Em 1944, o engenheiro e físico carioca identificou na cera de carnaúba um fenômeno de formação de corrente elétrica usado hoje em celulares e computadores
Nas noites frias dos anos 1950 em Teresópolis, no Rio de Janeiro, o engenheiro e físico carioca Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960), com seus nove filhos, enrolados em cobertores no gramado do casarão onde passavam as férias de verão, tinha por hábito observar o céu estrelado. “O céu, descrito por ele de forma poética, era um infinito maravilhoso”, lembra a antropóloga Yvonne Maggie de Leers Costa Ribeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ao se lembrar de como seu pai mostrava as constelações e explicava a origem de seus nomes (ver Pesquisa FAPESP no 295).
Com cartas, fotos e filmes, o documentário Termodielétrico, lançado em outubro de 2024, dirigido e narrado pela cineasta Ana Costa Ribeiro, uma de suas netas, retoma a trajetória pessoal e científica do avô, descobridor do fenômeno conhecido como efeito termodielétrico. Definida como a capacidade de alguns materiais gerarem corrente elétrica ao passarem de um estado físico para outro – do sólido para o líquido ou vice-versa –, essa propriedade foi identificada pela primeira vez na cera de carnaúba. Em consequência dessa transformação, produziam-se materiais com carga elétrica permanente, os chamados eletretos, empregados em componentes de aparelhos eletrônicos.
Costa Ribeiro não é tão conhecido quanto outros físicos brasileiros de sua época, como César Lattes (1924-2005) e Mário Schenberg (1914-1990) (ver Pesquisa FAPESP nos 307 e 340), embora tenha contribuído para o avanço da pesquisa e a estruturação da ciência nacional. Um dos pioneiros na área atualmente chamada de física da matéria condensada, que estuda as propriedades da matéria e seus elementos, como átomos e elétrons, ele foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951, do qual foi o primeiro diretor científico.
Sua linhagem materna era de usineiros pernambucanos. Seu pai, paraibano, era da terceira geração de bacharéis em direito – o avô, de quem herdou o nome, foi desembargador. Costa Ribeiro iniciou em 1924 o curso de engenharia civil na Escola Politécnica da Universidade do Rio de Janeiro, renomeada como Universidade do Brasil em 1937 e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1965. Em 1929, logo após terminar o curso, foi contratado como assistente da cadeira de física experimental da Politécnica.
Em 1934, Costa Ribeiro se casou com a francesa Jacqueline de Leers (1911-1957), que havia imigrado ao Brasil em 1917. Para sustentar a família, além da Politécnica, dava aulas numa escola secundária, numa escola técnica na Universidade do Distrito Federal (UDF), extinta em 1939 ao ser anexada à Universidade do Brasil.
No começo da carreira, ele mediu a radioatividade de minerais como a uranita ou pechblenda, na qual a física e química franco-polonesa Marie Curie (1867-1934) identificou pela primeira vez um elemento químico radioativo, o rádio. Costa Ribeiro colocava as amostras numa câmara de ionização e media a tensão elétrica, da qual extraía a corrente de ionização que indicava o índice de radioatividade do mineral.
No livro Costa Ribeiro: Ensino, pesquisa e desenvolvimento da física no Brasil (Livraria da Física, 2013), o físico e historiador da ciência Wanderley Vitorino da Silva Filho, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), conta que ele fez adaptações no método original e conseguiu medidas mais rápidas e precisas. Costa Ribeiro confirmou que a uranita continha altos teores de rádio e de outro elemento químico radioativo, o urânio, e publicou os resultados em junho e dezembro de 1940 na Annaes da Academia Brasileira de Sciencias.
No final dos anos 1930, na UDF e no Instituto Nacional de Tecnologia, o físico alemão Bernhard Gross (1905-2002) procurava alternativas à borracha para revestir cabos telefônicos, que se deterioravam facilmente. Materiais isolantes como borracha, vidro, cerâmica e plástico são chamados de dielétricos quando, sujeitos a uma voltagem elétrica acima de seu limite, tornam-se condutores de eletricidade. Gross tentava explicar anomalias em dielétricos, como quando são utilizados entre dois condutores em condensadores, chamados hoje de capacitores, e regeneram a carga elétrica mesmo depois de dissipada por um curto-circuito.
Outra alteração era a formação de eletretos, materiais com carga elétrica permanente. Um eletreto conhecido era a cera de carnaúba, produzida com um pó extraído de uma palmeira nativa do Nordeste brasileiro. Nos anos 1920, físicos japoneses produziram eletretos aplicando carga elétrica em cera de carnaúba durante sua solidificação. Gross queria saber se a formação de eletretos estaria relacionada com a variação de temperatura e fazia experimentos com a cera em condensadores eletricamente carregados e aquecidos. Mais tarde, nos anos 1960 e 1970, ele contribuiu decisivamente para o desenvolvimento do microfone de eletretos, um dos dois tipos de microfones usados nos telefones celulares.
Em 1943, Costa Ribeiro começou a investigar o papel da radioatividade nesse fenômeno. Para sua surpresa, amostras de cera de carnaúba misturada a elementos radioativos apresentaram carga elétrica no mesmo nível que as amostras puras. Ele notou que não precisava aplicar um campo elétrico externo para produzir um eletreto. “Ele derreteu a cera, deixou-a solidificar e viu que ficou muito carregada eletricamente”, diz Silva Filho. Intrigado com a origem daquela carga, decidiu medir a tensão da cera durante a solidificação. O equipamento registrou corrente elétrica. “Então fez o contrário: derreteu a cera e, durante a fusão, mediu a corrente elétrica, que apareceu de novo”, ele conta. Costa Ribeiro repetiu o processo com outros dielétricos, como a parafina e o naftaleno (ou naftalina), dois derivados do petróleo, e o breu, extraído de pinheiros, e observou novamente o surgimento de eletricidade durante a mudança de estado.
“Sérgio [Mascarenhas, 1928-2021] e eu ajudávamos Costa Ribeiro nas medidas, sem bolsa nem remuneração”, conta a física Yvonne Mascarenhas, professora aposentada do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e primeira mulher de Sérgio, também físico (ver Pesquisa FAPEP nos 258 e 305). “Qualquer medida precisava de alguém para olhar na escala e tomar notas. Para fazer um experimento participavam duas ou três pessoas. Aprendi muito conversando com ele, sempre muito atencioso.”
Os experimentos revelaram relações físicas fundamentais nos materiais dielétricos. A intensidade da corrente elétrica se mostrou proporcional à velocidade da mudança de estado: quanto mais rápida, maior a carga elétrica, que também é proporcional à quantidade do material que passa de um estado a outro. Além disso, o fenômeno é reversível: a carga que surge durante a fusão tem a mesma intensidade da que aparece durante a solidificação. Por causa da relação entre o calor e a carga elétrica em dielétricos, Costa Ribeiro chamou o fenômeno de termodielétrico e o apresentou na Academia Brasileira de Ciências (ABC) em 1944. Os resultados completos vieram na tese “Sobre o fenômeno termodielétrico”, que ele defendeu em 1945 para assumir a cátedra de física na então Universidade do Brasil.
Orgulhosos do primeiro fenômeno físico inteiramente descoberto e descrito por um brasileiro, no Brasil, membros da ABC passaram a chamá-lo de efeito Costa Ribeiro e o nome pegou por aqui. Embora tenha apresentado os trabalhos em Paris, na Universidade Sorbonne, e chamado a atenção da gigante petrolífera Shell, Costa Ribeiro concentrou suas publicações em revistas científicas do Brasil. Isso talvez pese na controvérsia que se iniciou em maio de 1950, quando dois físicos norte-americanos, Everly Workman (1899-1982) e Stephen Reynolds (1916-1990), ambos da Escola de Minas do Novo México, nos Estados Unidos, publicaram um artigo na Physical Review descrevendo o surgimento de cargas elétricas durante o congelamento da água com impurezas, o que explicaria a eletricidade na atmosfera. Sob protestos de cientistas brasileiros, o fenômeno ficou conhecido nos Estados Unidos como efeito Workman-Reynolds. Ainda nos anos 1950, circulou uma proposta norte-americana de nomear o efeito como Workman-Reynolds-Ribeiro, que não emplacou. Exceto nos Estados Unidos, o nome mais utilizado hoje é termodielétrico, como queria o próprio Costa Ribeiro.
Com a reputação acadêmica consolidada, Costa Ribeiro pressionou por políticas públicas de incentivo à ciência. No fim dos anos 1940, com Lattes e outras figuras de peso, liderou um movimento para a criação de uma agência financiadora de pesquisa científica. “Por dois anos eles pressionaram o governo a implantar o CNPq, e deu certo”, conta o físico Sergio Machado Rezende, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ministro da Ciência e Tecnologia de 2005 a 2010.
Ao longo da década de 1950, Costa Ribeiro integrou a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e representou o Brasil no debate sobre o controle do uso pacífico de energia atômica, incluindo suas aplicações pacíficas, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) em Paris e Genebra. Em Washington, em 1955, ele participou da elaboração do estatuto da Agência Internacional de Energia Atômica, que visava fiscalizar o uso de energia nuclear. Atuou na mesma agência, em 1959, em Viena. Alguns trechos dessas viagens estão no documentário Termodielétrico, que pode ser visto no site itauculturalplay.com.br.
Ana Costa Ribeiro, a autora do documentário, não conheceu o avô pessoalmente. Começou a pesquisar sobre ele durante o luto pela perda do pai, o químico Carlos Costa Ribeiro (1939-2015). No filme, ela relata a descoberta de um acervo com obras do avô no Museu de Astronomia e Ciências (Mast): “O que encontrei ali foi muito mais do que investigações científicas. Encontrei uma curiosidade sem-fim, de alguém que se pergunta sobre todas as coisas que nos rodeiam, que as observa sem hierarquia”.
Para Pesquisa FAPESP, ela resgatou uma história pitoresca: para servir à mesa da numerosa família, um de seus tios, o físico Paulo da Costa Ribeiro (1940-2023), inventou um trenzinho que dava a volta na mesa levando as travessas de comida.
Costa Ribeiro alimentava a curiosidade e o encantamento dos filhos com experimentos simples. “No quarto escuro, ele abria uma fresta na veneziana e deixava entrar uma faixa de luz, que incidia sobre um diamante e deixava o quarto todo iluminado, como uma miríade de arcos-íris”, recorda Yvonne Maggie. Ela não reteve as explicações, mas algo talvez mais importante: “O que ficou gravado é o mistério, a pergunta”. Quase todos os filhos foram alfabetizados pela própria mãe e tomaram gosto pela pesquisa.
O legado de Costa Ribeiro atravessou gerações. Sérgio Mascarenhas, um de seus alunos, formou um centro de física da matéria condensada, o IFSC-USP, em torno dos estudos do efeito termodielétrico. Por sua vez, Rezende, discípulo de Mascarenhas, criou na Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, outro centro de pesquisa nessa área (ver Prêmio Conrado Wessel 2012-2013).
A reportagem acima foi publicada com o título “Fontes de eletricidade” na edição impressa nº 350, de abril de 2025.
Artigos científicos
LEAL FERREIRA, G. F. Há 50 anos: O efeito Costa Ribeiro. Revista Brasileira de Ensino de Física. v. 22, n. 3, p. 434-43. set. 2000.
WORKMAN, E. J. e REYNOLDS, S. E. Electrical phenomena occurring during the freezing of dilute aqueous solutions and their possible relationship to thunderstorm electricity. Physical Review. v. 78, n. 254, p. 254-59. 1º maio 1950.
Livro
SILVA FILHO, W. V. Costa Ribeiro: Ensino, pesquisa e desenvolvimento da física no Brasil. Campina Grande: EDUEPB. São Paulo: Livraria da Física, 2013, p. 266-69.