A desigualdade no acesso à saúde persiste em todo o Brasil. De acordo com dados da Demografia Médica 2025, embora o país conte com um total de 635.706 médicos, a maioria está concentrada nas capitais e grandes cidades. Mais da metade dos médicos do país (58%) atua em apenas 48 municípios com mais de 500 mil habitantes. Em contraste, 4.895 cidades brasileiras, que abrigam 31% da população, dispõem de apenas 8% do total de médicos.
O relatório inédito da Faculdade de Medicina da USP, Ministério da Saúde e Associação Médica Brasileira (AMB), lançado nesta quarta-feira, 30, traça um panorama sobre a atuação médica no país e revela um marco importante: pela primeira vez, as mulheres são mais da metade entre os profissionais médicos, totalizando 50,9% da categoria. A projeção é que essa tendência se acentue, alcançando 55,7% do contingente médico total em 2035, quando se estima que o Brasil terá mais de 1 milhão de médicos.
Além disso, o levantamento mostra a dificuldade no acesso à residência médica no país. Segundo os dados, a diferença entre o número de egressos e a disponibilidade de vagas de residência médica se acentuou nos últimos anos. De 2017 a 2018, eram 17.130 graduados em medicina para 13.322 vagas de residência. De 2023 a 2024, foram 32.611 egressos para 16.189 vagas. Ou seja, as vagas de residência não acompanham o número de egressos, que aumentou com o boom de cursos de medicinas e novas escolas. Isso vem acompanhado de um aumento no número de médicos generalistas no país — de 153,8 mil, em 2018, eles passaram a 244,1 mil em 2024.
O estudo também evidencia os problemas relacionados à fila de espera e realização de cirurgias pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Sudeste do país concentra a maior oferta de cirurgiões e anestesiologistas, e o setor privado realiza a maior parte das cirurgias. Para cirurgias de hérnia, por exemplo, a utilização foi 86,6% maior entre pacientes da rede privada do que no SUS.
A sétima edição “Demografia Médica no Brasil” é a primeira conduzida junto ao Ministério da Saúde. Ela concentra dez estudos independentes sobre perfil dos médicos brasileiros desenvolvidos por pesquisadores da USP e universidades parceiras, a partir de bases de dados de diferentes instituições públicas, como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Ministério da Educação (MEC), e de entidades médicas, como Conselhos Regionais de Medicina, Sociedades de Especialidades, além de estudos anteriores.
O difícil acesso à residência médica e a qualidade da formação
A chegada à residência médica é um dos grandes gargalos da formação médica. O número de egressos de cursos de medicina cresce, mas a disponibilidade de vagas de residência não acompanha esse aumento. Em 2013, a Lei Mais Médicos determinava que o número de vagas de residência médica deveria ser igual ao número de vagas de egressos do curso de medicina. No entanto, a medida foi revogada em 2016. Esse fator, aliado à concentração de cursos de medicina em poucas instituições, contribui para o cenário atual de dificuldade de acesso à residência.
Para o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, é necessário duas estratégias de enfrentamento: “de um lado, ter como foco a qualidade da formação médica na graduação e não a expansão de quantidade, e do outro, ter uma expansão responsável nas principais instituições do nosso país, de ampliação das vagas de residência médica”, comenta.
A qualidade da formação médica é outro fator que preocupa. Para o presidente da AMB, César Eduardo Fernandes, é necessário mensurar a qualidade dos estudantes de medicina para entender se os médicos estão aptos para atender pacientes. Na sua visão, a residência médica é o melhor aparelho formador para isso, mas é preciso aumentar a oferta sem que se perca a qualidade: “Não é apenas vaga, mas ter o arcabouço para a formação de residência”, comenta. O presidente da associação defende, ainda, uma avaliação dos especialistas ao longo do tempo, como forma de qualificar a preparação contínua para atuação na área.
ENAMED: o Enem dos médicos
Nesse cenário de discussão da qualidade da formação médica, surge o Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), lançado no último dia 23. O projeto deve passar ainda por regulamentação, mas é um passo em direção à garantir de qualidade dos médicos. “Essa iniciativa atual é importante, válida e ela está muito atrasada”, diz o coordenador do estudo de Demografia Médica, Mário Scheffes.
De acordo com o ministério, a Comissão Interministerial para avaliar a qualidade da formação médica no Brasil, criada no lançamento do Enamed, terá a primeira reunião na próxima quinta-feira, 8 de maio. Na ocasião, também deve ser criado um grupo de trabalho específico para discussão da regulamentação do Enamed, junto de sociedades e associações médicas como a AMB, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e outros membros.
“O Enamed, enquanto uma avaliação anual dos concluintes de curso de medicina e ao vinculá-lo ao Enare, é uma possibilidade importante de que essa avaliação sirva também para a seleção e para o ingresso na residência médica”, vislumbra Felipe Proenço de Oliveira, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Já Scheffes, da USP, defende que, primeiro, é preciso entender a qualidade dos cursos de medicina.
Segundo comenta o pesquisador, a prova deve exercer um papel fundamental na avaliação de egressos dos cursos de medicina que, eventualmente, não conseguirão chegar à residência médica — montante que cresce a cada ano no mercado. “Essa avaliação [de faculdades] é a prioridade máxima, para que possamos garantir que os generalistas sem acesso à residência possam ser bons médicos. Eles estão indo imediatamente para a atenção primária, onde a população mais precisa. É só através da avaliação que podemos corrigir os problemas de formação”, explica.
Reorganização das filas e cirurgias do SUS
Em dez anos, o Brasil terá mais de um milhão de médicos, segundo estima o levantamento. Diante disso, o planejamento da distribuição desses médicos pelo país, de forma a aumentar o acesso à saúde, se torna necessário. “Temos que conversar sobre como formar especialistas, quais e quantos especialistas de cada especialidade para o SUS”, aponta Shuffes, da USP. Ele também levanta a demanda de “desprivatizar” a oferta de médicos e procedimentos, já que a maioria das cirurgias são realizadas pela iniciativa privada: “não há outro meio a não ser deslocar hoje a capacidade do setor privado para o público”, comenta Shuffes.
Segundo Padilha, esforços já estão sendo realizados para mitigar as filas de espera e cirurgias, concentradas em partes do país. Parcerias estão sendo firmadas para garantir tempo adequado no atendimento médico, algumas via Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS): “A intenção do Ministério é, este ano, começarmos essas parcerias seja na contratação de capacidade ociosa pelos ministérios, pelos estados, pelos municípios, seja a utilização dessas estruturas privadas para atender pacientes do SUS. Com o apoio das estruturas privadas, pode-se garantir o tempo adequado para aquilo que busca o atendimento especializado”, comenta o ministro.
Isabella Marin