Na avaliação da pesquisadora, esse tipo de estudo ajuda a entender como uma epidemia evolui e quais são as principais rotas de transmissão
Um estudo publicado na plataforma Medrxiv, na sexta-feira (12), indicou que mais de 100 diferentes linhagens do novo coronavírus chegaram ao Brasil entre os meses de fevereiro e março de 2020, mas apenas três delas – muito provavelmente vindas da Europa – continuaram a se expandir no país e originaram os mais de 805 mil casos confirmados até o momento.
O trabalho, conduzido no âmbito do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE) e apoiado pela Fapesp, informa que as três linhagens emergiram nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro entre 22 e 27 de fevereiro. Além disso, a transmissão comunitária do vírus já estava estabelecida no país no início de março, dias antes de órgãos de saúde recomendarem a restrição de viagens aéreas e a adoção de “intervenções não farmacológicas” (NPIs, na sigla em inglês).
“Nossos resultados evidenciam a existência de duas fases da epidemia no país. A primeira é de transmissão a curta distância, dentro das fronteiras estaduais de São Paulo e Rio. No início de março teve início a fase dois, de longa distância. Ou seja, as pessoas contaminadas nesses dois estados já estavam levando o vírus para as demais regiões do país quando foram adotadas as NPIs”, afirmou Ester Sabino, uma das coordenadoras da pesquisa, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP).
Para chegar a essas conclusões, os cientistas usaram um modelo de transmissão orientado pela mobilidade da população. Informações sobre viagens aéreas e sobre as mortes confirmadas por Covid-19 entre fevereiro e abril foram cruzadas com dados genômicos do SARS-CoV-2.
Apesar da queda acentuada em voos após meados de março, os pesquisadores detectaram um aumento de 25% na distância média percorrida por passageiros aéreos no período. Tal fato, segundo os autores, coincidiu com a disseminação do vírus dos grandes centros urbanos para o resto do país.
“Nossos resultados lançam luz sobre o papel de grandes centros populacionais altamente conectados na ignição rápida e no estabelecimento do SARS-CoV-2 e fornecem evidências de que as atuais intervenções permanecem insuficientes para manter a transmissão do vírus sob controle no Brasil”, afirmaram os pesquisadores na publicação.
Quarentena
A taxa de contágio do SARS-CoV-2 no Brasil estava em torno de 3 antes das medidas de isolamento social. Ou seja, cada infectado transmitia o vírus, em média, para três outras pessoas - o que favorecia o crescimento exponencial da doença. Embora tenha sido adotada após a transmissão comunitária ser estabelecida, a quarentena conseguiu conter - ao menos em um primeiro momento - a propagação do vírus, segundo os cientistas.
O modelo de transmissão gerada pela mobilidade mostra que a taxa de contágio chegou a ficar abaixo de 1 nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro logo após a adoção das NPIs, o que evitou o crescimento exponencial do número de casos e o colapso dos hospitais. No entanto, o relaxamento do isolamento por parte da população fez com que os valores aumentassem entre 1 e 1,3 e, desde então, não baixaram mais. Especialistas em epidemiologia afirmam que somente quando a taxa de contágio se estabiliza abaixo de 1 durante algumas semanas, o crescimento em casos e mortes desacelera.
Linhagens
Por meio de análises de filogeografia – que combinam os dados de sequenciamento do genoma viral com as informações do local em que ocorreu a transmissão – os pesquisadores identificaram que 104 linhagens do SARS-CoV-2 entraram no Brasil. A maioria delas vinda dos Estados Unidos.
Do total de genomas sequenciados no país, 75% pertencem a três linhagens (ou clados) de origem europeia: 186 genomas (38%) correspondem ao “clado1"; 161 (33%) são do “clado 2”; e 19 (4%) se inserem no “clado 3”.
“É possível que as outras linhagens que identificamos não tenham conseguido se expandir porque quando elas entraram no Brasil já haviam sido implementadas as medidas de isolamento social. Mas é bem provável que, à medida que mais isolados virais forem sequenciados no país, clados diferentes sejam identificados. No Reino Unido, onde já foi feito o sequenciamento de mais de 20 mil amostras de pacientes com Covid-19, já foram identificadas mais de mil entradas do novo coronavírus”, revelou Sabino.
A pesquisadora explicou que o genoma do SARS-CoV-2 tem cerca 30 mil pares de bases (dois nucleotídeos opostos e complementares conectados por ligações de hidrogênio para formar as cadeias do RNA viral). Caso o vírus que infecta um indivíduo sofra uma mutação na posição 200 da cadeia de RNA, por exemplo, todas as pessoas que se contaminarem a partir desse paciente vão carregar a mesma marca no genoma viral.
“Ao cruzar esses dados com informações sobre a data e o local em que as amostras foram coletadas, conseguimos traçar a trajetória da epidemia, que ainda está apenas no começo”, afirmou a cientista.
Para determinar a origem da linhagem que se disseminou fortemente por estados do Norte como Amazonas e Pará, por exemplo, será preciso sequenciar mais amostras da região. “O que já sabemos é que os deslocamentos fluviais entre as cidades amazônicas contribuíram muito para espalhar o vírus”, disse.
Na avaliação da pesquisadora, esse tipo de estudo ajuda a entender como uma epidemia evolui e quais são as principais rotas de transmissão. “Esse conhecimento talvez sirva de lição para que em uma situação futura as medidas sejam tomadas mais precocemente e de forma mais efetiva”.