Leia a íntegra do discurso proferido nesta quarta-feira em cerimônia de posse dos novos membros da ABC, no Palácio Capanema, antiga sede do MEC no RJ:
Aceitei prontamente o honroso convite do presidente da Academia para saudar os novos acadêmicos nesta oportunidade, consciente do grande desafio que esta incumbência me impunha.
A representatividade e o vigor intelectual e científico da Academia depende de sua capacidade de escolher cientistas de escol nas múltiplas áreas do conhecimento aonde atua e de conseguir que os escolhidos considerem a adesão a esta Casa como uma distinção significante e a possibilidade de participar de ações relevantes no melhor interesse do Brasil.
Portanto, esta solenidade é das mais importantes entre as atividades da Academia. Nesta ocasião, mais uma vez, a Academia alcança plenamente seus mais altos intentos com a posse de colegas, cujas biografias vem enriquecer enormemente os quadros da Instituição, ampliando seu potencial para pensar os problemas nacionais mais importantes.
Neste ponto devo abrir parênteses para destacar uma nota de tristeza. Todos nós esperávamos encontrar nesta posse, Graziela Maciel Barroso, mas infelizmente à Academia só restou lhe prestar, neste momento, uma homenagem póstuma.
A Academia, em sábias iniciativas, passou recentemente a incluir, entre as áreas do conhecimento que procura abranger, as ciências humanas, agrárias, da saúde e das engenharias.
São estas iniciativas que tem permitido à Academia agregar aos seus membros uma desejável diversificação de competências e talentos, muito bem representada entre os empossados desta noite.
Desta forma, vem ampliando seu espectro de atuação para lidar com problemas da realidade presente, brasileira ou universal, cuja complexidade exige abordagens interdisciplinares de larga abrangência.
Basta citar dois exemplos de realizações dos últimos 2 a 3 anos para mostrar o potencial da Academia para empreender estudos de grande envergadura.
Lembro, primeiro, as contribuições da Academia para a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, reunidas no número de junho de 2002 da Revista Parcerias Estratégicas do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos.
Cito também, o estudo sobre Transgênicos feito e divulgado conjuntamente com 8 Congêneres estrangeiras de notória tradição, coordenadas pela Royal Society.
Diante destas perspectivas é fácil cair na tentação de sugerir itens para a agenda de compromissos da Academia. Nessa linha, tomo a liberdade de evocar uma reminiscência pessoal.
Há 25 anos eu conjecturava, amadoristicamente, sobre o papel da interdisciplinaridade na criação e sistematização do conhecimento científico.
Partia de dados, conceitos e interpretações encontradas em dois livros díspares sobre a realidade dos países desenvolvidos: Gerald Holton (Thematic Origins of Scientific Thought; Harvard University Press; 1973) e Thomas Kuhn (The Structure of Scientific Revolution; Second edition, 1970; The University of Chicago Press).
Ocorreu-me então aplicar a este exercício resultados e noções da abordagem interdisciplinar encontrada na obra clássica de Celso Furtado 'A Formação Econômica do Brasil'.
A questão era saber se há características estruturais específicas, e quais são, limitando ou bloqueado o desenvolvimento científico de países periféricos e particularmente do Brasil.
Arrisco-me a dizer que este ternário não está totalmente desatualizado, principalmente se fosse examinado sob um prisma interdisciplinar envolvendo teóricos e experimentalistas de ciências matemáticas, naturais e humanas. Sigo ilustrando esta afirmativa com considerações sobre fatos históricos e algumas questões atuais.
Neste ano celebra-se com grande alarido o cinqüentenário da descoberta da dupla hélice do DNA. A história da genética pode ser resumida na forma de coerente sucessão de eventos seminais indo desde a redescoberta das leis de Mendel no início do século XX, passando pela estrutura do DNA até chegar aos dias de hoje com o seqüenciamento do genoma humano.
O tamanho e a composição desta lista de marcos históricos pode variar conforme a finalidade e o autor, mas certamente não fugirá dos mesmos 4 a 5 países da Europa Ocidental e da América do Norte, com franca hegemonia dos EUA.
Enfim, são 100 anos de história de um ramo da ciência de estrondoso sucesso. História esta, que tem arcanas versões para eruditos e, também, versões ligeiras para o grande público, estas pontuadas de fantasias e celebridades.
E o Brasil, tem genética com história própria? Pode ser reduzida a uma seqüência de marcos históricos? As respostas a estas perguntas não são simples. Cabe enumerar alguns fatos.
Entre 2 e 4 anos após a publicação da dupla hélice do DNA na revista Nature, Clodowaldo Pavan, primeiro com Martha Breuer na revista Chromosoma e depois com Adriane Ficq na Nature, relataram um fenômeno novo de replição de DNA que alcançou apreciável impacto internacional.
Estes trabalhos científicos de Pavan e colaboradores foram idealizados e produzidos localmente. Mas, só foram possíveis porque o Brasil já possuía uma genética que, nascida de vertentes doutrinarias complementares, cultivava raízes temáticas definidas e coerentes.
Desde então, nestes passados cinqüenta anos, a genética brasileira cresceu enormemente.
Criou uma sociedade científica muito forte, expandiu-se pelas múltiplas especialidades da genética atual e contribuiu para o desenvolvimento de uma biologia molecular de alta qualidade entre nós, até chegar ao programa genoma iniciado com o grande êxito do seqüenciamento e anotação do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, patrocinado pela Fapesp.
Outras áreas biológicas e biomédicas como fisiologia, farmacologia, bioquímica, endocrinologia, etc. também experimentaram crescimento e progresso equivalente ao da genética, assim como áreas tradicionais do conhecimento científico, como as matemáticas, as físicas, as químicas, as humanas.
Em suma, o Brasil entrou no século XXI contando com uma expressiva comunidade científica, capaz de produzir ciência do melhor padrão internacional.
Mas a história do nosso desenvolvimento científico não está demarcada por etapas de criação de novos paradigmas, por inovações metodológicas e por desenvolvimento de instrumentação revolucionária.
Pelo contrário, acompanhamos os paradigmas dos países centrais, procuramos absorver seus avanços metodológicos e buscamos adquirir equipamentos de alto teor tecnológico de seus produtores comerciais.
Ultimamente temos seguido com cuidado os indicadores de produção científica, principalmente, os artigos e respectivas citações indexadas pelo ISI.
Estamos, neste momento, entusiasmados com o fato de nossos indicadores estarem crescendo a velocidade superior à média global.
Este entusiasmo parece derivar da crença na noção de que estamos num estágio de desenvolvimento científico pelo qual já passaram os países líderes e basta manter-nos acelerando nosso progresso para alcançá-los.
Será isso mesmo verdade?
Não há no caminho barreiras estruturais subestimadas ou ignoradas?
Penso que este conjunto de dados e noções merece uma revisão crítica sob uma visada interdisciplinar de largo espectro.
Para terminar faço um último comentário. Presentemente, tornou-se popular a idéia de que chegamos à era da sociedade do conhecimento, na qual o domínio do processo de produção científica e tecnológica é crítico para a sobrevivência de um país e o bem estar de sua população.
As sociedades dos países centrais, supostamente, chegaram a este estágio promovendo o avanço do conhecimento científico. Como se deu esse processo histórico?
Pelo sustento continuado de uma comunidade de cientistas, cuja organização, regras de comportamento e de atividades seguem valores sócio-culturais e profissionais próprios.
As razões pelas quais estas sociedades sustentam seus cientistas são pragmáticas e míticas e não passam pela compreensão e discussão pública da natureza do processo de criação do conhecimento científico.
A sociedade identifica objetivamente as vantagens que a ciência moderna lhe oferece na forma de produtos e serviços.
Por outro lado, esta mesma sociedade aceita miticamente que o domínio do processo científico é um imperativo de soberania nacional e que a verdade cientificamente estabelecida é um valor indicativo de civilização superior.
Portanto, as sociedades que chegaram ao estágio de sociedade do conhecimento não precisaram previamente atingir um grau superior de educação em ciências. Pelo contrário, seus cidadãos são em geral cientificamente ignorantes.
Por este panorama nós não devemos nada às sociedades dos países mais desenvolvidos.
Não por ignorância em ciência, mas porque criamos e estamos sustentando uma complexa e robusta comunidade de cientistas, que compreende múltiplas sociedades científicas independentes, que fazem reuniões periódicas autônomas, que cultivam pluralismo de idéias e correntes de pensamento, que disputam e ganham espaço na mídia, que são aceitos como interlocutores válidos pelas instâncias de governo e pelas instituições da sociedade civil.
Além disso, temos destinado recursos públicos para manter: um CNPq, tão antigo como a NSF dos EUA; as FAPs nos Estados, há décadas; um sistema nacional de pós-graduação, há mais de trinta anos amparado por vasto programa de bolsas nunca interrompido; regimes de dedicação à pesquisa para professores nas Universidades públicas e assim por diante.
Não há dúvidas que nossa sociedade, independentemente de governos e partidos políticos, acredita que ciência e cientistas são imprescindíveis à Nação.
Como surgiu essa nossa crença na ciência? Como entre nós tem sido mantida a credibilidade de nossos cientistas? Parece-me que estes fatos e indagações merecem adequada ponderação para melhor embasar nossas propostas de planos e objetivos para a educação básica, a educação superior e o sistema de preparação de cientistas.
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