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Diário Carioca

Distraídos e ansiosos: porque a luta para manter o foco tornou-se ato de resistência nas escolas e na sociedade (7 notícias)

Publicado em 31 de março de 2025

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Terra The Conversation (EUA) Gizmodo Infofix InterD Doris Pinheiro

A ansiedade sempre foi essencial à sobrevivência da humanidade. Motiva reações físicas e psicológicas que nos permitem lidar com ameaças, enfrentando-as ou fugindo delas. O problema surge quando ela se configura como um transtorno. É exatamente aí que precisamos relacionar a sua manifestação exacerbada com o período histórico atual. O modo como a ansiedade se intensifica em nossa sociedade está diretamente vinculada ao recrudescimento das forças produtivas, especialmente daquelas vinculadas à tecnologia.

As novas tecnologias digitais, especialmente os poderosos computadores que nos acompanham diariamente em nossos bolsos, produzem um estado de conexão e alerta permanente, 24 horas por dia, respondendo a demandas a qualquer hora e lugar. Essa conexão ubíqua está ligada ao agravamento da ansiedade e ao prejuízo da saúde mental.

No mundo digital, além de não se desconectar, é preciso postar sempre. No dizer de Christoph Türcke , quem não se conecta existe fisicamente, mas é como se não existisse. Isso se aplica também a lugares ou situações sociais em geral. Se determinadas situações sociais não estiverem reportadas nas redes sociais, por exemplo, é como se deixassem de existir. Estamos diante de uma nova ontologia, no sentido da definição do ser e da nossa identidade.

Quando entraram em cena os smartphones , com conexão à internet de qualquer hora e lugar, ocorreu uma ruptura inédita entre as dimensões pública e privada na história da humanidade. Até pouco tempo, seria inadmissível para um professor entrar em contato com alunos e alunas no fim de semana, que, a princípio, seria um período para descanso. Contudo, atualmente, está cada vez mais difícil deixar de entrar em contato todos os dias em função das demandas feitas.

Vive-se uma compulsão para estar cada vez mais conectado. A sociedade parece exigir isso. Posso exemplificar com o relato de uma aluna de Pedagogia, que também trabalha como confeiteira. Ela recebeu, por WhatsApp, uma encomenda de bolo após a meia-noite e optou por não responder no momento, temendo abrir precedentes para contatos fora do horário. Quando deu retorno na manhã seguinte, havia perdido a venda. O episódio ilustra a lógica do “24/7”, descrita em livro com esse título por Jonathan Crary, professor da Columbia University , nos Estados Unidos , em que a disponibilidade constante é exigida pela cultura digital, gerando tensão e afetando as relações profissionais.

A era da desatenção

Seja no ensino fundamental, no ensino médio ou na universidade, adolescentes e jovens enfrentam uma dificuldade crescente de focar a atenção nos conteúdos trabalhados em sala de aula. A proibição do celular nas escolas públicas e privadas do ensino médio é uma reação a esse desafio em expansão.

No entanto, o que estamos vendo é que a proibição de smartphones em sala de aula gera mais ansiedade e aflição. Os adolescentes precisam se conectar o tempo todo e, quando não se conectam, há uma produção intensificada de ansiedade e aflição, pois é como se estivessem fora do tempo e do espaço. E, portanto, de sua própria identidade.

Desse modo, a necessidade de conexão vai além da disposição pessoal. Ela está profundamente ligada à forma como estruturamos a vida contemporânea, especialmente nas relações de trabalho. Por isso é fundamental contextualizar o aumento da ansiedade e o uso compulsivo de tecnologias com o momento histórico em que vivemos.

Como interferir nessa realidade? A tendência global continua sendo limitar o acesso dos jovens a dispositivos móveis para promover um ambiente educacional mais favorável. A França proíbe desde 2018 o uso de smartphones e tablets em escolas para alunos de seis a 15 anos. No ano passado, Espanha e Holanda, entre outros países, proibiram celulares em sala de aula. Na Dinamarca , uma comissão sugeriu que crianças com menos de 13 anos não possuam smartphones ou tablets

A dificuldade de manter o foco também motiva reações no ensino superior, mas não se sabe quais medidas podem ser realmente bem-sucedidas. Por um lado, a aplicação de testes ao final de cada aula, como vem sendo tentado em algumas instituições, provavelmente não será uma solução, pois o aluno responderá as questões mais por receio de ser punido do que se sentir realmente motivado a aprender.

Por outro lado, se todos os estudantes usarem seus celulares durante as aulas para “surfar” na Internet, o professor poderá até perguntar o que explicou há cinco ou dez minutos e um aluno conseguirá responder, mas se for algo dito há 20 ou 30 minutos, muitos não vão lembrar com profundidade o conteúdo estudado.

Em vez de proibir, talvez fosse mais adequado investir na construção de [acordos para o uso consciente desses aparelhos], o que eu denomino como contrato pedagógico . A partir de certa idade — quem sabe por volta dos 15 anos — pode ser possível dialogar com os adolescentes, apostando em estratégias para uma aplicação coletiva e contextualizada dos smartphones , em vez de um uso dispersivo.

Uma possibilidade seria prever o uso do celular em situações específicas, como a pesquisa de conteúdos relacionados ao que está sendo trabalhado. Mais do que controlar o uso, trata-se de integrar os dispositivos ao processo pedagógico de forma consciente e compartilhada. Com crianças, definitivamente, essa conversa não seria possível na sala de aula, pois elas não podem ter acesso descontrolado às redes sociais. Se houver esse tipo de acesso, prevalecerá o que eu denomino como concentração dispersa, de tal modo que a criança dispersará seu foco de atenção em vários objetos por meio de seus celulares, fomentando o chamado comportamento multitarefa. E justamente esse tipo de comportamento precisa ser evitado nas atividades educacionais. Na verdade, para que haja aprendizagem profunda, é preciso também haver concentração profunda naquilo que está sendo estudado.

Cyberbullying e discursos de ódio

A conexão ubíqua apresenta mais complicadores. Sabemos que as plataformas de redes sociais são orientadas, principalmente, pela monetização das informações e das imagens disseminadas. Sendo assim, mensagens de cunho preconceituoso e discursos de ódio, por conterem fortes apelos audiovisuais, tendem a atrair mais visualizações, o que favorece a sua veiculação mais rápida e oferece maior potencial de rentabilidade. É uma questão de mercado, infelizmente inserida nesse contexto de maneira muito enfática, atingindo transversalmente indivíduos conectados de quaisquer idades.

Pude observar a intensidade desse impacto em pesquisas que realizei sobre manifestações de cyberbullying de alunos em relação a professores e professoras – e que deram origem ao livro “Fúria narcísica entre alunos e professores: as práticas de cyberbullying e os tabus presentes na profissão de ensinar”. No estudo, as imagens mais agressivas foram justamente as mais acessadas e comentadas, principalmente pelos jovens, e isso em escala mundial.

Para se ter uma ideia , um vídeo brasileiro exibindo uma situação de humilhação de um professor viralizou e teve mais de 2 milhões de acessos. Depois de algum tempo, o vídeo foi republicado com termos em inglês, como “teacher cell phone”, e repercutiu em vários países, com mais de 600 mil visualizações e centenas de comentários em inglês sobre a situação de humilhação.

Da mesma forma, a pandemia permitiu-nos ver que o modo como a tecnologia é usada faz diferença no aumento ou redução da ansiedade. Entre 2020 e 2021, participei com outros pesquisadores da iniciativa Research Roadmap for the COVID-19 Recovery , com apoio da ONU e FAPESP . A ideia era fazer um mapeamento de pesquisas com foco no contexto de recuperação dos problemas causados pela Covid-19 e, principalmente, pelo confinamento social.

Nosso estudo comparou estudantes de Pedagogia e Computação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) com alunos dos mesmos cursos na Universidade Goethe, em Frankfurt, na Alemanha. Conseguimos comprovar, estatisticamente, que a interação ativa entre docentes e estudantes — mesmo em ambientes virtuais — contribuiu para reduzir a ansiedade e a depressão, melhorou o aprendizado e a consciência crítica sobre o uso das tecnologias. Em contrapartida, onde houve apenas aulas gravadas, como em parte do ensino na Alemanha, os índices de sofrimento e queda no rendimento foram maiores.

A hiperconectividade e o papel da escola

Em um futuro próximo, o aumento da ansiedade por conta do uso da tecnologia atingirá outro patamar com a chegada de novas tecnologias conectivas. Empresas de tecnologia estão desenvolvendo dispositivos na forma de óculos , fones ou implantes que poderão substituir os smartphones.

Também é preciso levar em consideração que as novas modalidades conectivas incidirão em uma realidade na qual as i nteligências artificiais (IA) já representam um grande problema nas escolas . Para além do plágio de informações e textos, a utilização de IA sem orientação crítica fragiliza o contrato pedagógico, compromete a formação ética e a autonomia dos estudantes.

Diante desse contexto, é essencial que a escola busque um diálogo contínuo com os jovens, que aborde as implicações éticas e morais do uso dessas tecnologias com a finalidade de estimular a formação de uma consciência crítica. É preciso refletir sobre os sentidos e os impactos das tecnologias conectivas no modo como nos relacionamos, aprendemos e nos posicionamos no mundo.

Além disso, a escola é uma instituição fundamental no debate sobre as consequências da disseminação de fake news — entre elas, o fomento de medos, preconceitos e, consequentemente, da ansiedade. É importante que os jovens compreendam que não precisam aderir a estímulos audiovisuais agressivos para se afirmarem como pessoas tanto no mundo virtual quanto no presencial.

Nesse aspecto, o Brasil ocupa uma posição de destaque no cenário internacional, especialmente por ter reagido à decisão de empresas como X e Meta de abandonarem as políticas de combate à disseminação de fake news. Essa reação se deu por meio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal STF ), que afirmou que a internet não pode ser um espaço sem lei, nem um ambiente que comprometa a consolidação dos direitos humanos. Na Comunidade Europeia, a reação não tem sido tão rápida e imediata.

Em um mundo em que todos estão conectados o tempo todo, manter o foco virou ato de resistência. Professores e alunos devem utilizar as tecnologias digitais para a aprimorar os aspectos cognitivos, afetivos e ético-morais de suas relações. Mas, para que isso ocorra, eles devem estar juntos e focar suas atenções no mesmo objeto estudado. Devem compartilhar suas atenções no mesmo objeto e não partilhá-la em vários objetos ao mesmo tempo durante as atividades nas salas de aula. Em meio a algoritmos, dispositivos e inteligências artificiais, a escola precisa reinventar o vínculo pedagógico entre docentes e discentes para não se distanciar da sua própria razão de existir.