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Descoberta de Watson e Crick foi a pedra fundamental da genética

Publicado em 30 julho 2004

Sem ela não existiria a genômica, ciência básica para a medicina e agricultura modernas Herton Escobar escreve para 'O Estado de SP': Um estudo de uma única página, quase ignorado de início, mas que revolucionou para sempre todas as ciências da vida - seja ela de um homem, um rato, uma planta ou uma bactéria. Francis Crick e James Watson descobriram nada mais nada menos do que a estrutura do DNA, a molécula que, sozinha, carrega todas as informações necessárias para a formação de todos os seres vivos. É a lição básica da biologia molecular, sem a qual não existiria o seqüenciamento do genoma humano, a clonagem, o teste de paternidade ou boa parte dos alimentos e medicamentos que consumimos. 'É até difícil verbalizar a dimensão do feito de decifrar a estrutura do DNA, realizado por Crick e Watson. É um desses passos que muda a história da humanidade', diz o físico e diretor científico da Fapesp, José Fernando Perez. 'A descoberta da estrutura do DNA é tão importante para as ciências biológicas quanto foram para a física a mecânica newtoniana e a mecânica quântica. O ano 1953 já está na História da ciência.' Talvez o mais impressionante sobre o DNA, ou ácido desoxirribonucléico, seja justamente sua simplicidade. Sua estrutura assemelha-se a uma escada retorcida, a chamada dupla hélice, na qual os corrimãos são formados por fitas de fosfato e açúcar e os degraus, por pares de bases nitrogenadas conhecidas pelas letras A (adenina), T (timina), C (citosina) e G (guanina). Com um detalhe importante: A só se liga com T, e C com G. O genoma de todos os seres vivos do planeta está escrito nessas quatro letras, por meio de infinitas combinações que, dependendo da quantidade e da ordem em que são colocadas, dão origem a um homem ou um elefante. Watson e Crick descobriram essa estrutura e publicaram sua descrição em um breve artigo da revista Nature, em 1953. O que o Projeto Genoma Humano fez quase meio século depois foi simplesmente soletrar essa seqüência, colocando cada letra em sua devida ordem. 'Eles lançaram a pedra fundamental para o conhecimento genético de qualquer organismo', diz a pesquisadora Luísa Lina Villa, do Instituto Ludwig em São Paulo. 'Comparativamente, diante das ferramentas de que dispunham na época, foi algo muito mais genial do que o próprio seqüenciamento do genoma humano. Foi o conhecimento que nos permitiu passar de uma visão macro para uma visão mais micro e funcional da biologia.' Mais tarde, já sem a parceria de Watson, Crick ainda ajudaria a desvendar o código genético do DNA - ou seja, a linguagem pela qual ele coordena a síntese de proteínas. Cada três letras codificam um aminoácido, que por sua vez junta-se a outros aminoácidos para formar as proteínas, as moléculas operárias que coordenam e executam praticamente todas as funções do organismo. O impacto desse conhecimento pode ser sentido em quase todas as áreas da medicina, da agricultura e da pecuária. Permitiu produzir mais e melhores alimentos, por meio do melhoramento genético de plantas e animais. Também tornou possível a compreensão de uma série de doenças, assim como o reconhecimento de paternidade e a captura de criminosos, por exames comparativos de DNA. Mas o melhor ainda está por vir. Tivesse vivido mais uma ou duas décadas, Crick provavelmente poderia desfrutar dos próximos grandes avanços da genômica clínica, pela qual espera-se fazer o diagnóstico cada vez mais precoce de doenças e predisposições. Especialmente para o câncer, doença que o matou. 'Queremos entender o que está errado antes mesmo do problema aparecer', explica o presidente da Academia Brasileira de Ciências, Eduardo Moacyr Krieger. Nos casos em que a doença já tiver se manifestado, a expectativa é desenvolver tratamentos individualizados, específicos para as características genéticas de cada paciente. 'Não é ficção científica', garante Krieger, que pesquisa a hipertensão. 'Ainda estamos no início, mas o caminho é esse.' Os cientistas acreditam que quase todas as doenças têm algum componente genético que, junto com fatores ambientais, não tornam mais suscetíveis ou nos condenam a elas. O mesmo vale para características mais subjetivas, como o brilhantismo de Crick. 'Só o genoma não é suficiente, mas sem ele não se faz um gênio. É uma combinação de genoma, ambiente e sorte', diz o especialista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. 'Crick era um cientista sensacional, de dimensões quase sobre-humanas.' (O Estado de SP, 30/7)