Um estudo conduzido pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) apontou que pessoas que tiveram covid-19 moderada ou grave apresentam alta incidência de déficits cognitivos e transtornos psiquiátricos. Entre as hipóteses que podem explicar a ligação estão as alterações tardias relacionadas à infecção pelo SARS-CoV-2, que teriam influência na origem dos transtornos.
Algumas dessas alterações incluem processos inflamatórios associados a alterações imunológicas, danos vasculares associados a coagulopatias ou a própria presença do vírus no cérebro. A motivação da equipe para a condução de uma pesquisa com este enfoque foi compreender o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas, explica Rodolfo Damiano, médico-residente do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM-USP) e primeiro autor do artigo. “Principalmente, pelo fato de ter acometido, até agora, mais de 400 milhões de pessoas”, explica ele. “Imagina o impacto que 1% no aumento de casos de depressão, por exemplo, pode causar nessa população? Estamos falando de mais 4 milhões de pessoas depressivas em todo o mundo.”
Na pesquisa, publicada na revista científica General Hospital Psychiatry , 425 pacientes adultos foram submetidos a entrevista psiquiátrica estruturada, testes psicométricos e bateria cognitiva. Os participantes ficaram internados, depois de seis a nove meses da alta hospitalar, no Hospital das Clínicas da USP, por pelo menos 24 horas. Os casos que precisaram de terapia intensiva foram aqueles tidos como graves, enquanto os demais foram classificados como moderados.
A prevalência de transtorno mental comum por sintomas depressivos, estados de ansiedade, irritabilidade, fadiga, insônia, dificuldade de memória e concentração foi de 32,2%. O agravamento de sintomas psiquiátricos é esperado após infecções agudas, mas não existem registros em que se tenha observado perdas tão significativas como com a covid-19.
Os resultados trazem que a prevalência de transtorno mental comum, caracterizado por sintomas depressivos, estados de ansiedade, irritabilidade, fadiga, insônia, dificuldade de memória e concentração, no grupo estudado foi de 32,2%. Na população brasileira em geral, essa taxa é de 26,8%. Nesses pacientes, a prevalência de transtorno de ansiedade generalizada foi de 14,1%, sendo que a média entre os brasileiros é de 9,9%. A depressão foi diagnosticada em 8% dos pacientes recuperados. O número também fica acima do estimado para a população geral do País, um valor entre 4% e 5%.
“Nosso estudo demonstrou que a infecção pelo vírus em si, e não somente o isolamento, tem um impacto na saúde mental e na cognição”, afirma Damiano. “O aumento do número de infectados pode, proporcionalmente, aumentar a frequência e a intensidade de todos esses sintomas.” O agravamento de sintomas psiquiátricos é esperado após infecções agudas, mas não existem registros de outros casos de doenças virais em que se tenha observado tanta diferença e perdas cognitivas tão significativas como com a covid-19, segundo o médico. “Os estudos anteriores demonstraram que indivíduos acometidos por outras doenças virais durante a pandemia não apresentaram tantos sintomas neuropsiquiátricos quanto os acometidos pela SARS-CoV-2.”
As alterações cognitivas e psiquiátricas observadas no grupo não têm relação com a gravidade do quadro, com o tratamento adotado no período de hospitalização ou com fatores socioeconômicos, o que Damiano considera “um dos grandes achados” do estudo. “Não encontramos nenhuma relação entre fatores psicossociais – como perdas financeiras e morte de pessoas próximas –, ou qualquer fator de gravidade ou de comorbidade nas pessoas, e as alterações encontradas.”
Há evidência de que exercícios físicos e treinos de reabilitação cognitiva podem ajudar a mitigar os efeitos de alterações cognitivas e, possivelmente, também nos pacientes acometidos pela covid-19. Contudo, observa Damiano, não existem drogas inibidoras que possam ser usadas para prevenir o aparecimento ou o agravamento de sintomas psiquiátricos. “Por enquanto, a principal droga usada para prevenir se chama vacinação”, adverte.
Diante dos resultados, a recomendação indicada aos pacientes recuperados que apresentem casos leves de problemas psiquiátricos é a mudança dos hábitos de vida: melhorar a alimentação e, principalmente, fazer exercícios físicos. Para os casos moderados a graves, recomenda-se auxílio especializado.
“Não encontramos nenhuma relação entre fatores psicossociais – como perdas financeiras e morte de pessoas próximas –, ou qualquer fator de gravidade ou de comorbidades nas pessoas, e as alterações encontradas.” Rodolfo Damiano, médico-residente do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM-USP)
Próximos passos
A repercussão internacional após a publicação da pesquisa tem sido intensa. O estudo vem sendo divulgado em mídias de vários países ao redor do mundo. “Até o momento, os resultados já foram noticiados na América do Sul, na China e em outros países da Europa. Isso mostra a profundidade do nosso trabalho”, comemora o autor.
A fase seguinte da investigação, a partir das primeiras constatações, será avaliar os mesmos pacientes daqui a dois anos. Com isso, a equipe espera ver se esses efeitos são reversíveis e quais seriam os fatores associados a uma melhor ou pior evolução ao longo do tempo.
O estudo faz parte de um projeto mais amplo, coordenado pelo professor da FM-USP Geraldo Busatto Filho, no qual um grande grupo de pessoas atendidas no Hospital das Clínicas entre 2020 e 2021 vem sendo acompanhado por profissionais de diversas áreas, entre elas otorrinolaringologia, fisiatria e neurologia, a fim de avaliar eventuais sequelas deixadas pelo coronavírus.
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Eduardo Ribeiro