Exames minuciosos em duas crianças com colesterol excepcionalmente alto, atendidas há cerca de 10 anos no Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) permitiram a identificação de dezenas de pessoas com uma doença genética, a hipercolesterolemia familiar, que pode causar infarto até mesmo em adolescentes e adultos jovens. As duas crianças tinham herdado de cada um dos pais a mutação genética causadora da doença. Portanto, tinham sua forma mais grave e rara, chamada homozigota.
Como eram casos raros, que atingem 1 em 600 mil indivíduos, a equipe do InCor supôs que essas crianças vivessem em regiões onde o gene alterado aparecesse com maior frequência, aumentando a probabilidade de gerar filhos com a mutação em dupla. Assim, as cidades de origem dos pais dessas crianças, no Maranhão e em Santa Catarina, teriam diversos casos da forma mais leve e comum da doença, com apenas uma mutação — os chamados heterozigotos — que atinge 1 em cada 300 pessoas no país, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Em cidades pequenas onde os primeiros moradores carregavam o gene da doença, com muitos casamentos consanguíneos, a frequência de homozigotos pode aumentar, como se observa também em outras doenças genéticas. Foi o que se viu entre sul-africanos (1 caso homozigoto de hipercolesterolemia familiar para cada 100 mil pessoas), libaneses (1 para 170 mil) e franco-canadenses (1 para 270 mil), segundo a Diretriz Brasileira de Hipercolesterolemia Familiar, publicada em 2021 na revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia.
A hipótese estava correta. De 2017 a 2019, os pesquisadores visitaram 11 cidades de até 60 mil habitantes nos dois estados e em Minas Gerais, que entrou no levantamento por ter muitos moradores com colesterol alto, como verificaram nos dados fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Encontraram 105 crianças e adultos com pelo menos 210 miligramas por decilitro (mg/dL) de colesterol de baixa densidade (LDL), conhecido como colesterol ruim e associado à aterosclerose; é um valor bem acima do limite recomendado de 130 mg/dL. Os testes genéticos revelaram que 35 delas carregavam o gene da hipercolesterolemia familiar, como relatado em artigo publicado em 2021 também na revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia.
“Em um município de Santa Catarina, um único paciente nos levou a 23 outros familiares com hipercolesterolemia. Mais diagnóstico significa mais tratamento, que ajuda a evitar doenças cardiovasculares, a maior causa de morte no país”, comemora a bióloga Cinthia Jannes, que liderou uma equipe de quatro pesquisadores do InCor que visitaram as cidades dos três estados e atenderam as famílias.
Por meio de um método conhecido como rastreamento em cascata, os primeiros a receber o diagnóstico apresentaram seus familiares, começando por pais e filhos, depois primos e tios e assim por diante, até que todo o círculo de parentes mais próximos fosse examinado. Nos três estados, a taxa de 4,7 familiares encontrados para cada paciente diagnosticado foi três vezes maior do que a média do Hipercol Brasil, serviço do InCor financiado pelo Ministério da Saúde, que desde 2012 recebeu e identificou 2 mil pessoas com pelo menos uma das mutações.
O colesterol é uma substância essencial para o organismo, por ajudar a formar a parede das células. Além do LDL, há o HDL de alta densidade, também conhecido como colesterol bom, por ser capaz de remover gorduras dos vasos sanguíneos. Em excesso, o LDL favorece o entupimento das artérias, a chamada aterosclerose, e aumenta o risco de infartos.
Identificada por meio de um exame de baixo custo, que detecta os níveis de colesterol no sangue, a hipercolesterolemia pode ser tratada com medicamentos utilizados no SUS, como as estatinas, classe de fármacos que reduz o nível de colesterol produzido pelo fígado, e a ezetimiba, que diminui a absorção do colesterol pelo intestino (cerca de 70% do colesterol é produzido pelo fígado e 30% é absorvido na alimentação).
“Mesmo assim, muitos pacientes não conseguem baixar o LDL. Para os resistentes ou homozigotos, usa-se o antiPCSK9, um anticorpo monoclonal produzido em laboratório que faz com que o fígado retire parte do LDL do sangue, mas é mais caro do que os outros medicamentos”, explica Jannes. O tratamento dura a vida toda, com controles regulares de colesterol.
“A hipercolesterolemia familiar é uma doença pouco diagnosticada e, na forma homozigótica, bastante rara”, alerta a cardiologista Maria Cristina Izar, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que não participou da pesquisa. “O rastreamento de novos casos nas regiões de origem dos pacientes permite o tratamento precoce, evitando cirurgias e outros procedimentos complexos.”
Coordenadora da Atualização da Diretriz Brasileira de Hipercolesterolemia Familiar, ela ressalta outro ponto positivo do projeto itinerante do InCor: a parceria com o sistema público de saúde local, preparando os profissionais da saúde para identificar quem teria níveis muito altos de colesterol.
Risco alto de morrer antes dos 65 anos
Ao voltar para as cidades com o resultado dos exames, Jannes tinha de dar más notícias: a doença aumenta 20 vezes o risco de problemas cardíacos. Geralmente, sem tratamento, 85% dos homens e 50% das mulheres com ao menos um gene da hipercolesterolemia morrem antes dos 65 anos, de acordo com os dados que embasam a Diretriz e orientam os profissionais da saúde. Segundo ela, era difícil para quem tinha a doença aceitar o diagnóstico e suas implicações porque o colesterol alto e a aterosclerose não costumam causar nenhum tipo de mal-estar ou sintoma que prenuncie o infarto.
Entre as pessoas que já haviam perdido familiares por ataque cardíaco, a reação era diferente. “Uma mulher do município de Major Vieira, em Santa Catarina, ficou chocada ao saber que dois filhos tinham a forma mais grave da hipercolesterolemia familiar”, conta Jannes. Em seguida, seus filhos foram encaminhados ao Hipercol Brasil.
A pesquisadora relata que os moradores dessa cidade diziam que as crianças com bolinhas na pele morriam cedo. Também chamadas de xantomas, esse acúmulo de gordura só ocorre nos casos mais graves de hipercolesterolemia.
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Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.