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Da literatura à genética, da vida acadêmica ao empreendedorismo: a jornada de Lygia da Veiga Pereira (1 notícias)

Publicado em 07 de fevereiro de 2025

Nem todo cientista sente os primeiros indícios de sua vocação quando criança. A carioca Lygia da Veiga Pereira, de 58 anos, considerada uma das mais renomadas geneticistas do mundo, por exemplo, passou sua infância e adolescência mergulhada no universo da literatura, influenciada pelo ambiente familiar de intelectuais das letras.

Seu avô, José Olympio, foi um dos mais importantes editores-livreiro do país, enquanto seu pai, Geraldo Jordão Pereira, também seguiu a mesma carreira e fundou a editora Salamandra, voltada para livros de arte e infantis, pioneira na produção de cuidadosas edições para crianças. Ele também foi responsável pela versão brasileira de "O Código Da Vinci".

Rodeada por tantos livros, Lygia logo se encantou não só pela leitura, como pela escrita. "Era um barato, porque meu pai, quando tinha a editora, me dava para ler originais da Ruth Rocha, da Ana Maria Machado", lembra ela. Com 12 anos, ganhou um concurso nacional do Círculo do Livro, com uma redação com o tema 'Como liquidei a dívida externa brasileira'. "Escrevi uma história em que a Skylab [estação espacial que caiu na Austrália, naquele ano] tinha caído no meu quintal. Eu a sequestrava e pedia como resgate o pagamento da dívida externa", conta aos risos.

Foi só no ensino médio que foi apresentada à sua verdadeira paixão: a genética, apesar de achar Biologia uma decoreba. Na verdade, foi apenas um primeiro encontro. Um professor de química que ela adorava falou: “Fiquem de olho nessa tal de engenharia genética, que isso ainda vai dar o que falar!”. Acabou se formando em Física pela PUC do Rio de Janeiro, em 1988. Depois, revisitou o tema no mestrado em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, dois anos depois, e no doutorado em Ciências Biomédicas pelo Mount Sinai Graduate School, em Nova York (EUA).

Quando voltou ao Brasil, a cientista trocou Ipanema pela metrópole paulista por causa do incentivo financeiro recebido da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Professora na USP desde 1996, Lygia afirma que ambas as cidades têm lugares muito diferentes em seu coração. "O Rio tem toda referência afetiva das minhas origens. Por outro lado, eu tenho uma gratidão enorme por São Paulo, por me dar as condições para eu exercer todo meu potencial criativo e produtivo. E ainda me deu meu marido, paulista, e duas filhas", diz.

Além do dia a dia entre microscópios e computadores, Lygia gosta de estar com sua família, incluindo seu neto, o pequeno Lucca. Para além da ciência, ela revela um outro dom: o de cantar. "Sempre gostei de cantar e toco um violão, bem vagabundo, mas o suficiente para poder me acompanhar no canto", afirma. A cientista também é adepta dos esportes: joga squash e gosta de andar de bicicleta.

Feitos marcantes na ciência brasileira

Em 1994, com o financiamento da Fapesp e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Lygia montou na USP um laboratório para criar camundongos geneticamente modificados. Cinco anos depois, junto a um time de pesquisadores, estabeleceu as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias de camundongo no país.

Posteriormente, em 2008, Lygia expandiu sua criação para humanos, desenvolvendo a primeira linhagem de células-tronco embrionárias adultas no Brasil, de multiplicação in vitro, disponibilizadas para outros grupos de pesquisa no país. O grande trunfo das células-tronco embrionárias é que, por serem ainda células indiferenciadas, são as únicas capazes de gerar tecidos humanos, com potencial para tratar diversas doenças.

"A cultura de células tem uma pegada muito artesanal. Você tem que conhecer a cara da célula, saber se ela está feliz ou não. Foram muitas tentativas que deram errado para, de repente, em uma plaquinha, começar a crescer uma coisa que tinha a cara de uma célula embrionária", conta ela.

Questionada se tem noção da sua importância para a ciência brasileira, Lygia afirma que reconhece o impacto local de seus feitos, só que sua régua consigo mesma é alta. "Quando eu vou para os Estados Unidos, para algum congresso internacional, e vejo a ciência que está sendo feita lá, os avanços, acabo me achando insignificante".

Ela aproveita o gancho e faz um desabafo sobre a demora com que os avanços científicos acontecem no Brasil, dizendo que falta vontade política para mudar esse cenário. Segundo a cientista, as novas tecnologias aumentam o gap entre o que a ciência consegue fazer aqui no país e o que é feito no exterior.

"Na nossa área, as coisas ficam tão sofisticadas, e essa sofisticação traz um custo, que é a agilidade. Quando surge uma nova técnica, um novo reagente, preciso disso para já. E aqui, mesmo tendo dinheiro, o equipamento ou reagente demora até dois meses para chegar, ou muitas vezes não temos um técnico especializado para aquilo", explica. "Fazendo alusão a uma pista de atletismo, em uma corrida competindo com outros países, a pista do Brasil é de areia fofa".

O lado empreendedor

Para a geneticista, todo novo projeto de pesquisa é um empreendimento. É preciso escrever um 'business plan' e ir atrás de financiamento, mas não de investidores do mercado e, sim, de entidades de pesquisa, como o CNPq e a Fapesp.

"E o retorno do investimento não é financeiro, mas de conhecimento, com os artigos científicos escritos, o avanço científico gerado, os alunos de pós-graduação e cientistas que ajudei a formar, etc.", exemplifica. "Então, considero esse o meu grande empreendimento".

Atualmente Lygia é professora titular e chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo, e integrante do CEPID-FAPESP Centro de Terapia Celular.

E, depois de muitos anos dedicados somente à pesquisa, a cientista decidiu, em 2021, empreender fora da academia, e fundar a sua startup, a gen-t (nome resultante da junção das palavras gente e tecnologia). Isso após 25 anos de USP.

O projeto surgiu a partir de outro, o DNA do Brasil da USP, lançado por Lygia em 2019 e que se tornou um programa do Ministério da Saúde que estuda as variações genéticas da população brasileira. "Quando a gente sequenciou os primeiros 3 mil genomas, foi muito legal porque vimos a rica diversidade de genes brasileiros. Sequenciamos DNA de ancestralidade africana, indígena, europeia", comenta.

Desde então, sua biotech já levantou US$ 3 milhões (cerca de R$ 17,4 milhões) com investidores de peso como Eduardo Mufarej, Armínio Fraga e Daniel Gold. Um dos objetivos da startup é montar a maior infraestrutura privada de dados sobre a saúde do povo brasileiro por meio do sequenciamento do genoma de 200 mil pessoas de diversas regiões do país, número estimado de ser alcançado em 2027. Até agora, mais de 12 mil brasileiros participaram da plataforma, compartilhando seus dados de saúde e comportamentais, e doando sangue para armazenamento de plasma e sequenciamento de DNA.

A gen-t conta com 26 funcionários, entre time de operações clínicas e regulatório, time de dados, de TI e de bioinformática. No ano passado, a startup executou um projeto com a biofarmacêutica AbbVie, e atualmente, além da parceria fechada com a Regeneron para o sequenciamento de 20 mil genomas, está em tratativas com outras grandes farmacêuticas dos EUA e Europa.

"A indústria farmacêutica utiliza esses dados para acelerar o desenvolvimento de novos medicamentos. E isso já vem sendo feito com plataformas que existem na Inglaterra, Islândia, Finlândia e, agora, nos Estados Unidos. E está funcionando, mas é só genoma de gente branca. Eles querem acessar o genoma de outras populações e foi aí que vi a grande oportunidade", diz Lygia.

Por Fabiana Rolfini