com mais de 300 mil casos registrados.
Essa preocupação de Prudente com a disseminação do conhecimento fez com que apenas um ano após sua inauguração, o Hospital instalasse a Escola de Cancerologia Celestino Borroul, a primeira do País, que em 1961 passou a ser considerada instituto complementar da Universidade de São Paulo. Esse papel pioneiro de articular tratamento, ensino e pesquisa científica é o grande diferencial do Hospital do Câncer em relação a outras instituições congêneres.
Esse diferencial é que possibilitou ao Hospital uma rápida evolução de uma entidade assistencial ao status de centro de excelência cientifica, por sua permeabilidade na absorção de novos métodos e tecnologias. São inúmeros os exemplos para fundamentar esta afirmação. Aí vão apenas alguns:
- O Hospital é a única entidade não-acadêmica no País a manter Curso de Pós-Graduação cm Oncologia, considerado pelo MEC o melhor na sua área e um dos quatro melhores em toda a Medicina, segundo avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação).
- Significativa produção científica de seus especialistas, com centenas de publicações anuais de livros, artigos e pesquisas em veículos especializados no Brasil e no exterior, além de participação nos principais congressos e eventos internacionais sobre oncologia.
- Sistema permanente de Gestão de Qualidade, que já obteve diversos certificados pelas normas ISO 9001 e prepara-se para a certificação de todos os departamentos do Hospital.
- O Hospital sedia, desde 1983, a filial brasileira do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. Isto, somado ao apoio fundamental da Fapesp, possibilitou que o Brasil participasse do Projeto Genoma Humano. Nesta parceria, nossos pesquisadores alcançaram mais de 1 milhão de seqüências genéticas do câncer, à frente de 15 dos 16 países que participaram do projeto liderado pelos Estados Unidos e Inglaterra. Em alguns tipos de tumores, como os de cabeça e pescoço, foram 200 mil seqüências, enquanto nos Estados Unidos foram realizadas apenas 5 mil.
- Nesses 50 anos de atividades. o Hospital do Câncer atendeu a mais de 300 mil pacientes. A doença, considerada incurável há meio século, pouco mais de uma década depois do início das atividades clínicas, terapêuticas e de pesquisa do Hospital, já acenava com a possibilidade de cura de ao menos um terço dos pacientes tratados. Hoje, esses índices saltaram para mais de 60% de esperança de cura para os adultos e 75% para as crianças, podendo alcançar até 90% para tumores com diagnóstico precoce.
- A recente parceria entre o Hospital do Câncer, Instituto Ludwig e a Dasa - Diagnósticos da América possibilitará a realização no Brasil de exames de rastreamento genético, uma das aplicações da biologia molecular. A aplicação dessa tecnologia de ponta, antes disponível apenas no exterior, permitirá a elaboração de diagnósticos mais rápidos e a custo mais baixo de tumores de origem hereditária, como os de mama, tireóide e colo-retal.
- Fortes doses de fator humano associadas à tecnologia e à multidisplinaridade de seus 250 oncologistas tornaram o Hospital do Câncer o que melhor atende aos pacientes da doença em São Paulo, conforme pesquisa realizada pela revista "Carta Capital".
- Embora seja uma instituição privada, mantida por uma Fundação, o Hospital do Câncer presta relevantes serviços públicos, pois cerca de 70% dos pacientes aqui atendidos são encaminhados pelo SUS - Serviço Único de Saúde, contrariando o mito de que hospitais que atendem pacientes do SUS são sempre deficitários.
Ao finalizar, justifica-se o preâmbulo que fizemos sobre os efeitos da globalização em nosso País. As lições que aprendemos com o impacto da onda globalizante aplicam-se tanto às instituições públicas como às privadas. Somente sobrevivem as organizações que são permanentemente permeáveis às inovações, suficientemente ágeis e flexíveis para reavaliar seus métodos e processos. Mas, principalmente, aquelas que são coerentes com os princípios e valores que nortearam sua criação.
* Professor titular de oncologia e diretor do departamento de radiologia do Hospital das Clinicas da USP, presidente do Hospital do Câncer de São Paulo e da Associação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Combate ao Câncer (ABIFCC). Também dirige o Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer no Brasil
Notícia
Gazeta Mercantil