Desde o início de 2024, o Brasil enfrenta uma epidemia sem precedentes da doença. Pela primeira vez, porém, temos novas ferramentas, tanto de combate ao mosquito quanto de proteção individual. Resta saber como as usaremos
Há pelo menos uma década, a história se repete: à medida que as temperaturas aumentam , os casos de dengue disparam, colocando vários estados brasileiros em situação de epidemia ou mesmo emergência sanitária . Mas a situação nunca foi tão grave quanto em 2024: até o dia 25 de abril, o país contabilizava 3.921.271 casos prováveis, 1.888 mortes confirmadas e 2.218 óbitos em investigação. Os dados são do Painel de Monitoramento de Arboviroses do Ministério da Saúde . A título de comparação, 2015, ano com o maior número de casos nos últimos 10 anos, registrou 1.696.340 diagnósticos e 986 óbitos — em 2023, ano com maior letalidade, foram 1.094.
Neste ano, a doença também se espalhou mais rápido e chegou a lugares onde nunca havia estado. “Em geral, o pico da epidemia é em abril, e em 2024 já começamos a ver picos em fevereiro”, aponta Ethel Maciel, secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde. Há uma tendência de interiorização da doença — em epidemias anteriores, ela se concentrava principalmente em regiões metropolitanas
“Em geral, cidades menores têm menos serviços de saúde, as pessoas têm mais dificuldade para acessar serviços de alta complexidade”, completa Maciel. Até março, o Distrito Federal e mais dez estados haviam decretado situação de emergência por causa da dengue: Acre, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
A dificuldade em acessar serviços pode, em parte, explicar o alto número de mortes da epidemia atual. Mas o buraco é mais embaixo: há décadas, o país repete erros no enfrentamento à doença , o que torna o cenário cada vez mais alarmante. Em 2019, a dengue chegou a ser listada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das dez ameaças à saúde global . “Ela é endêmica na Ásia, e desde os anos 1980 temos epidemias de dengue no Brasil, o que faz crer que ela é algo natural, mas não é”, afirma o infectologista Kleber Luz, da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) e membro do Grupo de Trabalho de acompanhamento das arboviroses da OMS.
Se os números de casos e óbitos assustam, e continuamos falhando nas medidas de prevenção e controle , atualmente temos à disposição novas formas de manejo clínico, de combate ao vetor e — talvez o mais animador — uma vacina eficaz. Em dezembro passado, o Brasil se tornou o primeiro país no mundo a disponibilizar uma vacina contra a dengue no sistema público de saúde. Também está prestes a se tornar produtor de um imunizante, cujo desenvolvimento pelo Instituto Butantan está na fase final de estudos. Estaríamos, então, diante de um ponto de virada contra essa infecção?
Doença traiçoeira
Transmitida por mosquitos Aedes aegypti , a dengue é uma arbovirose provocada por um vírus da família Flaviviridae, a mesma dos causadores de febre amarela , Zika e febre do Nilo Ocidental. A fêmea do inseto, que precisa de sangue para nutrir os ovos, se contamina quando pica uma pessoa ou animal hospedeiro do vírus. Como ela pode atacar mais de um indivíduo durante o ciclo de vida, acaba transmitindo o vírus para mais pessoas.
Atualmente, existem quatro sorotipos de vírus da dengue distintos: DENV-1, 2, 3 e 4 . A infecção concede imunidade permanente à respectiva cepa, mas é possível contrair os outros tipos virais. “Há mais ou menos dez anos temos os quatro circulando no Brasil. Isso causa mudanças na dinâmica de transmissão , pois as pessoas se expõem mais rápido. Tudo muda na epidemiologia da doença”, explica a epidemiologista Claudia Codeço, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do InfoDengue.
Embora possa ter casos assintomáticos, a manifestação da dengue se caracteriza principalmente por febre aguda, dor de cabeça, dores pelo corpo, náusea, cansaço e mal-estar . A origem do termo, aliás, vem do espanhol dengue , que significa “moleza” — e resume bem os sintomas. “Vindo do cenário da Covid-19 com aquele grau altíssimo de mortalidade, muita gente talvez pense em dengue como algo mais leve. Mas ela é uma doença traiçoeira. Na maioria das vezes, a pessoa vai ficar bem, mas o quadro pode evoluir para algo grave rapidamente. É importante não desprezá-la”, pontua Codeço. Em situações severas, os sintomas podem incluir manchas avermelhadas pelo corpo, sinais de hemorragia, sangramento no nariz e garganta , além de hematomas — condição chamada de “dengue hemorrágica”, que exige maior atenção médica e pode levar à morte.
Os primeiros registros de uma infecção com sintomas semelhantes aos da dengue datam da Dinastia Chin, na China, entre 265 e 420 d.C . “A doença era chamada de veneno d'água porque os chineses achavam que, de alguma forma, estava conectada com insetos voadores associados à água”, escreve o higienista estadunidense Duane Gubler, especialista em doenças transmitidas por insetos, em um artigo seminal sobre a dengue publicado em 1998 na revista Clinical Microbiology Reviews . Séculos depois, surtos de doença semelhante ocorreram nas Índias Ocidentais Francesas em 1635 e no Panamá em 1699, e epidemias continentais foram registradas na Ásia, África e América do Norte entre 1779 e 1780.
A transmissão pelo mosquito foi confirmada em 1906. No ano seguinte, cientistas conseguiram identificar o vírus. Nessa época, o Aedes aegypti já causava incômodo no Brasil. Acredita-se que a espécie foi introduzida nas Américas durante o período colonial , partindo da África por meio dos navios que traficavam pessoas escravizadas — os primeiros relatos de dengue por aqui datam do final do século 19, em Curitiba, e do início do século 20, em Niterói (RJ).
Mas a ideia de que a dengue representa uma emergência em saúde pública só surgiu a partir de 1940. “A perturbação ecológica nos fronts do Sudeste Asiático e do Pacífico durante e após a Segunda Guerra Mundial criou condições ideais para o aumento de doenças transmitidas por mosquitos, e foi naquele cenário que começaram epidemias globais de dengue”, escreve Gubler.
Segundo a OMS, a dengue é endêmica em mais de 100 países, em todos os continentes. Em 2019, a organização estimou um total de 5,2 milhões de casos, número recorde que diminuiu com a pandemia de Covid-19 . Em 2023, as contaminações voltaram a aumentar, superando o ano mais grave — no ano passado, mais de 6 milhões de pessoas contraíram o vírus no mundo, de acordo com o Centro de Prevenção e Controle de Doenças Europeu.
Fiocruz alerta para ressurgimento do sorotipo 3 da dengue
O Brasil é líder mundial em número de casos: concentramos mais da metade deles, de acordo com a OMS. Além dos danos à saúde e das mortes, a doença tem impactos na economia — um estudo da Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG) mostra que seis em cada dez infectados pela doença são trabalhadores.
O levantamento estima ainda que a atual emergência sanitária pode causar uma queda de até R$ 7 bilhões no Produto Interno Bruto (PIB) do país, e que os custos relacionados ao tratamento podem chegar a R$ 5,2 bilhões. Até março, o país havia gastado R$ 44 milhões do fundo de R$ 1,5 bilhão reservado pelo Ministério da Saúde para apoiar estados e municípios em ações emergenciais de prevenção, controle, contenção de riscos e assistência à saúde.
Novas estratégias
Apesar do cenário crítico, os novos métodos de enfrentamento parecem promissores. A edição mais recente do manual de diagnóstico e manejo clínico de dengue elaborado pelo Ministério da Saúde revisou as orientações sobre hidratação intravenosa, aumentando o volume recomendado para ingestão de líquidos e, talvez o mais importante, atualizou o diagnóstico diferencial de dengue em relação a Chikungunya, Zika e outras doenças . A regra agora é tratar tudo como dengue.
É que, nos primeiros dias de sintomas, a diferença entre as viroses é tênue, mas o risco de complicações e morte é maior na dengue. Por isso, quanto antes forem adotadas as medidas de manejo, melhor. “Em geral, as mortes ocorrem quando não damos atenção aos sinais de alerta, os pacientes são negligenciados no atendimento médico ou negligenciam a si mesmos”, aponta o infectologista Arnaldo Tanaka, do Hospital Nipo Brasileiro, em São Paulo.
No combate ao vetor, a maior novidade é o projeto com a bactéria Wolbachia . Comum na natureza — estima-se que afete cerca 60% dos insetos —, ela não é encontrada naturalmente no Aedes aegypti . Mas, em 2010, cientistas da Universidade do Estado de Michigan, nos EUA , descobriram que ela não só bloqueia a reprodução do mosquito (fêmeas com Wolbachia geram descendentes com a bactéria, e as sem a bactéria que tentam se reproduzir com machos infectados se tornam estéreis), como o impede de transmitir arboviroses para humanos.
Brasil enfrenta epidemia de dengue sem precedentes em 2024 — Foto: Ilustração: Davi Augusto
Os pesquisadores decidiram introduzi-la em mosquistos no laboratório. “Ela não causa problemas para os humanos, animais ou a natureza , pois já está amplamente disseminada. Não fazemos modificação genética nem no mosquito, nem na bactéria”, explica o pesquisador Luciano Moreira, coordenador do World Mosquito Program no Brasil, iniciativa global que opera em 14 países para introduzir a bactéria no Aedes aegypti
Trata-se também de uma solução autossustentável de substituição da população de mosquitos. “Há métodos de modificação genética que têm intenção de fazer a supressão de insetos, mas não são sustentáveis, porque se parar de soltar os mosquitos modificados, eventualmente eles acabam . Os mosquitos com Wolbachia você solta por um tempo e eles ficam por ali, o efeito é duradouro”, completa.
“Vindo do cenário da Covid-19 com aquele grau altíssimo de mortalidade, muita gente talvez pense em dengue como algo mais leve. Mas ela é uma doença traiçoeira”
— Claudia Codeço, epidemiologista e coordenadora do InfoDengue.
Os dados são animadores. Publicados no New England Journal of Medicine em 2021, os resultados de um teste realizado com a população de Yogyakarta, na Indonésia , entre 2017 e 2020, apontam que a incidência da dengue nas áreas que receberam os mosquitos com Wolbachia foi reduzida em 77%, e os casos que exigiram hospitalização diminuíram 86%.
Desde a publicação do estudo, que abrangeu 350 mil pessoas, o projeto com os mosquitos foi expandido para cobrir uma população de 2,5 milhões de indivíduos. Em Townsville, na Austrália , uma pesquisa conduzida entre 2014 e 2019 e publicada no periódico Scientific Reports , do grupo Nature, em 2023 demonstra que após a intervenção com a Wolbachia, os casos de dengue foram reduzidos em 99,32%. Na Colômbia , a incidência da doença no Vale do Aburrá, um dos vales mais populosos do país, foi reduzida de 95% a 97% desde a introdução da bactéria, apontam dados do World Mosquito Program.
Por aqui, o projeto opera desde 2014 e está presente em cinco cidades: Rio de Janeiro , Niterói, Belo Horizonte , Campo Grande e Petrolina (PE). A estimativa é de que já tenha protegido 3,2 milhões de pessoas. A partir deste ano, vai ser introduzido também em Natal, Uberlândia (MG) , Presidente Prudente (SP), Joinville (SC), Foz do Iguaçu (PR) e Londrina (PR), cobrindo 1,8 milhão de indivíduos. Embora promissor, o método ainda esbarra em entraves. O maior deles é a capacidade de produção: a atual fábrica de mosquitos na Fiocruz produz 10 milhões de espécimes por semana — nesse ritmo, levaríamos 100 anos para alcançar 70 milhões de habitantes.
No ano passado, o programa assinou um acordo para a construção de uma biofábrica em Belo Horizonte , cujo potencial de produção semanal é de 100 milhões de insetos. A expectativa é de que as obras sejam concluídas ainda no fim do primeiro semestre de 2024. Mas não basta produzir mosquitos infectados: é preciso educar e convencer a população a aceitar a enxurrada de novos mosquitos, o que demanda tempo. “Ele é um método complementar e deve ser usado em conjunto com outras estratégias de controle”, opina o coordenador do World Mosquito Program no Brasil.
Uma delas é a vacina. Até 2023, a única vacina disponível contra a doença era a Dengvaxia , fabricada pelo laboratório francês Sanofi Pasteur e a primeira no mundo a obter registro. O problema é que, embora promova imunidade contra os quatro sorotipos da doença, a Dengvaxia vem com uma série de restrições que dificultam seu uso em larga escala.
A principal é que requer infecção prévia: pessoas que nunca tiveram dengue e tomam a vacina podem apresentar a forma mais grave da doença caso sejam infectadas. Ela também é indicada para uma faixa etária limitada, de 9 a 45 anos, e exige a aplicação de três doses intercaladas em um intervalo de seis meses. “O indivíduo leva mais de um ano para se imunizar, a taxa de abandono é muito grande”, explica o pediatra infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Esses fatores praticamente inviabilizaram o uso da Dengvaxia.
Em março de 2023, a Anvisa aprovou a Qdenga, imunizante da japonesa Takeda Pharma para uso na população com idades entre 4 e 60 anos. Elaborada com vírus atenuado, a vacina tem eficácia de 80,2% na prevenção dos quatro sorotipos, em quem teve ou não dengue , e é administrada em duas doses em um intervalo de três meses. Para este ano, o governo adquiriu 5,2 milhões de doses, limite estabelecido pelo laboratório, e recebeu gratuitamente outras 1,32 milhão.
Inicialmente, metade das doses foi disponibilizada no sistema público para adolescentes de 10 a 14 anos que moram em cidades com mais de 100 mil habitantes — a adolescência é a segunda faixa etária com maior número de hospitalizações, atrás somente de idosos, que por enquanto não podem tomar a Qdenga. A outra metade foi disponibilizada no sistema privado.
Mas o ritmo está aquém do esperado — e do ideal. Até o dia 19 de março, o Brasil havia vacinado 14,5% do público-alvo, apenas 0,2% da população. A baixa procura fez o Ministério da Saúde ampliar a quantidade de municípios que vão receber o imunizante , visto que há doses que vão expirar em abril, maio e junho. “A vacina está chegando aos poucos. Três milhões de imunizados não vão mudar o panorama da dengue no país, precisamos acumular muito mais vacinados para ter algum efeito”, pontua Kfouri. Ainda assim, o governo aposta alto na vacina . “É a maior inovação, porque mudaria radicalmente a forma como temos controlado a doença. Seria uma mudança radical, pois deixaríamos de depender do controle do mosquito, que é mais difícil e tem muitas variáveis”, afirma Ethel Maciel, do Ministério da Saúde.
Contudo, a maior esperança não está na Qdenga, e sim no imunizante sendo desenvolvido pelo Instituto Butantan há uma década. Também feito com vírus atenuado, ele exige apenas uma dose e os dados preliminares apontam eficácia de 79,6%. A fase três do estudo, que deve ser concluída em julho, está em andamento desde 2016 e envolve 16.235 voluntários de 2 a 59 anos.
A expectativa é de que depois ela possa ser incluída no Programa Nacional de Imunizações (PNI) . “Esse é o objetivo final do Butantan, e nossa vacina tem um custo bem menor do que as importadas”, diz a diretora médica da instituição, Fernanda Boulos. “Enquanto não conseguimos acabar com o vetor, a vacina é importante porque diminui os casos sintomáticos, graves, as hospitalizações e as mortes.”
“A vacina está chegando aos poucos. Três milhões de imunizados não vão mudar o panorama da dengue no país, precisamos acumular muito mais vacinados para ter algum efeito”
— Renato Kfouri, pediatra infectologista e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Por outro lado, há quem peça cautela. Na opinião de Kleber Luz, da SBMT, o foco deveria continuar sendo no combate ao vetor. “Eu não consigo entender por que, até hoje, ainda não conseguimos transformar o mosquito em inimigo”, afirma. “Vejo ações nas escolas contra a dengue, pegam a professora mais simpática e ela se veste de mosquito, as crianças se vestem de mosquito, e fica todo mundo tirando fotos e achando aquilo uma coisa boa, como se o mosquito fosse um amigo. Deveria ser compromisso de todos transformar o mosquito em inimigo.” Ele lembra que 90% dos focos de Aedes aegypti estão dentro de casa. “Falta o componente educativo, as pessoas não entendem que o mosquito vive onde elas vivem . Não é na casa do vizinho, é na sua casa mesmo”, alerta.
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Clima propício
As condições para a proliferação do Aedes aegypti nunca estiveram melhores: as constantes ondas de calor provocadas pelas mudanças climáticas , associadas a urbanização e grande circulação de pessoas em determinadas regiões, estão contribuindo para a expansão da área de alcance da dengue. É o que mostra o estudo Mudanças climáticas, anomalias térmicas e a recente progressão da dengue no Brasil , realizado por pesquisadores da Fiocruz e publicado na revista Scientific Reports no último dia 11 de março.
Usando mineração de dados para avaliar a relação entre anomalias térmicas, fatores demográficos e mudanças nos padrões de incidência de dengue entre 2000 e 2020 no Brasil, os pesquisadores relacionaram mapas de onda de calor e anormalidades de temperatura com o aumento dos casos de dengue. Alerta semelhante já havia sido feito em 2021, em uma pesquisa desenvolvida por estudiosos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Um ponto que chama a atenção no estudo da Fiocruz é a incidência da doença em zonas temperadas e de altitude, até então consideradas “imunes” ao mosquito. Isso porque ele necessita de temperaturas entre 18 e 33°C para se reproduzir, além de umidade. Em áreas de alta latitude e altitude, é comum as médias dos termômetros ficarem abaixo de 18°C no inverno, o que interromperia o ciclo de reprodução do vetor.
Eventos como ondas de calor e o El Niño, que provoca mais chuvas, não só ajudam a transformar essas regiões em novos focos da doença como aceleram a reprodução do mosquito. O combo de populações inteiras suscetíveis à dengue e explosão de vetores é receita para o aumento descontrolado dos casos. A pesquisa da Uerj e da UFPR chama a atenção também para o risco da perda do caráter sazonal da dengue, visto que os dados epidemiológicos apontam crescimento de casos inclusive no inverno.
E o Brasil não é o único país que vê os casos de dengue crescerem, atrelados às mudanças climáticas. Em 2023, Itália, França e Espanha, até então considerados livres do vírus, reportaram transmissão local da doença, algo inédito na Europa . Além de relacionar a ocorrência ao aumento das temperaturas no continente europeu , a líder de pesquisas em arboviroses da OMS, Diana Rojas Alvarez, afirmou em comunicado que essa ameaça requer “atenção máxima e resposta em todos os níveis.”
Ela está certa. “A dengue é causada por um mosquito que se adaptou completamente ao ser humano, vive em nossas casas, aproveita cada cantinho. E estamos tendo cada vez mais condições favoráveis para ele, não só no Brasil, mas no mundo todo . O mosquito está expandindo para novas áreas”, pontua Claudia Codeço, coordenadora do Infodengue.
Aprender com o passado
Uma revisão sistemática de estudos de espacialização da dengue no Brasil, feita em 2008 por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), analisou 13 estudos originais e distintos, e mostrou que todos concluíram que os aspectos socioeconômicos são relevantes para a distribuição da doença no país . Em 2020, uma dissertação de mestrado da Universidade Federal Fluminense (UFF) relacionou os casos de dengue no Rio de Janeiro entre 2007 e 2017 a métricas como taxa de alfabetização, Índice de Gini da renda domiciliar per capita , cobertura dos agentes comunitários de saúde e percentual de domicílios com coleta de lixo.
O ponto mais crítico, porém, é não termos feito o dever de casa de melhorar a infraestrutura urbana . “Continuamos sem coleta de lixo adequada, sem abastecimento de água [ o que obriga as pessoas a acumularem água em repositórios ]. Não vamos nos livrar da doença sem lidar com questões estruturais”, afirma Codeço. Embora o mosquito pique qualquer um, é consenso na comunidade científica que a dengue tem relação direta com as desigualdades sociais
É por isso que, na visão do historiador Rodrigo Cesar da Silva Magalhães, autor do livro A Erradicação do Aedes aegypti: febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) (Editora Fiocruz, 2016), é injusto responsabilizar somente a população por problemas que ela não tem condições de resolver . “É óbvio que as pessoas têm que cuidar das suas cisternas, de vasos de plantas, de pneus. Mas o Estado precisa fazer seu papel em vez de só responsabilizar a população”, afirma.
Segundo ele, a dengue sempre foi vista como um problema localizado e restrito à época do verão — em 1986, aliás, a epidemia foi chamada de “verão da dengue”. “Mas não é verão, é ano da dengue. Porque para ela acontecer no verão, várias coisas deixaram de ser feitas o ano inteiro para o problema ir crescendo como uma bola de neve até desembocar no verão”, reflete.
Em um resgate histórico, Magalhães destaca que essa não é a primeira vez que estamos diante de um possível ponto de virada no controle das arboviroses . Em 1958, o Brasil e outros 11 países e territórios das Américas chegaram a ser declarados livres do mosquito Aedes aegypti. A preocupação, naquela época, era a febre amarela. Além de usar métodos não mais aceitáveis pela sociedade, como a militarização dos agentes de saúde e o uso de produtos altamente tóxicos (como o DDT, hoje proibido) , o sucesso da Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela durou pouco.
O vetor voltou a se disseminar, a febre amarela só foi controlada com a vacina e a dengue entrou para valer no país no fim dos anos 1980. “Ora pesamos para o lado científico, ora somente para o lado sanitário — que foi o erro dessa campanha, que centrou todo o foco no mosquito, esquecendo do entorno e das questões ambientais que são relevantes para as doenças”, observa o historiador. Talvez a experiência do passado recente possa servir de aprendizado para não desperdiçarmos, mais uma vez, a chance de, senão erradicar a dengue (algo que os especialistas consideram improvável), ao menos evitar a repetição de epidemias como a que enfrentamos agora.
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