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Correio Popular (Campinas, SP) online

Desinformação reforça negacionismo (10 notícias)

Publicado em 06 de setembro de 2020

Por Agência FAPESP

Antes restrito a grupos articulados em torno de interesses religiosos ou econômicos específicos e aos amantes de teorias da conspiração, o negacionismo científico tem ganhado impulso nos últimos anos por intermédio das redes sociais.

Com a chegada da Covid-19, o fenômeno se intensificou e o que era a contracorrente tornou-se, em alguns casos, discurso oficial e política de Estado.

Em parceria com colegas da Columbia University (Estados Unidos) e da University of Vienna (Áustria), o pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), Renan Leonel, passou a investigar se esse processo de institucionalização do negacionismo a partir da figura de líderes políticos teria comprometido a eficácia das medidas de combate à pandemia em países como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido.
A partir daí, surgiu o projeto intitulado “Viral agnotology: Covid-19 denialism amidst the pandemic in Brazil, United Kingdom, and United States” (Agnotologia viral: negação da Covid-19 em meio à pandemia no Brasil, Reino Unido e Estados Unidos). Esse projeto concorreu com outras 1.300 propostas de todo o mundo e foi selecionado em uma chamada lançada pelo Social Science Research Council of New York (SSRC), em parceria com a Herny Luce Foundation.

Leonel explicou que o termo agnotologia, cunhado nos Estados Unidos, se refere ao estudo dos fenômenos de produção política e cultural da desinformação. Trata-se de um processo socialmente induzido e que visa a promoção deliberada da ignorância ou da incerteza na opinião pública acerca de determinado tópico.
Veja os principais trechos da entrevista:

A produção de conhecimento na área de saúde foi seu objeto de estudo ao longo de toda a pós-graduação. Por que agora, durante a pandemia, você optou por analisar o fenômeno oposto?

Renan Leonel – A ideia inicial era investigar os resultados gerados pela pandemia em termos de produção do conhecimento. Mas nos deparamos com uma verdade inconveniente: a gravidade da crise causada pela Covid-19 provocou uma verdadeira explosão de desinformação, à qual a sociedade vem reagindo, em alguns casos, de forma inesperada. Decidimos então estudar a contrapartida da produção de conhecimento, que é a produção de ignorância. Nos Estados Unidos, esse campo de estudo ganhou o nome de agnotology. O termo foi proposto pela primeira vez em um livro publicado pelo historiador da Stanford University Robert N. Proctor, cujo título é Agnotologia: a construção e a desconstrução da ignorância.

Qual é a hipótese que vocês investigam?

Quando elaboramos a proposta, em abril, Estados Unidos, Brasil e Reino Unido eram os campeões mundiais em casos de Covid-19. Embora sejam três democracias com sistemas de saúde estruturados, era possível perceber que, nesses locais, a sociedade não estava aderindo às recomendações da Organização Mundial da Saúde e demais órgãos internacionais com o mesmo empenho observado no restante do mundo democrático. Partimos do pressuposto que esse comportamento estaria relacionado com a produção de desinformação e com o surgimento de um novo movimento: o negacionismo científico como política de Estado, incorporado no discurso oficial.

Levantamos então a hipótese de que esse processo de oficialização do negacionismo na figura de líderes políticos teria comprometido, nesses três países, a eficácia das medidas de combate à pandemia. No Reino Unido, o fenômeno foi mais acentuado nos primeiros meses, mas no Brasil e nos Estados Unidos ainda segue forte. No âmbito internacional, praticamente não há projetos de pesquisa sobre a produção cultural de desinformação sobre a Covid-19 que incluem o Brasil.

Como vocês têm investigado a produção de ignorância nesses países e quais são os resultados já obtidos?

Fizemos uma extração com o software Article API de todos os artigos de jornal relacionados aos temas de interesse publicados até 23 de julho nos principais jornais impressos de cada país. Dos Estados Unidos entraram The New York TimesThe Wall Street Journal e USA Today; do Brasil foram incluídos O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo; e, do Reino Unido, Metro, The Sun e o Daily Mail.

Os resultados foram semelhantes em número de documentos nos três países – entre 12,5 mil e 15 mil textos publicados, incluindo reportagens, artigos de opinião, editoriais e entrevistas — e isso facilitou uma comparação. Foi possível observar que, no início da pandemia, a capacidade hospitalar, principalmente a disponibilidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), foi um dos temas em destaque na mídia. No Reino Unido, os principais jornais ressaltaram a importância do NHS (National Health Service, o sistema público de saúde do país) e seu papel no tratamento do primeiro-ministro (Boris Johnson chegou a ser internado em unidade de terapia intensiva após contrair a Covid-19). 

Já nos Estados Unidos, onde o sistema de saúde é privado e responde à demanda do mercado, a preocupação era com a capacidade do país de ofertar leitos às pessoas que não tinham condições de pagar o valor de mercado.
No Brasil, a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) de atender à demanda por leitos de UTI e as assimetrias regionais da rede pública de saúde também foram temas importantes, mas a postura do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia e seu impacto sobre a eficácia das políticas de combate à Covid-19 que estavam sendo implementadas foram os principais destaques. Mais de 70% dos textos faziam menção a Bolsonaro.

O Brasil também foi o país em que mais se publicou sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina. Mas, claro, nossos dados vão até julho e com o avançar da pandemia tudo isso tem mudado muito rapidamente.

Então, esse fenômeno é comum aos países?

O que temos observado é que esse fenômeno tem ocorrido nos três países de forma muito semelhante — no Brasil, a população ativa nas redes é um pouco menor do que a norte-americana, mas bem maior do que a britânica — e parece estar ligado ao surgimento de movimentos de extrema direita. Aqui no Brasil encontramos um enorme cardápio de desinformação, que vai desde a defesa do isolamento vertical — algo que nem sequer possui consenso na literatura científica —, até o uso de cloroquina e de vermífugo para prevenir a doença. Não por acaso somos um dos países que menos sucesso tiveram no achatamento da curva epidêmica. Para a opinião pública internacional já está evidente que, no Brasil, a ação de movimentos organizados no ambiente digital comprometeu as já frágeis políticas públicas de combate à pandemia.

Por que o impacto da desinformação foi maior aqui?

O Brasil foi o mais impactado pela produção sistemática de desinformação por ter uma educação para a ciência bem menos consolidada que a britânica e norte-americana, além de uma população com menos anos de estudo em média. Além disso, os instrumentos de comunicação científica, que são necessários para contrabalancear a produção de ignorância e fazer a informação chegar até as pessoas, são mais frágeis no País. Nosso levantamento mostra que os jornais brasileiros não tinham uma abordagem sólida no que se refere às evidências científicas sobre o novo coronavírus.

Boa parte da comunicação científica no Brasil foi feita por pessoas de fora dos órgãos oficiais, como youtubers, blogueiros e comentaristas convidados pelos veículos de imprensa.

Existe uma vacina contra a ignorância?
A sociologia da ignorância é um campo de estudo relativamente novo e ainda pouco conhecido, mas é uma agenda de pesquisa que ganhou força recentemente e tem enorme potencial de crescimento. Pesquisas nessa área podem ajudar a entender como o sistema de produção de ignorância funciona e subsidiar políticas públicas para combater as consequências. Precisamos criar instrumentos legais para responsabilizar os atores que deliberadamente disseminam ignorância e fazê-los assumir as consequências desse comportamento.

Também é preciso refletir melhor sobre o papel das empresas que fazem a gestão desse conteúdo na internet. Além disso, a academia precisa acordar para o fato de que nossos instrumentos de comunicação científica não estão sendo eficazes.

Comportamento semelhante envolveu questões climáticas

O negacionismo sempre estará presente em questões polêmicas. Além do balanço realizado pelos pesquisadores durante a pandemia do coronavírus, um outro estudo foi realizado nos Estados Unidos, só que envolvendo o clima. A conclusão a que se chegou é que os negacionistas da crise climática tiveram o dobro da cobertura da imprensa norte-americana na comparação com os que respeitam o conhecimento científico para defender a necessidade de ações de redução das emissões de gases do efeito estufa.

O estudo levou em consideração mais de 1,7 mil comunicados à imprensa relacionados ao clima, entre os anos de 1985 e 2013, além de artigos opinativos e jornalísticos e matérias. Foram analisados conteúdos dos jornais de maior circulação nos Estados Unidos: The New York Times, The Wall Street Journal e USA Today. De acordo com Rachel Wetts, professora da Brown University e autora do estudo, 14% dos comunicados à imprensa que se opunham à ação climática ou que negaram a ciência climática receberam grande cobertura na imprensa norte-americana, em comparação com cerca de 7% dos comunicados com mensagens pró-ação climática que tiveram o mesmo destino. Vale ressaltar que os informes que receberam menor atenção da imprensa vieram de grupos referendados pelo grande conhecimento em ciência e tecnologia. Wetts acredita que esse desequilíbrio possa estar ligado às normas jornalísticas, que exigem que os profissionais busquem o posicionamento do "outro lado". Para ela, esse é um "equilíbrio falso", já que iguala desinformação com conhecimento científico, dando legitimidade aos negacionistas.