Glauco Arbix: pesquisa em inovação exige pessoas formadas e capacitadas
"A cidade ideal dum cachorro, tem um poste por metro quadrado. Não tem carro, não corro, não morro. E também nunca fico apertado. A cidade ideal da galinha tem as ruas cheias de minhoca. A barriga fica tão quentinha que transforma o milho em pipoca." Como na música "A cidade Ideal" composta em 1977, por Chico Buarque, a composição de uma política industrial de longo prazo que atenda à maioria das exigências do empresariado exige a conciliação de interesses nem sempre convergentes. Mas mesmo no cenário onde é necessário priorizar o desenvolvimento de 25 setores para estimular o avanço tecnológico do parque industrial brasileiro, é possível estabelecer medidas que propiciem benefícios comuns.
Para Glauco Arbix, coordenador geral do Observatório de Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Group of Advisers do United Nations Development Programme (PNUD-ONU), "as alamedas verdes", que atenderão aos anseios de todos, não são o câmbio mais valorizado, nem a redução da taxa básica de juros e tampouco uma infra-estrutura modernizada. "Não nego que sejam problemas que o Brasil precisa enfrentar, mas não acredito que sejam o grande problema do país. O Brasil precisa melhorar a qualidade dos seus serviços, e do que produz, essa é a questão-chave."
Arbix, que foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vê avanços na nova política industrial, em relação ao primeiro projeto lançado em 2004. "A ênfase da política industrial no setor de informática é fundamental porque se trata de uma área sensível, geradora de tecnologia e uma área em que todos os países investem e evoluem rapidamente."
O sociólogo também considera que o sucesso da política dependerá de ações complementares, entre elas a melhor articulação entre governos estaduais e federal, universidades, órgãos estatais e empresas e investimentos na educação formal. "Para termos pesquisa em inovação precisamos de pessoas formadas e capacitadas. Isso não depende só de investimento em política industrial. A educação formal precisa ser revista." A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Na proposta de política industrial, o governo estabelece a criação do Prosoft, uma linha de crédito no valor de R$ 1 bilhão voltada para financiar projetos na área de softwares e tecnologia da informação. Priorizar estes setores é a melhor escolha neste momento?
Glauco Arbix: : A ênfase da política industrial no setor de informática é fundamental porque se trata de área sensível, geradora de tecnologia e uma área em que todos os países investem e evoluem rapidamente. Não se pode esquecer que haverá pressões para que essa política traga resultados à balança comercial no curto e no médio prazos. Mas quando se fala em política industrial, não se trata só do médio prazo. Estamos falando do futuro. Nenhum país pode basear-se em políticas que passem ao largo do desenvolvimento dos setores inovadores, dos setores intensivos em conhecimento. Os setores que trazem inovação atraem investimentos não só para si, mas para áreas correlatas. Uma inovação em nanotecnologia pode ser utilizada na aviação, construção naval, infra-estrutura, área médica. As áreas inovadoras têm uma horizontalidade importante e que deve ser considerada na definição das políticas públicas.
Valor: Nesse caso, a política industrial não deveria priorizar outros setores também considerados inovadores, como o de biotecnologia, no qual o Brasil é reconhecido internacionalmente?
Arbix: Na política industrial passada, o governo priorizou as áreas de tecnologia da informação, farmacêutica, microeletrônica, bens de capital, biotecnologia, nanotecnologia e biomassa. Essas áreas continuam sendo chave para o desenvolvimento tecnológico do país. Da mesma forma que fez com o setor de software, o governo deve estender os benefícios a essas outras áreas no futuro. Entre os países em desenvolvimento, como China, Índia e Coréia, o Brasil é o que apresenta a linha mais extensa de pesquisas em inovação. Todas essas áreas, a bapeiotecnologia, a nanotecnologia, são altamente intensivas em pesquisa, em geração de conhecimento e formação de mão-de-obra especializada. Mas é preciso definir o que se busca. Essas áreas têm uma horizontalidade enorme. Não cabem no mesmo plano de revitalização da indústria naval. Longe de mim criticar essa revitalização, ela é importante, vai gerar empregos e renda. Mas quando estimulo empresas a desenvolverem compósitos leves - tecnologia utilizada na construção de aviões, nos dutos de águas profundas, em satélites, em equipamentos de medicina -, eu abro uma gama de oportunidades muito maior. São objetivos diferentes.
Valor: A definição dos setores que receberão incentivos à pesquisa deveria ser diferente?
Arbix : Quando o governo decide que precisa avançar na questão dos investimentos e atrair mais recursos a áreas sensíveis precisa deixar claro que áreas são prioritárias. Não tiro o mérito da proposta. Mas eleger 25 setores é muita coisa para dizer o que é prioritário. A tendência que ocorre em outros países é a definição de uma política para setores-chave, que podem atrair investimentos e estimular o desenvolvimento de áreas coligadas.
Valor: É possível que o Brasil, no médio prazo, concorra em pé de igualdade com a Índia em softwares, por exemplo?
Arbix: O Brasil é o único entre os países em desenvolvimento que tem um espectro mais amplo de pesquisa básica. Mas tem dificuldades de unir setores diferentes. No caso dos compósitos, o governo poderia abrir licitação para o desenvolvimento de pesquisas com esses materiais, feitas por empresas e universidades. Mas alguém vê Petrobras e Embraer fazerem juntas uma licitação para uma tecnologia comum? Não. Por que a Índia consegue exportar computadores e nós não? Não me diga que lá em cada esquina existem dois matemáticos conversando, ou que aqui não existe gente capacitada porque não é verdade. É preciso incentivar as relações entre as universidades brasileiras e as empresas para impulsionar as pesquisas. O Projeto Genoma, que a Fapesp liderou, reuniu um grupo de instituições públicas e privadas e em três anos revolucionou a pesquisa em biotecnologia no país. Outro ponto: é essencial que haja articulação das políticas de inovação com a educação formal. Para termos pesquisa em inovação precisamos de pessoas formadas e capacitadas. Isso não depende só de investimento em política industrial. É preciso desenvolver desde a curiosidade pela ciência e pela matemática até rever as grades curriculares da pós-graduação.
Valor: Que tipo de elementos podem atrair investidores em pesquisa no Brasil?
Arbix : Além da oferta de crédito e da desoneração fiscal, é necessário criar um ambiente favorável ao investimento de longo prazo. Nesse caso, é vital estabelecer marcos regulatórios. O que ocorre no Brasil muitas vezes é que se cria um ambiente que atrai o investidor estrangeiro e, após a realização da pesquisa e o lançamento do produto, a empresa descobre que precisa pagar um residual de tributos porque no meio do caminho foi publicado um decreto que estipula outra alíquota. A falta de um marco regulatório reduz a confiança no país no longo prazo. Outro ponto que deve ser fomentado é a oferta de capital de risco. Nos EUA, existe um mercado que oferece linhas de financiamento com mais alto risco, voltadas para financiar pesquisas em inovação. No Brasil, existem algumas sementes, mas ainda é pouco desenvolvido. E há também instrumentos já disponíveis e que são mal utilizados, como o sistema eletrônico de compras. É ótimo que o governo brasileiro faça grandes compras de clips, papel, caneta e economize dinheiro, mas não é para isso que a ferramenta foi criada. O Pentágono divulgou a oferta de US$ 500 milhões para o desenvolvimento de supercomputadores, que serão utilizados pela área de pesquisas em defesa e as empresas terão quatro anos para desenvolver e entregar a tecnologia. Dessa forma, o governo estimula o desenvolvimento econômico e da pesquisa. Não é uma mera compra. Isso já foi feito no Brasil. Não teríamos uma Embraer se não fossem as compras da FAB [Força Aérea Brasileira] no começo da sua história. Temos condições de fazer isso novamente no futuro.
Valor: Além do histórico problema com marcos regulatórios, que outros pontos devem contribuir para o sucesso da política industrial?
Arbix : A qualidade do que se produz e a capacidade de competir em mercados mais sofisticados é que devem ser levados em consideração na hora de se elaborar uma política industrial. Existe um grande mérito deste governo em articular ações para alcançar esses objetivos. Articular ações entre o Estado, governos, órgãos e agências estatais, que também é necessário nesse processo, já é mais difícil. O Brasil conserva o defeito histórico de centralizar as decisões de investimento no Estado. Mesmo as instituições privadas dependem das decisões do Estado e, para atender a todas as demandas, reprimidas e nascentes, é preciso um oceano de investimentos. Por isso digo que a definição de um investimento público voltado à inovação é importante, mas não determinante. É fundamental soltar as amarras que prendem o setor privado. E, para isso é preciso criar infra-estrutura adequada, reduzir impostos, criar um ambiente que estimule os investimentos.
Valor: Alguns críticos da nova política industrial dizem que mudanças na política macroeconômica trariam resultados mais efetivos para as indústrias que os incentivos previstos na proposta. O senhor concorda então com a crítica?
Arbix : A política industrial voltada à inovação não se refere só a financiamento e desoneração fiscal. Se a política se resumir a isso, daqui a alguns anos vamos ter um país cheio de portos, de pontes e aeroportos, mas incapaz de competir em condições de igualdade com países concorrentes. Estamos falando sobre a qualidade do que se faz, do que se pode fazer e do que deve ser feito para o país competir no mercado internacional. A melhoria da qualidade dos serviços não depende de câmbio, ou de infra-estrutura. Não nego que sejam problemas que o Brasil precisa enfrentar, mas não acredito que o grande problema do Brasil seja o câmbio, ou a infra-estrutura, ou o juro alto. Se as empresas têm tudo isso em condições mais favoráveis e não produzem com a qualidade que se exige no mercado externo, elas não conseguem exportar. O Brasil precisa melhorar a qualidade dos seus serviços e a produtividade, essa é a questão-chave.