Predizer desempenho. Selecionar animais com assertividade. Explorar características para melhor aproveitamento no sistema de produção. Obter incremento de produtividade e aumentar a qualidade de seu produto. Que pecuarista não gostaria de ter em mãos todo este pacote de vantagens e oportunidades de forma mais rápida no seu rebanho? Com esse desejo em vista, há mais de dez anos a tecnologia genômica vem sendo estudada pelos acadêmicos do setor e tem, cada vez mais, se tornado realidade na vida dos pecuaristas como uma ferramenta indispensável para auxiliá-los a melhorarem seus rebanhos, aumentarem a produtividade e eficiência reprodutiva, assim como a lucratividade do seu sistema de produção.
Os estudos não param e novas descobertas são sempre bem-vindas. Uma delas é o recente trabalho desenvolvido na Embrapa Pecuária Sudeste, que conseguiu melhorar a tradução do que está escrito no genoma do bovino, ou seja, relacionar genes às características que eles expressam, como maciez da carne, quantidade de gordura, entre tantos outros. O genoma pode ser entendido como um livro que indica o que a célula precisa produzir. Até então, muitos genes não estavam decodificados, eram desconhecidos ou não se conhecia seu significado. Agora, os dados obtidos permitirão diversos avanços que vão desde direcionar programas de melhoramento genético bovino até desenvolver animais que apresentem carnes sob medida com detalhes como maciez e sabor determinados. Os estudos foram conduzidos pela pesquisadora Luciana egitano, e os resultados foram publicados na revista científica britânica Nature.
O trabalho, conhecido como anotação funcional do genoma bovino, foi realizado pela bolsista de pós-doutorado Marcela Maria de Souza, orientada por Luciana. Ela construiu uma espécie de “ dicionário ” com todos os genes de bovinos que atuam como fatores de transcrição, ou seja, codificam proteínas que ativam ou bloqueiam as expressões de outros genes, o que também define como os efeitos desses genes vão “ aparecer ” na carne. Antes desses resultados, a pesquisa recorria à anotação do material genético de outras espécies para traçar paralelos com os bovinos. Luciana conta que eram utilizados bancos de dados de humanos e camundongos. Relacionando esses resultados com outros resultados do projeto “ Bases moleculares da qualidade da carne de bovinos da raça nelore ”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), os estudos da Embrapa identificaram diferenças de expressão dos genes relacionadas a características de qualidade da carne.
Para entender mais facilmente o significado da descoberta, Luciana propõe a analogia de se imaginar o DNA como se fosse um livro. “ Imagine que você tivesse que traduzir um livro de um idioma desconhecido para o seu. Há uma sequência de letras que são as bases. Determinadas letras podem representar genes ou não. O DNA do genoma do boi ainda não foi completamente traduzido, ou seja, boa parte ainda está em linguagem incompreensível ”, explica. De acordo com ela, mesmo os “ trechos sem genes ” são considerados importantes, pois podem regular a função dos genes. Atualmente, existe indicação de quais genes do boi podem ser fatores de transcrição (que codificam proteínas que regulam a expressão dos genes) e como vão produzir proteínas. Antes era feita a chamada predição in sílico, (obtida em uma simulação computacional) com base em modelos conhecidos. Marcela estudou esses genes e atualizou o “ dicionário ” de genes humanos que são fatores de transcrição. Com essa base, ela procurou correspondentes no boi. Para cada correspondente, buscou na literatura experimentos que confirmassem que esses genes codificam fatores de transcrição.
“ Ainda há trechos desse livro em idioma incompreensível, mas ela traduziu, checou e verificou se aqueles correspondentes entre humanos e bovinos que têm evidência de serem fatores de transcrição são, de fato, como nos humanos. Procuramos, por exemplo, variações de DNA que são importantes para que o animal produza uma carne melhor e apresente maior eficiência do uso dos alimentos ”, detalha Luciana. À pesquisa trabalha com um volume de dados gigantesco, o chamado big data. Um dos maiores desafios envolvidos é conseguir filtrar o que interessa e remover o que não interessa para cada estudo em particular. “ Com a pesquisa da Marcela, conseguimos focalizar atenção nas partes mais interessantes. Queremos encontrar fatores que regulam a maciez e já temos o conjunto de dados mais importante para procurar essas variações.
É como se tivéssemos que localizar uma pessoa em deter minada cidade no mundo, mas não soubéssemos onde procurá-la. À pesquisa indicou o continente, o país e o estado onde a cidade se localiza. Agora o caminho para localizar a pessoa está mais perto ”, compara a cientista. Avanço para raça O trabalho de análise da expressão relacionada aos alelos (cada uma das formas possíveis do mesmo gene) foi projeto do doutorado de Marcela, mas, para raça nelore, pode significar avanço no melhoramento genético com mais rapidez. “ Conseguimos identificar alguns genes, já associados anteriormente a importantes características de produção animal, que apresentam a expressão majoritária de um ou outro alelo ”, conta Marcela. Recentemente, ela foi contratada pela Universidade de lowa (Uiowa), nos Estados Unidos, para onde se mudou no fim de 2018.
“ O legal é que aproveitamos os dados já disponíveis para investigar a expressão alélica, um campo de pesquisa que está ganhando força recentemente. Ainda pouco se sabe em bovinos quando comparado a humanos e camundongos ”, destaca a pesquisadora. De acordo com ela, o estudo conseguiu identificar genes com esse padrão em bovinos, mais especificamente em nelore, que é a principal raça do rebanho brasileiro. “ A identificação de genes importantes para produção animal que apresentam expressão mono alé lica, ou seja, apenas uma cópia é expressa, pode contribuir para aumentar a acurácia dos programas de melhoramento e o nosso trabalho é o primeiro a descrever vários genes com esse padrão na raça ”, conclui Marcela. A genômica na rotina O produtor de pecuária de corte Silvio Pires, de Inocência (MS), utiliza touros melhoradores, transferência de embrião e inseminação artificial por tempo fixo (IATE) para aumentar a produtividade de seu rebanho. Na fazenda, o rebanho é comercial e o ciclo completo. Assim como ele, outros tantos pecuaristas brasileiros combinam biotecnologias reprodutivas com genômica animal na rotina de suas propriedades rurais. Isso é o que nota o pesquisador brasileiro Laércio Ribeiro Porto-Neto, há 11 anos atuando na CSIRO Agriculture Food, entidade de pesquisa australiana, que divide essa aplicabilidade em baixa, média e alta tecnologia. À adoção de Diferença Esperada na Progênie (DEP) genômica com touros melhoradores ou com inseminação artificial (LA), por exemplo, é enquadrada como baixa. “ Um núcleo de touros melhoradores, geno tipados, torna-se referência para um grupo de multiplicadores e, posteriormente, um rebanho comercial. Utilizando um animal melhorador você amplia o resultado.
É simples, use o touro certo ”. Para eficiência reprodutiva é possível intervir também na taxa de desmama e no peso do bezerro ao desmame na produção. Como técnicas consideradas média estão o uso de DEP genômica com IATF ou com fertilização in vitro (FIV). Já a alta tecnologia envolve a edição genômica com clonagem ou com FIV. Segundo Laércio, a baixa e média têm alta penetração e melhoram o rebanho, estão próximas ou prontas para aplicação. As de alta têm baixa penetração e geram animais melhorados, com a grande maioria em desenvolvimento. “ Sendo ainda preciso aperfeiçoar as técnicas, identificar as mutações causais úteis para o melhoramento animal. Precisamos saber exatamente e, assim, regulamentar ”, afirma. Ele ainda reforça que, para as condições brasileiras, com altos índices de inseminação por touro, animais a pasto, o melhoramento passa pela aplicação de tecnologias baixas, médias e eficientes. Ele sugere que o produtor observe o que está disponível e pondere a adequação (ou não) ao seu sistema produtivo e realidade. A dica é seguida por Silvio, que enxerga a genómica de alto nível ainda distante de seu cotidiano, mas altamente necessária para o futuro. Para o pecuarista, a adoção passa por ajustes em toda propriedade, “ pois, a expressão do potencial genético só será percebida se o ambiente estiver preparado para isso ”, diz.