A ciência do século 21 não será produzida nos moldes dos séculos anteriores
Carlos Henrique de Brito Cruz, físico é reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Daniel Hogan, sociólogo, é pró-reitor de Pós-Graduação da mesma Universidade. Artigo publicado em 'O Estado de SP':
A complexidade do mundo contemporâneo e a revolução que a teia mundial (o worldwide web) provoca na comunicação científica, derrubando barreiras do tempo e do espaço, mudam os limites da velocidade, do escopo e das relações sociais da produção científica.
O momento é de pensar as conseqüências dessas mudanças para as instituições de ensino e pesquisa.
Thomas Kuhn identificou, há 40 anos, duas formas distintas do 'fazer ciência'. A ciência incremental seria aquela do dia-a-dia, trabalho teórico ou do laboratório, pacientemente estendendo os limites do paradigma dominante, levando a capacidade de compreender e explicar o mundo mais um passo adiante.
A ciência revolucionária seria o salto para um paradigma mais abrangente, que dava conta do paradigma anterior ao mesmo tempo em que dá conta das anomalias, contradições e descontinuidades daquele.
O desafio para as instituições científicas é promover a ciência incremental - o grosso do trabalho científico e a fonte do progresso que este propicia - sem fechar as portas para as oportunidades que possam trazer revoluções na ciência.
Até porque, neste caso, o revolucionário nasce sempre do acúmulo de avanços incrementais. O próprio sucesso da ciência incremental, tanto em termos da sua capacidade explicativa e preditiva quanto à sua institucionalização, tende a monopolizar as atenções e os recursos.
O tamanho e a complexidade do sistema reforçam e legitimam a estrutura como ela é.
Mas precisamos cuidar também de garantir espaços para o novo, seja em novos campos científicos que poderão nascer nas interfaces de disciplinas consolidadas, para dar conta de relações que, separadamente, permitem somente abordagens parciais; ou no estudo de problemas práticos complexos cujo equacionamento requer uma visão integrada de várias disciplinas.
Esta multi ou interdisciplinaridade pode ou não levar a uma disciplina nova, com sua autonomia relativa. Problemas como a degradação ambiental ou uma agricultura sustentável não podem aguardar a institucionalização de uma nova ciência para ser tratados.
Séculos de fracionamento do conhecimento - para melhor desvendar os segredos da natureza - nos deixaram despreparados para este desafio.
Estas considerações criam desconforto nos quadros da ciência incremental.
Como julgar, como avaliar e como enquadrar um trabalho científico que foge aos cânones estabelecidos?
Como reconhecer os legítimos germes de novos caminhos científicos, de perspectivas que podem efetivamente contribuir para o avanço do conhecimento e, portanto, necessariamente para o bem-estar do homem?
Como saber o que é revolucionário e o que é devaneio de uma noite de verão?
O espectro do charlatanismo, que às vezes encontra lugar nesses interstícios do conhecimento, incomoda, legitimamente, aqueles cujo trabalho goza de normas de avaliação claras e objetivas.
É preciso aprender a viver com esta tensão entre as práticas seguras e as mais arriscadas, sob pena de bloquear o progresso da ciência, ceifando idéias novas antes de serem testadas.
Outra característica da ciência contemporânea é sua crescente desterritorialização. É verdade que a ciência moderna só existe porque as suas fronteiras nunca respeitaram os limites dos Estados nem das culturas.
Todo o aparato de revistas e congressos científicos garante uma engrenagem de comunicação que é um sine qua non do progresso da ciência.
Mesmo que a realidade do laboratório e do grupo de trabalho sejam fundamentais, a comunicação eletrônica instantânea começa a mudar esse quadro. O trabalho antes dividido entre colegas de laboratório, hoje, pode ser dividido entre parceiros distantes.
O modus operandi da ciência contemporânea, então, mostra sinais de mudança, sendo os estudos do genoma o seu exemplo mais destacado.
Torna-se possível a existência de um verdadeiro laboratório virtual, composto de unidades não mais espacialmente contíguas. Como organizar-se para a flexibilidade necessária para a futura produção científica?
Como evitar que o progresso seja amarrado por estruturas que fundamentaram os sucessos do século 20 e continuam essenciais para muitos campos científicos, mas não se prestam às demandas para arranjos institucionais mais flexíveis?
Estas questões chamam a atenção para uma das mais importantes características da ciência contemporânea, que é a sua diversidade - de objetos, de escopo e de método.
É preciso, simultaneamente, defender a continuidade do que já deu certo e providenciar as condições para que o novo possa aflorar.
O século 21 verá uma convivência do 'lobo solitário' - no seu laboratório ou gabinete - e de redes em todas as escalas, inclusive a interescala, que vão dissolvendo as fronteiras entre espaços, entre disciplinas e entre instituições.
Existem algumas experiências postas em movimento pelas agências de fomento, como o Cepid, o Pronex, o Instituto de Milênio, além dos projetos temáticos da Fapesp ou integrados da CNPq.
Mas o seu impacto ainda não foi plenamente sentido na estrutura universitária nem nos currículos.
A hora exige uma reflexão sobre os rumos da ciência, as suas condições de produção e as implicações destes para as instituições de ensino e pesquisa.
A diversidade encontrada hoje no progresso científico não permitirá respostas padrão, mas requer uma atitude aberta que respeite os ritmos de evolução da ciência incremental e da revolucionária, comprometida irretorquivelmente com as normas do método científico e com o avanço do conhecimento humano.
(O Estado de SP, 28/5)
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