Pesquisadores da USP ainda farão novos experimentos. Estudo ajuda na produção de vacina eficaz também para cepa amazônica
Um grupo liderado por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) acredita ter encontrado o mecanismo que possibilita à variante sul-africana do SARS-CoV-2 – também conhecida como B.1.351 – escapar dos anticorpos gerados em infecções anteriores pela cepa ancestral do vírus.
A descoberta, que ainda precisa ser confirmada por novos experimentos, pode abrir caminho para o desenvolvimento de vacinas eficazes tanto contra a variante que emergiu na África do Sul, já presente no Brasil, quanto a originária de Manaus (P.1.), bem como as suas predecessoras.
O estudo, publicado na plataforma medRxiv, está em processo de revisão por pares.
Por meio de simulações computacionais, o grupo estudou a proteína-chave do SARS-CoV-2, conhecida como spike. Ela é a responsável por se ligar ao receptor existente nas células humanas (a proteína ACE-2) e viabilizar a infecção. Os resultados sugerem que uma das mutações existentes na ponta da spike da variante sul-africana – caracterizada pela troca do aminoácido lisina por asparagina – pode resultar na ocorrência de um fenômeno bioquímico conhecido como glicosilação, que muda a feição da proteína viral e impede a ligação dos anticorpos. Já na variante P.1., a lisina é substituída por uma treonina, que não sofre glicosilação.
“No desenvolvimento de uma vacina, hoje, é preciso escolher o que será mais eficaz contra o vírus, incluindo as variantes. No caso do SARS-CoV-2, das três mutações que ocorrem na P.1. e na B.1.351, duas são exatamente iguais. Portanto, é possível que uma vacina que tenha como foco a variante sul-africana seja eficaz também contra a P.1. e contra o vírus ancestral. Mas vacinas contra essas duas últimas provavelmente serão menos eficazes contra a variante sul-africana”, explica Keity Souza Santos, professora da FM-USP e autora correspondente do artigo.
O trabalho é resultado de um projeto apoiado pela FAPESP e coordenado por Jorge Elias Kalil Filho, professor da FM-USP e coordenador do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor), que também assina o artigo.
O grupo liderado por Kalil trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19. O projeto é apoiado pela Fundação e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
O alvo
“Trabalhos anteriores de outros grupos não conseguiram encontrar a região específica em que os anticorpos humanos se ligam à RBD [domínio de ligação ao receptor, na sigla em inglês], como é chamada a ponta da proteína spike que encaixa nas células humanas. Até então eram feitas inferências. Utilizamos uma técnica que permitiu localizar exatamente uma região predominantemente reconhecida, que chamamos de imunodominante. É a mesma em que ocorre uma das mutações das variantes de Manaus e da África do Sul”, conta Santos.
Após identificar a região na primeira cepa do vírus, o grupo composto por pesquisadores da USP, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade de Salzburg, na Áustria, submeteu a sequência de aminoácidos ao soro sanguíneo de 71 pacientes recuperados de covid-19 no Hospital das Clínicas da FM-USP no começo da pandemia no Brasil. Em 68% das amostras, os anticorpos presentes no soro foram capazes de se ligar ao peptídeo chamado de P44, presente na RBD da proteína spike.
Para entender como ocorre a ligação dos anticorpos nessa região encontrada pelos pesquisadores, foram feitas simulações computacionais. As informações da RBD das duas variantes e do vírus ancestral foram cruzadas com a do anticorpo monoclonal REGN10933, conhecido por se ligar à região imunodominante e, atualmente, em testes clínicos para tratamento da covid-19. O computador faz o que se chama de predição de neutralização, ou seja, estima a capacidade dos anticorpos de neutralizar o vírus.
Nas simulações, a predição de neutralização foi completa contra o vírus ancestral e um pouco diminuída para a variante P.1. Na variante sul-africana, contudo, houve uma queda drástica na predição de neutralização, confirmando o que havia apontado um artigo publicado na Cell por cientistas norte-americanos pouco antes da submissão do artigo dos brasileiros.
Para o grupo liderado pela USP, a ligação não ocorre na B.1.351 porque uma das suas mutações é justamente a troca do aminoácido lisina por asparagina, que sofre o processo de glicosilação. Essa alteração seria, provavelmente, a responsável pela baixa estimativa de neutralização da variante sul-africana pelos anticorpos gerados a partir da infecção pela cepa original do SARS-CoV-2. O fenômeno da glicosilação já foi observado no vírus influenza, da gripe, mas ainda não havia sido apontado no caso do SARS-CoV-2.
“Nas variantes P.1. e B.1.351, a mutação da RBD consiste em apenas três aminoácidos diferentes em relação à RBD do vírus ancestral. A mudança, contudo, parece ser suficiente para tornar as variantes de Manaus e da África do Sul mais transmissíveis. Uma vacina que gere anticorpos que ataquem as duas mutações que ambas as variantes têm em comum, mais o aminoácido glicosilado da B.1.351, provavelmente será mais eficaz”, diz Santos.
Para confirmar a hipótese, o grupo planeja agora experimentos in vitro utilizando amostras do peptídeo P44 com a glicosilação na asparagina. O objetivo é confirmar se os anticorpos realmente não se ligam a esse aminoácido quando ele é glicosilado. Além disso, os pesquisadores obtiveram soro de pacientes recuperados da P.1. e pretendem confirmar se os anticorpos desses pacientes se ligam mesmo ao peptídeo P44.