Médico com doutorado em biologia molecular e pós-doutorado em neurofisiologia, Luiz Mello assumiu como diretor científico da Fapesp (Fundação de Apoio à Pesquisa de São Paulo) no final de abril, em meio há pandemia do coronavírus.
Ele relata que já perdeu alguns amigos para a doença, já viu colegas se infectarem e lamenta a desarticulação entre as esferas de governo no Brasil para enfrentar a doença.
Nesta semana, a Fapesp lançou uma rede com milhares de dados de pacientes e exames de Covid-19 para apoiar pesquisadores.
Em entrevista ao 'Gabinete de Crise', quadro especial criado por O VALE, Mello fala da importância da ciência para combater a doença e o que pode mudar num mundo pós-Covid.
A ciência é protagonista em várias partes do mundo, mas sofre ataques no Brasil?
Ciência é fundamental e continua sendo. É básica. A consequência de não ouvir a ciência se paga com a vida humana. Nesses últimos dias, a evidência científica indicou a relevância de um corticoide com capacidade de minimizar a gravidade da doença e abreviar o período de internação. Já outras drogas que foram anunciadas [como a cloroquina], a evidência é mínima ou quase nenhuma. É muito ruim que se propaguem notícias equivocadas que, no final das contas, são só um desperdício. É uma pena que no Brasil isso esteja desarticulado entre as esferas de governo.
Aqui se politizou a Covid?
É triste. As pessoas que fazem essa politização devem enxergar algum ganho nisso, mas a mentira tem perna curta. A indicação de que a doença não é bobagem e não é relevante fica superada perto de quase 50 mil mortos. Em poucos meses, superamos o número que teríamos no ano todo de mortos em acidentes e numa série de outras condições. Infelizmente, vamos ver esse quadro continuar grave antes de melhorar e espero que a sociedade como um todo consiga enxergar isso e coloque na cabeça que isolamento social, usar máscara e lavar as mãos são relevantes. E que tudo isso contribui não só para que eu continue saudável, mas para que meus avós, filhos e amigos também. Temos que começar a trabalhar o entendimento coletivo.
Como é acompanhar pesquisas se desenrolarem em tempo real em meio à pandemia?
Esse evento acontece a cada 100 anos. A magnitude do problema faz com que ele ganhe ainda mais relevância e que a gente consiga, ao olhar para ele, dedicar uma atenção ainda maior. Pessoas que sabem trabalhar com máquinas de costura e começaram a fazer máscaras para distribuir nas comunidades. Pessoas com fábricas que se organizaram para produzir respiradores. Empresas de insumos químicos que se ajustaram para fazer álcool em gel. Quando olha nessa dimensão, é uma corrente de solidariedade de pessoas buscando contribuir para o enfrentamento da epidemia. Na ciência é a mesma coisa. Os cientistas buscam e estão fazendo o redirecionamento das suas atividades para enfrentar a epidemia e buscar soluções.
O que deve mudar?
Talvez a principal questão seja relativa ao trabalho. Os ambientes de trabalho vêm mudando e as pessoas estão trabalhando a partir das suas próprias casas. Isso vai ser ainda mais importante. Desde o século 18, estamos vendo uma substituição progressiva do trabalho humano pelas máquinas. Vamos assistir uma aceleração desse processo e o estabelecimento de novas profissões e trabalhos.
Ficou evidente a dependência de países que produzem insumos para testes e itens essenciais. Isso deve mudar?
Existe uma especialização natural em várias coisas com produção num número mais restrito de lugares. Se essa é a lógica econômica que a globalização traz, há o contraponto da segurança nacional. A pandemia tornou isso mais presente. Uma agência como a Fapesp certamente pode contribuir para entender como isso acontece e quais as áreas críticas e estratégicas onde deveríamos produzir conhecimento e capacitar as indústrias. O Vale tem esse potencial, não tenho a menor dúvida. Há boas instituições de ensino e estrutura.