Texto por: André Julião / Agência FAPESP
Um estudo publicado hoje (10 de setembro) na revista “Nature Communications” revela que existem ao menos três espécies de peixe-elétrico conhecidas como poraquê e não apenas uma, como se pensava.
Uma das duas novas espécies descritas no artigo emite a maior voltagem já registrada em um animal, chegando a 860 volts. A pesquisa foi apoiada por FAPESP, Smithsonian Institution e National Geographic Society, entre outras instituições. Além de gerar novos conhecimentos sobre o animal, depois de mais de 250 anos de sua primeira descrição, ela abre novas possibilidades de investigação, como a origem e a produção de descargas elétricas fortes em outros peixes.
Os peixes-elétricos compõem um grupo de mais de 250 espécies dotadas de um órgão capaz de produzir eletricidade, geralmente fraca, usada para se comunicar e para navegar, uma vez que a maioria tem olhos muito pequenos.
“O poraquê, que pode chegar a 2,5 metros de comprimento, é o único a produzir também descargas fortes. Ele faz isso por meio de três órgãos elétricos. Essas descargas são usadas para defesa e caça”, disse Carlos David de Santana, pesquisador-associado do National Museum of Natural History, da Smithsonian Institution (EUA), e primeiro autor do artigo.
A pesquisa integra o Projeto Temático “Diversidade e evolução de Gymnotiformes (Teleostei, Ostariophysi)”, coordenado por Naércio Menezes, professor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP).
Reclassificação
A correlação entre as análises do DNA, da morfologia e do ambiente do poraquê, além da medição da voltagem emitida, permitiu reclassificar os animais em três espécies diferentes. A única conhecida até então, Electrophorus electricus, foi descrita em 1766 pelo naturalista sueco Carl Linnaeus.
Além da E. electricus, agora definida como a espécie que vive na região mais ao norte da Amazônia, os pesquisadores encontraram diferenças suficientes para acrescentar ao gênero a Electrophorus varii e a Electrophorus voltai.
“Empregamos a medida da voltagem como forma de diferenciação, algo inédito na identificação de novas espécies”, disse Menezes. Durante medições em campo, usando um voltímetro, os pesquisadores registraram em um exemplar de E. voltai uma descarga de 860 volts, a maior já medida em um animal. Até então, a mais alta era de 650 volts.
A nova espécie foi nomeada em homenagem ao físico milanês Alessandro Volta, criador da primeira bateria elétrica, em 1799. Volta se inspirou nos poraquês para sua invenção. E. varii, por sua vez, é uma homenagem ao zoólogo Richard P. Vari, pesquisador da Smithsonian Institution falecido em 2016. “Foi o cientista estrangeiro que mais influenciou e auxiliou estudantes e pesquisadores brasileiros no estudo de peixes na América do Sul”, disse Santana.
Diversidade chocante
Santana, que durante a pesquisa entrou em muitos rios para coletar poraquês e tomou alguns choques, explicou que, apesar da alta voltagem, a descarga emitida pelo animal tem baixa amperagem (cerca de 1 ampere) e não é necessariamente perigosa para humanos.
Para efeito de comparação, uma tomada pode ser de 10 ou 20 amperes e, por isso, é capaz de deixar uma pessoa grudada nela durante um choque, aumentando sua letalidade. Além disso, a corrente do poraquê não é contínua, mas dispara pulsos alternados e se descarrega depois de uma descarga forte, precisando de tempo para se recarregar.
Mesmo assim, encontrar um grupo de animais dentro d’água pode ser bastante perigoso. Ainda que o choque em si não mate uma pessoa saudável, pode ser arriscado para cardíacos, além de contribuir para uma queda ou afogamento. “O choque causa um atordoamento na vítima, suficiente para capturar uma presa ou espantar uma ameaça maior”, disse Santana.
Formação de grupos
As pesquisas realizadas pelo grupo têm mostrado ainda que os poraquês se comunicam para se reunir e eletrocutar uma potencial ameaça. Ao contrário do que dizia a literatura científica até então, os animais não são solitários e podem se reunir em grupos de até 10 indivíduos na fase adulta.
Para a nova classificação, foram analisados 107 animais coletados em diferentes regiões amazônicas, não só do Brasil como do Suriname, Guiana Francesa e Guiana. Inicialmente, os pesquisadores usaram o método conhecido como código de barras de DNA (DNA barcoding), realizando o sequenciamento do gene mitocondrial Citrocromo C Oxidase I (COI), padrão para identificação de espécies animais. Depois, mais nove genes mitocondriais e nucleares foram sequenciados e várias análises foram conduzidas a fim de validar os resultados do DNA barcoding.
“As três espécies têm uma forma de corpo muito conservada e não mudaram muito ao longo dos últimos 10 milhões de anos de evolução. São poucos detalhes da morfologia externa que as diferenciam e só a análise integrada com a genética e a ecologia foi capaz de fazer uma distinção robusta das espécies”, disse Santana.
Separação ecológica
Além de mostrar claras diferenças genéticas, os dados do sequenciamento foram cruzados com os ecológicos. A espécie que conservou o nome E. electricus se restringe ao extremo norte amazônico, na região geológica conhecida como Escudo da Guiana, que abrange o norte dos estados do Amapá, Amazonas e Roraima, além de Guiana, Guiana Francesa e Suriname.
Já os poraquês da espécie E. voltai ocupam o chamado Escudo Brasileiro, no sul do Pará e do Amazonas, Rondônia e norte de Mato Grosso. As regiões de escudo são conhecidas por serem mais altas (acima de 300 metros de altitude). A região é caracterizada por possuir corredeiras e cachoeiras, com águas claras e bem oxigenadas, fundo de rochas ou areia e baixa quantidade de sais dissolvidos.
Essas características favorecem as duas espécies desse tipo de hábitat, que têm cabeça mais achatada, ideais para nadar e caçar em ambientes de águas rápidas e fundo de pedras, por exemplo. Além disso, a pouca quantidade de sais dissolvidos proporciona uma baixa condutividade elétrica na água. Portanto, especula-se que os animais precisem produzir descargas elétricas mais fortes para capturarem as suas presas, como acontece com E. voltai, que teve registrada durante o estudo a maior voltagem já produzida por um animal.
Por outro lado, E. varii foi mapeada na região mais baixa da Bacia Amazônica, vivendo em águas turvas e muitas vezes pouco oxigenadas, com fundo arenoso ou lamacento. Além disso, a quantidade maior de sais dissolvidos aumenta a condutividade da água, favorecendo a propagação da descarga elétrica, que na espécie variou entre 151 e 572 volts.
Etapas de separação
Os pesquisadores estimam que as espécies divergiram duas vezes. Na primeira, no período Mioceno (cerca de 7,1 milhões de anos atrás), elas se separaram do seu ancestral comum. Foi só no Plioceno (cerca de 3,6 milhões de anos atrás) que E. voltai e E. electricus chegaram à configuração atual.
Novos estudos genéticos serão feitos para confirmar a hipótese de que a separação ecológica (ambiente de escudo versus várzea) foi um fator responsável por repartir E. varii (várzea) de E. electricus e E. voltai (escudo) do seu ancestral comum. Além disso, os pesquisadores continuam capturando e medindo a voltagem emitida pelos poraquês para confirmar o recorde de 860 volts. Eles preveem ainda encontrar novas espécies em outros gêneros de peixe-elétrico.
“A descoberta das novas espécies de poraquês na Amazônia, um dos hotspots de biodiversidade do planeta, exemplifica o quanto ainda há para ser descoberto na natureza. Além disso, o interesse de outras áreas da ciência, como medicina e biotecnologia, reforça a necessidade de conservação da região e de estudos que envolvam parcerias nacionais e internacionais para a exploração da biodiversidade na região”, disse Santana.
Atualmente, outros grupos estudam possíveis aplicações das pesquisas sobre poraquês, seja em análises das enzimas produzidas pelos órgãos elétricos, a fim de testá-las como componentes para produção de medicamentos para possíveis tratamentos de doenças neurodegenerativas como Alzheimer, ou como modelo para a criação de baterias para próteses e sensores implantados em humanos, por exemplo.
Além da Smithsonian Institution e do Museu de Zoologia da USP, o trabalho contou com pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e de instituições dos Estados Unidos, Suíça e Suriname.