Vou manter uma horta com frutas, ervas, vegetais e regada por mim e pelos filhos
Em abril, testei positivo para covid-19. Meus exames de IgA e IgG não deixam dúvidas. Tenho anticorpos. Meu PCR, feito uma semana depois, já em maio, negativou. Não transmitia. Sou um caso subnotificado, pois o atendimento fora num laboratório particular, a pedido de um médico particular.
Pesquisadores da Fiocruz e Fapesp indicam que o vírus chegou ao Brasil no pré-carnaval. Amigos italianos e franceses circularam entre nós nos blocos. Eu e cinco amigos com quem foliei nos contaminamos sem sabermos; testes no Brasil rareavam. Somos subnotificados.
Tivemos uma gripe forte, quando nenhum caso no Brasil tinha sido notificado. Eu tive uma semana de febre com uma dor de cabeça inédita, tosse, mas passou. Dos cinco amigos, a mulher de um deles desabou. Não se falava em corona por aqui. O primeiro caso notificado, 26 de fevereiro, foi importado da Itália.
Ela chegou a ir ao hospital, em que perguntaram se queria ser entubada ou arriscar e ficar em casa. Arriscou. Depois de um mês e meio, está ótima. Já a arquiteta de outra não teve a mesma sorte; a amiga esteve em reuniões em São Paulo com gente vinda de Seattle, quando o vírus circulava por lá. A arquiteta se curou em casa, mas tem sequela pulmonar até hoje.
Ninguém pode afirmar como e quando pegamos. Não existem meios de sermos notificados e entrarmos nas estatísticas, para ajudar a entender o caminho do vírus. Não temos uma porta a bater. Não sei se o laboratório de análises clínicas, que tem os exames arquivados, é consultado. Nem sei se foi gripe mesmo ou covid. Aqui, a saúde foi politizada.
Tanto eu quanto os amigos seguimos os mesmos protocolos de pessoas não contaminadas: higiene, educação e respeito ao próximo. Diferentemente do presidente, que nunca mostrou seus IgG e IgA, não saímos por aí sem máscaras aglomerando pessoas. Faço parte dos 10% contaminados da cidade de São Paulo, segundo inquérito sorológico da Prefeitura.
Vai demorar, ela vai passar, mas alguns hábitos vou manter e outros, mudar. O que vou manter:
HORTA NA VARANDA. Uma horta de frutas, ervas e vegetais, regada por mim e pelos filhos, numa divisão de tarefa “kibutziniana”. No mais, se todos fizessem uma, o planeta agradeceria, haveria mais florestas, menos CO2 na atmosfera, menos carros e caminhões nas estradas, menos agrotóxico nos alimentos. Tudo bem que não começamos ainda, pois rola o paradoxo: sair para comprar insumos? E nem sei se a metragem dá para mais do que vasos de alecrim, hortelã, capim-santo e cebolinha, que, por sinal, odeio. Já tenho seis vasinhos comprados na feira livre por 60 pratas: entre eles, dois de tomate-cereja. Falta pôr a mão na terra fertilizada e fazermos a nossa parte.
MÚSICA. Quanto à gaita diatônica em C, prefiro praticar sozinho na varanda, depois de aulas gratuitas no YouTube. Sei que precisarei em breve sair em busca de lições particulares. O “bend”, puxar o ar para sustenido ou bemol, o que requer meses de treinamento, só acerto quando estou distraído. Meu repertório é minúsculo, mas representativo o suficiente para me esnobar via Zoom para amigos e familiares: B(do Leonard Cohen), Steve Wonder e alguns riffs de blues. Preciso aprimorar.
FICAR EM CASA. Tratando-se de uma pessoa com dificuldade de locomoção, além de escritor blogueiro tuiteiro ativista digital boêmio aposentado que bate ponto no bar apenas às segundas-feiras, batia, fã de séries de TV, livros de história, filosofia e clássicos de mais de 700 páginas, romances que param em pé, e pratica o zoomnismo de cursos online, corintiano morando longe de Itaquera, não vai ser um corte radical ficar quarentenado. Com esse dólar, então...
FICAR MAIS EM CASA COM FILHOS. Não será uma chateação encarar a rotina com o novo console de 2.600 videogames vintage, de Atari a Nintendo, cujo hit já se tornou – o que não aproveitei na minha adolescência e juventude, porque ficava dia e noite na rua, no mato ou surfando –, dando pausas para o espaguete com molho de lata, hot-dog, pizza na portaria, ouvindo de Pequeno Cidadão, Palavra Cantada a cumbia e rock argentino, mais leituras interpretadas às noites de irmãos Grimm, Malala, Ziraldo e Ruth Rocha.
AQUÁRIO DE ÁGUA SALGADA. Arrisquei na doce. Mantive um betta vermelho comprado na feira por dois anos. Apesar da beleza, é o pangaré dos peixes: não precisa de compressor de ar, vive sozinho em poças, come pouco. O coitado faleceu, o enterramos numa cerimônia respeitosa num vaso na varanda e trouxemos um filhote dourado, que estranhamente vivia de lado na superfície. Tinha uma inflamação na bexiga sem cura. Morreu, e antes que os filhos percebessem, corri e comprei um colorido. Informei que o dourado se curara, cresceu e ficou enorme. Porém, em dias, o novo não afundava, morreu. Era o aquário o problema. Jogamos tudo fora. E, de raiva, vou me redimir: comprar um enorme de água salgada e encher de peixes. Com a quarentena, terei ele sob vigilância. E farei lives bem acompanhado.
VINHO PELA CERVEJA. Estupidamente, nascido no Brasil ultraprotecionista, fui logo para os destilados e me apeguei. Achava vinho coisa de pequeno-burguês besta colonizado. Entender deles, então, proferir palavras como “frutado” ou “encorpado”, me entediava enormemente e reacendia uma chama vanguarda revolucionária para levá-los a um campo de reeducação. Eu entendia de rum, tequila, uísque, vodca, cachaça, bebida de revolucionário, não de pinot, malbec, cabernet. No mais, os bares que eu frequentava não os armazenavam apropriadamente, e em restaurantes me revoltava cobrarem por uma taça o preço de uma garrafa. Porém, em casa, vinhozinho a 14 graus cai bem. Aprendi a diferença entre seco e demi seco e aposentei o porre inominável e o preconceito. Larguei a Resistência e entrei para a aba de clientes da XP.