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Cult

Democratização ou massificação?

Publicado em 01 agosto 2009

Instituições de ensino superior proliferam a cada ano nos quatro cantos do país. Programas de inclusão e métodos de ensino a distância alavancam as estatísticas do acesso do brasileiro à universidade. A despeito do esforço salutar empreendido pelo poder público, a aquisição de um diploma de ensino superior há tempos não pode ser considerada garantia de sucesso profissional. Tal fato explica-se, em parte, pela saturação do mercado de trabalho cuja oferta está aquém da demanda de novos profissionais. Por outro lado, há outro fator essencial a ser examinado: a qualidade da formação.

Em 2008, dos quase 20 mil inscritos no exame da Ordem promovido pela OAB, somente 12,8% foram aprovados. Vale acrescentar que esse exame busca exigir do bacharel em Direito os requisitos mínimos para exercer a profissão. Em universidades públicas como a USP, é comum encontrar turmas com mais de duzentos alunos, principalmente nos cursos de ciências humanas. Ante esses dados, cabem algumas indagações: o que de fato vem ocorrendo no país é a democratização ou a massificação do ensino superior? De que vale ampliar o número de vagas sem investir na contratação de novos professores? Em face do visível descaso com as ciências humanas, é possível formar indivíduos capazes de exercer o pensamento crítico?

Assistimos à inserção da lógica da quantidade, da busca desenfreada por resultados, aplicadas às diversas áreas do conhecimento. Neste dossiê, CULT reuniu renomados sociólogos e filósofos que discutem as deficiências no ensino superior brasileiro. Nas entrevistas que abrem o dossiê, os professores Laymert Garcia dos Santos, Chico de Oliveira, Edgard Carvalho, Lucrécia Ferrara e Eugênio Trivinho falam dos pontos centrais da crise nas instituições públicas e privadas. Em seguida, Ruy Braga e Álvaro Bianchi refletem sobre os danos que a lógica neoliberal acarreta à universidade pública. Ricardo Musse traça um panorama histórico da crise universitária até chegar ao contexto atual. O francês Yves Cohen estabelece um paralelo entre a recente crise no ensino francês e suas semelhanças e disparidades em relação ao cenário brasileiro. Por fim, Vladimir Safatle traz à tona o mal-estar vivido nas ciências humanas e discute a capacidade produtiva das humanidades, em contraposição àqueles que as julgam apartadas da sociedade.

A CULT entrevistou dois renomados intelectuais da sociologia brasileira: Laymert Garcia dos Santos e Chico de Oliveira. Laymert é professor titular do departamento de sociologia da Unicamp e estudioso das múltiplas relações entre sociedade e tecnologia nos campos da arte, cultura e meio ambiente. E autor de Revolução tecnológica, internet e socialismo (Perseu Abramo, 2000) e Politizar as novas tecnologias (Editora 34, 2003), entre outros livros e ensaios. Chico de Oliveira é professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP) e doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual se desligou em 2003 alegando discordância em relação aos rumos então tomados pelo partido. No ano seguinte, ajudaria a fundar o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Questões candentes como a lógica neoliberal aplicada ao universo acadêmico, os métodos de ensino a distância e a saturação das estruturas do ensino superior foram discutidas nas entrevistas a seguir, concedidas ao sociólogo Ruy Braga e ao repórter da CULT Wilker Sousa.

CULT - A partir do início dos anos 2000, em países como Itália e França, professores, pesquisadores e estudantes se organizaram em movimentos em defesa da autonomia do campo científico contra a "colonização" dos interesses de mercado. Existe algo semelhante acontecendo na universidade brasileira hoje?

Laymert Garcia dos Santos - Acredito que não, embora a crise da universidade brasileira seja um reflexo desse mesmo movimento que atinge universidades em outros países. Isso não acontece aqui, pois ainda não houve a percepção sobre o sentido da transformação, sobretudo na área de humanas. A sensação que tenho é que ainda não há um entendimento sobre a profundidade da transformação que a chamada sociedade da informação e do conhecimento tem sobre o capitalismo contemporâneo e o modo como isso está articulado com o neoliberalismo. No Brasil, a questão é tratada de um modo muito fragmentado. A universidade é lenta para entender o que está acontecendo e lenta para reagir.

CULT - Quais são os pontos centrais da crise universitária?

Laymert- A principal questão é a conjunção de neoliberalismo com sociedade da informação. Deve ficar bastante claro que essa articulação entre economia e tecnologias da informação não precisava ser fatal, como está ocorrendo. Esse contexto está de certa maneira aposentando a universidade, pois a produção de conhecimento não mais se dá fundamentalmente no âmbito universitário.

Noto, por exemplo, que a universidade não percebeu que a produção de conhecimento hoje não é só feita por humanos, mas sim por homens e máquinas. Não se pode mais prescindir das possibilidades de elaboração do conhecimento através de relações entre homem e máquina, que vieram para ficar. Como a universidade é anterior a isso e em certa medida não está pensando muito sobre o assunto, a reação é passadista - na tentativa de tentar conter o movimento -, ou então uma espécie de "fuga para a frente", sem uma visão crítica sobre essa transformação.

CULT - Como o senhor analisa a invasão do capital privado no financiamento a pesquisas na universidade pública? A lógica do lucro se sobrepõe à construção do pensamento crítico?

Laymert - No caso brasileiro, a situação é diferente. Se analisarmos o conjunto euro-americano e o Japão, existe uma relação positiva entre universidade e empresa, porque há interesses comuns em desenvolver tecnologia e inovação. No caso do Brasil, apesar dos esforços desesperados de transformar a universidade em um parceiro das empresas, isso não acontece. Não é porque a universidade tem uma posição crítica. Ao contrário, ela é absolutamente favorável, assim com agências de fomento como CNPq, Fapesp.

O obstáculo está no outro lado, pois as empresas não têm interesse em desenvolver inovação. Por quê? Porque há o capital financeiro, que permite ganhar mais sem correr riscos. É muito mais interessante especular no mercado financeiro do que correr o risco de fazer inovação. A articulação universidade-empresa no Brasil é muito mais fantasmática do que efetiva, embora do ponto de vista do discurso seja completamente igual ao que acontece fora do país. Não podemos falar quer a universidade está dominada pela força do mercado porque o mercado não se interessou por ela.

CULT - Uma das questões polêmicas atualmente é a implementação do ensino a distância na educação superior. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

Laymert - É evidente que o ensino a distância é algo que veio para ficar, pois a tendência é ocorrer de fato uma transformação forte. O problema é estabelecer o programa sem promover uma discussão maior com a própria universidade. Deve-se discutir não só a criação do ensino a distância, mas também como esse modelo pode se articular com a própria transformação da universidade. Mas tudo é feito de forma completamente compartimentada, não há discussão.

Quando se analisa na verdade o que é esse projeto de universidade virtual em São Paulo, nota-se como foi feito de maneira completamente estanque e burocratizada. Inclusive a própria visão da tecnologia é miserável porque a visão é instrumental, mas do pior ponto de vista, em seu nível mais baixo. Ou seja, vamos massificar mais. Usa-se a tecnologia para colocar um número elevado de pessoas nas universidades, para se dizer que há muita gente integrada ao sistema.

Não há nem o pensamento sobre qual é a nova relação entre conhecimento e tecnologia a partir da cibernética. Não existe reflexão sobre isso.

CULT - Deveria haver uma politização dessa tecnociência?

Laymert - Absolutamente. Mesmo porque, se não politizar, não há condições de saber como se deu a transformação entre cultura e tecnologia e como se pode utilizar esse novo potencial em uma direção inovadora.

CULT - Segundo o Ministério da Educação, 70% das vagas oferecidas no ensino superior provêm de instituições privadas. Em certa medida, isso revela a falta da democratização do acesso à universidade pública?

Laymert - Primeiramente, não considero as instituições particulares como universidades. A produção de conhecimento é muito fraca, não existe plano de carreira nem pesquisa. Na verdade, são usinas de produção de diplomas. Além desse problema, há um outro, que se refere ao ensino público. As autoridades pensam a universidade pública sempre em termos de massificação, sem alterar a estrutura em que o ensino se encontra hoje - o que é uma espécie de imitação daquilo que fazem as instituições privadas. Ora, isso é receita para desastre. Porque se há alguma coisa que funcionou e funciona bem no Brasil é a universidade pública. Mas isso é destruído ao aumentar o número de cursos e, paradoxalmente, investir cada vez menos na contratação de novos professores.

Cito um exemplo. Faço parte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, que está entrando em processo de extinção. Houve pouquíssimas contratações nos últimos anos e muitos professores estão se aposentando. Estamos em estado de emergência porque, em 2010, se aqueles que puderem se aposentar se aposentarem de fato, o instituto fecha. O que se pode pensar sobre isso? Será que existe uma política deliberada para acabar com as ciências humanas? Será que acreditam que as ciências humanas já se tornaram obsoletas nessa nova configuração de sociedade do conhecimento? Se for isso, é delirante, porque não se poderão formar pessoas certas para lidar com essa nova situação, sem que percebam em que mundo estão e como ele mudou. Quem faz isso são as ciências humanas.

CULT - Como então a universidade pública pode permitir maior democratização sem perder a excelência do ensino? Laymert - Acredito que a palavra democratização com relação à universidade está viciada. Afinal, todo mundo é a favor da democratização, mas seria preciso perguntar: em que termos? Qual o sentido de democratização? Democratização do quê? Da degradação da universidade? Porque no fundo é isso que estão propondo. Eles propõem que vão democratizar, mas piora. É bom isso só porque é democratização? É um acesso demagógico e anacrônico, porque não corresponde às necessidades da sociedade. Há um descompasso enorme em relação ao problema de fato.

A universidade em debate

CULT - Como o senhor analisa a crise universitária no Brasil?

Chico de Oliveira - Estou recém-examinando um livro fruto de uma tese, que será publicado pela Edufscar (Editora da Universidade Federal de São Carlos). O trabalho é uma análise de sete universidades federais do Sudeste, entre as mais ricas do Brasil. O autor, o cientista político Pedro Floriano Ribeiro, examinou uma série de variáveis e indicadores para avaliar as universidades.

O resultado foi o seguinte: a produtividade decuplicou, quer no número de artigos, de docentes, quer no número de pesquisadores e de artigos em revistas indexadas. Ou seja, a produção científica em geral melhorou extraordinariamente. Quintuplicou o número de alunos da pós-graduação e duplicou o número de alunos da graduação. Segundo os critérios liberais, as universidades provaram que são produtivas.

Mas há o outro lado: a regressão salarial fortíssima dos docentes e também do funcionalismo, embora em menor grau. Houve diminuição da relação funcionário-docente, funcionário-aluno, ou seja, há maior exploração do trabalho. Dos professores e alunos entrevistados, todos tomam algum medicamento do tipo neuroléptico para manter a concentração. Todos. Alguns não veem os filhos nem pela manhã nem à noite. Esse é o resultado. É o produtivismo aplicado a uma lógica acadêmica. O grande fracasso da universidade.

CULT - Em alguns cursos, a superlotação nas salas é gritante.

Chico - Em São Paulo, na mítica Maria Antônia, a que todo mundo se refere, havia turmas com cinco alunos. A turma do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tinha seis alunos. Era completamente diferente dar aulas para seis alunos em vez de 150. Eu considero a universidade brasileira um milagre. 0 fato de sairmos do escravismo e do ensino monopolizado pela Igreja Católica e conseguirmos criar um sistema público da escala que o Brasil tem só pode ser um milagre. Hoje em todos os estados há ao menos uma universidade federal, e a influência delas sobre o ambiente é algo que não tem avaliação possível. Eu conheço praticamente todas, de norte a sul. A diferença que uma universidade produz no seu ambiente é notável. Eleva-se o nível de debate, a interlocução, o jornalismo melhora, é extraordinário. O Brasil praticou um milagre e agora querem destruí-lo.

CULT - Existe a possibilidade de que, mesmo com esse produtivismo, nossa produção científica siga na direção errada, pois a estrutura econômica brasileira não aproveita esse potencial?

Chico - Em 2005, participei da banca de mestrado da socióloga Maria Caramez Carlotto, da USP. Era uma tese sobre o Laboratório Nacional de Luz Sincrotrón, uma das entidades de pesquisa mais avançadas do hemisfério sul, mas que está fora da universidade. É uma organização social dessas que o Bresser (Luiz Carlos Bresser Pereira) inventou. No fundo, tudo isso é truque, porque são verbas públicas que mantêm as redes de pesquisa e o próprio laboratório. E como esse laboratório é voltado para o setor produtivo? Há três empresas que utilizam seus serviços: a Petrobras, a alemã Robert Bosch e a americana Hewlett-Packard. No caso das duas últimas, as matrizes substituíram as filiais brasileiras.

Não sou contra a universidade brasileira prestar serviço ao setor produtivo. Não é essa a questão. O problema é que, quando prestam, é a preço vil, altamente subsidiado. É tão subsidiado que essas duas empresas estrangeiras disseram: "É diretamente conosco". Até porque as filiais só pegam o restante da tecnologia já utilizada e transferida. A original vai diretamente para eles. Isso é um equívoco de chorar, porque as regras do setor privado não valem para o setor público.

CULT - Uma das tendências no que se refere ao futuro da universidade é a aplicação do ensino a distância. Como o senhor analisa esse fenômeno?

Chico - Pode-se conceber um sistema científico complexo com o ensino a distância? Não com esse modelo de massificação. É falso dizer que por meio disso há democratização. Pelo contrário, piora-se substancialmente. Apenas se desvaloriza ainda mais o professor, que historicamente é desvalorizado. Primeiro havia a educação formal, que era requisito para que qualquer trabalhador entrasse em uma fábrica. Mas, depois que ele entrava na fábrica, era necessário dominar os signos da linguagem. Isso, porém, o capitalismo já deixou para trás, porque o conhecimento está na máquina, e não na cabeça do operário. Está se passando o mesmo com o ensino superior. Houve um descolamento entre sistema produtivo e educação formal.

Deve-se investir em ensino rico, se quisermos permanecer no mundo dos vivos. Se quisermos ir para o mundo dos fantasmas, tudo bem. Criam-se escolinhas, formação de professores mambembes e ensino a distância. Se quisermos continuar no mundo dos vivos, sobretudo em um país obscenamente desigual como o Brasil, isso não pode ocorrer. Engana-se a população.

CULT - Como o senhor analisa a postura do movimento estudantil atualmente? Não haveria um certo anacronismo fruto de uma mentalidade ainda arraigada nos anos 1960?

Chico - Um movimento social qualquer deve enfrentar a aparência do seu inimigo real, porque Marx nos ensinou isso: a política é a aparência. Lida-se o tempo todo com a aparência. Qual é a essência da exploração do capitalismo? É a mais-valia, mas a mais-valia é um conceito, o real dela você só apanha na fábrica.

Os alunos são anacrônicos porque o fantasma deles é anacrônico. Então eles se chocam com o fantasma. O fantasma do poder da USP é inteiramente anacrônico.

CULT - A universidade pública no Brasil é para poucos. De que forma o senhor analisa programas de inclusão em instituições privadas, como o ProUni?

Chico - Isso parece uma equação de economistas: oferta e demanda. Nós temos uma demanda forte do povo e uma oferta fraca das escolas públicas. Do outro lado há uma oferta das escolas privadas que pode ser interessante. Então, junta-se a fome com a vontade de comer. Isso é falso. A Folha de S.Paulo mostrou que, com o subsídio dado a essas escolas privadas, o governo federal poderia duplicar as vagas nas universidades públicas.

Conheço tanto no macro quanto no micro a experiência de pessoas reais, concretas. Como vício de profissão, olho as coisas muito sociologicamente. Na padaria onde tomo café, trabalha uma balconista que resolveu concorrer a uma bolsa do ProUni. Ela ganhou e ficou muito satisfeita. Tempos depois, ela deixou a padaria para trabalhar em outra área. Um ano atrás, voltou a ser empregada da padaria. E eu disse: "Cadê o seu curso? Para que serviu?". Ela, claro, não baixou a guarda: "Não, seu Chico, ainda estou terminando. Vai dar certo, vai dar certo". Dois anos depois de frequentar aquela faculdade, os cursos dela não tinham servido para nada.

A Universidade em debate

As instituições particulares são responsáveis por 70% das vagas oferecidas no ensino superior no Brasil. Qual é o papel delas na formação de novos profissionais? Qual é o nível da produção de conhecimento? Encontram-se em um patamar inferior em relação às universidades públicas? Para debater essas e outras questões, CULT entrevistou três professores da PUC-SP, uma das mais respeitadas instituições privadas de ensino superior do país: Edgard de Assis Carvalho, titular de antropologia, Lucrécia D"Alessio Ferrara e Eugênio Trivinho, ambos membros do programa de pós-graduação em comunicação e semiótica.

CULT - Na sua opinião, quais são os focos da crise universitária no pais?

Edgard Carvalho - Os focos têm a ver com a hegemonia da fragmentação instalada no dispositivo universitário que hoje domina todos os ramos do saber. Enquanto a universidade não se empenhar na religação da cultura científica e da cultura das humanidades a dita crise não se resolverá. Darcy Ribeiro costumava afirmar que a função da universidade é dominar o conhecimento de seu tempo para poder transmiti-lo às futuras gerações. Por isso, em 2006, Michel Serres fez um apelo às universidades para que reformassem seu ensino em prol de um saber comum que, depois, se subdividiria em três grandes plataformas: a primeira explicitaria o programa comum da especialidade, a segunda, a narrativa unitária de todas as ciências, e a terceira, o mosaico das culturas humanas. Não se trata de uma renegação das especialidades tecnocientíficas, mas de sua inserção em contextos mais amplos. É assim que se formam os verdadeiros intelectuais.

Lucrécia Ferrara - Parece impossível precisar esses focos porque, na realidade, não é a universidade que está em crise, mas o ensino básico e fundamental. Nesses níveis, tanto no ensino público como no privado, carecemos, de uma rigorosa formação docente que possa construir pilares sólidos de fundamentação instrucional e educacional da criança e do adolescente; Por outro lado, também é necessário prover e prever condições institucionais adequadas para o desenvolvimento do ensino naqueles níveis. Na realidade, a dificuldade de rendimento do aluno universitário decorre de uma formação anterior que está muito longe de atender às mínimas condições de construção daqueles pilares. A universidade não está em crise, mas, ao contrário, a educação nacional padece de uma patologia crônica que não se reconhece ou que se insiste em relegar para decisões de organismos públicos, eximindo-se a universidade de sua parcela de responsabilidade nessa ação.

Eugênio Trivinho - A universidade, como espaço de produção e transmissão de conhecimento novo, crítico e de excelência, se defa-sou em bloco, do ponto de vista epistemológico e prático, em relação à potência dromocrática das mudanças históricas e sociotecnológicas em curso. Essa discrepância de temporalidades deixou, há muito, de se restringir a países em desenvolvimento.

O foco comum desse estado de coisas é um imaginário político e de Estado incompatível com um planejamento estrutural consistente e um forte investimento de longo prazo em educação, ciência e tecnologia, em articulação necessária com políticas sociais permanentes de redistribuição de renda mediante geração progressiva de emprego.

CULT - Qual é a sua avaliação da produção de conhecimento das instituições privadas de ensino superior? Edgard - As instituições privadas não podem todas ser colocadas no mesmo plano. Temos as comunitárias, como as PUCs, que se destacam no cenário da ciência feita no país, temos os centros universitários que se dedicam apenas ao ensino e assim por diante. Temos também aquelas faculdades isoladas que formam para o imediato. A avaliação da produção é, portanto, assunto delicado. Poder-se-ia perguntar, por exemplo, quem avalia os avaliadores. Todos sabemos que comitês avaliativos, que julgam tanto as particulares quanto as estatais, são dominados pela fragmentação, mesmo que haja comitês denominados interdisciplinares. O problema da representação pode ser agregado a isso. As instituições privadas raramente são representadas nesses setores da tecnoburocracia estatal. Há produção de excelente qualidade por toda parte. É sempre prudente não generalizar de modo abusivo. Há estatais improdutivas, o Estado não é o único balizador do conhecimento científico, o capitalismo neoliberal não é o bode expiatório do descalabro instalado na universidade.

Lucrécia - A análise da experiência de ensino e pesquisa em instituições nos âmbitos privado e público nos revela que, nos dois organismos, a produção docente e discente tem alcançado níveis quantitativos e qualitativos de grande relevância. As dificuldades de produção atingem, de modo indistinto, as duas instituições, e precisamos analisar a questão com objetividade e sem pré-conceitos.

Eugênio - É necessário distinguir instituições de ensino superior privadas stricto sensu e universidades comunitárias. As primeiras condicionam a oferta de cursos a margens imediatas de lucro ampliado. As segundas conjugam necessidades de sustentação orçamentária com políticas socialmente responsáveis e compensatórias embasadas na oferta de extenso volume de bolsas de estudo. Em geral, universidades comunitárias, como as PUCs, têm plano de carreira docente, preocupam-se com o apoio continuado à pesquisa, fazem autoavaliação periódica rigorosa e preservam forte dinâmica intelectual interna.

A produção de conhecimento em organizações privadas, em geral ligada a atividades de grupos de pesquisa em mestrados acadêmicos e doutorados, tem se expandido à medida que cursos novos de pós-graduação stricto sensu são aprovados pela Capes. Inúmeros pesquisadores dessas instituições têm empreendido esforços exitosos, com resultados científicos reconhecidos nacional e internacionalmente.

CULT - A universidade pública no Brasil ainda concentra a excelência do ensino no país?

Edgard - A excelência do ensino, e da pesquisa também, não está concentrada unicamente nas estatais, embora as estatísticas apontem para isso. Generalizações desse tipo são perigosas, as estatísticas precisam ser relativizadas. Claro que nas estatais a pesquisa fundamental conta com verbas generosas, pesquisadores exclusivos em tempo integral. Basta ver os indicadores de ciência e tecnologia disponíveis nos bancos de dados. Há um claro direcionamento, eu diria ideológico, de verbas estatais para o próprio Estado, e as particulares, a cada dia, se veem privadas de bolsas, financiamentos para projetos de maior porte. Endogâmico, o Estado não consegue enxergar para além dele mesmo. A antropologia sempre ensina que a exogamia é fundamental para a reprodução social e para a ação coletiva. Mesmo assim, há núcleos de pesquisa fortes presentes em muitas particulares. Basta olhar o diretório nacional dos grupos de pesquisa no Brasil do CNPq para saber disso. Quanto à formação, há ensino de alto nível fora do Estado. Professores também. Por vezes, as particulares funcionam como um celeiro para o início da carreira docente. Excelentes professores das particulares são atraídos para as públicas pelas garantias da aposentadoria integral, menor carga horária docente, mesmo com salários menores.

Lucrécia - A questão não está em saber se a universidade pública concentra ou não a excelência do ensino. A questão mais urgente é investigar as condições necessárias para que a universidade, de modo indistinto, exerça seu papel com competência e responsabilidade. Para enfrentar essa tarefa, parece urgente um criterioso e oficial sistema de avaliação contínua de produção de ensino e pesquisa, que atinja, de um lado, o corpo docente indistintamente e, de outro lado, as próprias instituições e suas condições de gestão para atuar no âmbito da educação em nível superior.

Eugênio - A universidade pública, malgrado a sua insuficiência de campi, suas inúmeras dificuldades estruturais e sua precarização nas últimas décadas - fatores amplamente denunciados por sua comunidade científica -, detém majoritariamente a excelência em ensino e pesquisa no país. Constitui dever da universidade pública, como expressão do dever de Estado em educação superior, atingir e preservar esse resultado. Concentração da excelência, porém, não representa monopólio. Em inúmeras áreas de conhecimento, as PUCs, com suas respectivas dificuldades e esforços continuados para superá-las, estão em patamar idêntico ou superior ao das instituições públicas em matéria de produção e transmissão do conhecimento.

CULT - Segundo o Ministério da Educação, 70% das vagas no ensino superior no Brasil provêm de instituições privadas. Isso revela a falta de democratização do acesso à universidade pública?

Edgard - A universidade brasileira é um produto tardio sem tradição consolidada. É bom jamais esquecer que a USP foi criada em 1935. Temos que levar em conta também que o golpe de 1964 ceifou a universidade no que ela tinha de mais relevante, tanto nas ciências da cultura quanto nas ciências da natureza. Essa dicotomia perversa - natureza/cultura - impede até hoje a formação de especialistas policompetentes e de cidadãos imbuídos da necessidade de reformar a cultura, esse vasto acervo multimilenar criado pelo homem. Talvez, por isso, as instituições privadas experimentaram um grande crescimento exponencial no período pós-1964. Aprovadas sem critérios rígidos de excelência, espalharam-se por todo o país, algumas delas já contam com participação majoritária de capital externo. Trata-se de uma distorção de proporções gigantescas.

Para superá-la o Estado deve redirecionar sua política e incluir as particulares de qualidade comprovada num tipo de planejamento mais amplo de caráter democrático. Isso porque pensar os saberes no século 21 implica enfrentar as crises da escola, entrelaçar conhecimentos, aprender de outro modo. Precisamos ser contaminados pela lógica da audácia e não deixar que a lógica da convenção impeça a emergência da criatividade em todos os setores do universidade, seja ela estatal, comunitária ou privada.

Lucrécia - Embora seja oficialmente gratuita, sabemos que a universidade pública demanda grandes recursos materiais para se conquistar o privilégio de nela ingressar, ou seja, é naturalmente seletiva economicamente e, infelizmente, isso não quer dizer que aquela seleção atenda também às melhores condições de formação ou adequação para se fazer um curso superior.

Essa consideração nos remete naturalmente à resposta à primeira questão, ou seja, se tivermos outros fundamentos estruturadores da educação e instrução básica e fundamental, poderemos prescindir efetivamente do sistema vestibular e oferecer reais condições de acesso ao ensino superior de qualidade em todo o sistema universitário do país.

Eugênio - A precariedade democrática de acesso à educação superior no país está enraizada num tecido social articulado por aguda desigualdade econômica. Se o suprimento de vagas pelas organizações privadas não ocorresse, a dificuldade de acesso à universidade pública permaneceria. Por razões evidentes, as instituições públicas, além de gratuitas, devem ser democráticas e de excelência. Não obstante, jamais se pode confundir isso com flacidez de rigor em vestibulares e em etapas acadêmicas posteriores. Excelência tem custo. Avaliações rigorosas honram a universidade, antes de torná-la objeto de crítica justa. A questão da democratização da entrada na universidade pública não se reduz ao primeiro hall; antes, granula-se, infelizmente, na antidemocracia mal resolvida das próprias relações sociais.