Para garantir a sobrevivência em situações adversas, como privação de nutrientes, presença de patógenos ou toxinas, as células podem ativar um mecanismo de defesa conhecido como autofagia, que permite degradar e reciclar certos componentes intracelulares, como, por exemplo, organelas danificadas.
Quando esse processo ultrapassa um certo limiar, porém, deixa de ser um mecanismo de sobrevivência e acaba levando à morte autofágica ou morte celular com autofagia. Um artigo publicado recentemente na revista Scientific Reports por pesquisadores brasileiros ajuda a entender por que essa transição ocorre.
“Mostramos que é possível induzir a morte com autofagia de maneira muito eficiente ao causar, simultaneamente, danos na membrana da mitocôndria [organela responsável pela produção de energia] e do lisossomo [responsável pela digestão tanto de partículas originárias do meio externo como interno]. Essa descoberta pode abrir caminho para o desenvolvimento de novas drogas antitumorais”, disse Maurício Baptista, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e integrante do Centro de Pesquisa em Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP.
Segundo o pesquisador, a extensão do dano causado nas membranas de organelas-chave parece ser um fator decisivo para que o processo de autofagia pró-sobrevivência se transforme em morte autofágica. O grupo chegou a essa conclusão após realizar experimentos in vitro e simulações computacionais com culturas de queratinócitos – células do tecido epitelial responsáveis pela produção de queratina.
O modelo foi escolhido por apresentar naturalmente o processo de autofagia pró-sobrevivência bastante ativado, assim como ocorre nas células tumorais.
“Os queratinócitos, em situações fisiológicas, precisam se diferenciar muito rapidamente e essa transformação depende de autofagia. Já as células tumorais, como crescem muito rápido e de forma desorganizada, precisam de um mecanismo de autofagia robusto e muito ativo para sobreviverem. Quando colocamos um composto que atrapalha o processo, a célula morre”, explicou Baptista.
Iguais, mas diferentes
Nos experimentos in vitro, parte das células foi tratada com ácido oleanólico e parte, com ácido betulínico. Os dois compostos são encontrados nas cascas de frutas e árvores e têm a função de protegê-las de pragas e infecções.
O ácido oleanólico é amplamente usado como agente anti-inflamatório, antiangiogênico e antioxidante. E o ácido betulínico tem ação antitumoral comprovada e está sendo testado em ensaios clínicos contra o melanoma e outros tipos de câncer de difícil tratamento.
Embora possuam a mesma fórmula química – C30H48O3 –, os dois compostos apresentam diferente distribuição espacial dos átomos e, portanto, são considerados isômeros.
Ao comparar, nas diferentes culturas, variáveis como viabilidade celular, proliferação e mecanismos de morte celular, os pesquisadores observaram que o ácido betulínico apresentou maior citotoxicidade, o que, segundo Baptista, está relacionado a sua maior eficiência em causar dano na membrana de organelas. Já a membrana plasmática, que reveste a célula, foi preservada.
“A molécula de ácido betulínico possui uma estrutura mais plana e, por esse motivo, consegue penetrar melhor na membrana da mitocôndria e do lisossomo, induzindo de forma eficiente a morte com autofagia. Já a molécula de ácido oleanólico, por possuir uma espécie de dobra em sua estrutura, tem mais dificuldade para interagir com a membrana das organelas e não induz morte com autofagia”, contou Baptista.
Por meio de simulações computacionais feitas em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC), o grupo da USP alterou o arranjo espacial da molécula de ácido oleanólico deixando a estrutura mais plana e observou que isso aumentava a interação com a membrana das organelas.
Na avaliação de Baptista, é provável que outros compostos capazes de causar o mesmo tipo de dano na membrana de organelas sejam eficientes em induzir a morte com autofagia e possam ser usados no combate ao câncer. “O interessante é que, por ser um dano físico, torna-se mais difícil o desenvolvimento de resistência celular”, disse.
Na avaliação do pesquisador, a descoberta pode auxiliar no screening de derivados do ácido betulínico com o objetivo de identificar qual seria o composto mais eficiente em induzir a morte com autofagia.
“Uma possibilidade seria, por meio de simulação computacional, testar a interação do composto com a membrana de organelas”, disse Baptista.
O trabalho publicado na Scientific Reports foi realizado em parceria com a pesquisadora Waleska K. Martins, que desenvolveu o seu pós-doutoramento no âmbito do Redoxoma e de um Projeto Temático coordenado por Baptista. Contou também com a participação de pesquisadores do Instituto Ludwig e do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, recebendo apoio parcial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Farma Service Bioextract.
O artigo Parallel damage in mitochondrial and lysosomal compartments promotes efficient cell death with autophagy: The case of the pentacyclic triterpenoids (DOI:10.1038/srep12425), de Waleska Martins, Maurício Baptista e outros, pode ser lido em www.nature.com/articles/srep12425.