A maré da segunda onda da Era do Conhecimento está batendo firme dentro das corporações e, especialmente, em suas plataformas digitais. Desde 1993, quando houve a liberação da internet para o comércio e negócios, não se via uma movimentação tão forte das empresas por um reposicionamento, tanto na maneira de fazer negócios como na corrida pela digitalização mais ampla das suas operações.
O temor da disrupção é latente e predomina entre quaisquer projeções sobre o futuro dos negócios num ambiente-ou ecossistema, como o mundo digital gosta de chamar-sem fronteiras e de altíssima velocidade. O diagnóstico dessa ansiedade corporativa é chamado de 'complexo Wells Fargo', um 'case' bem conhecido nas universidades da costa oeste dos Estados Unidos, sobretudo no Vale do Silício. Trata-se do movimento inercial da grande empresa de diligências, que hoje é um dos maiores bancos americanos, em buscar a verticalização de seu negócio para a produção de arreios e chicotes, no final do século 19, enquanto o motor a combustão já se alastrava na Europa. E depois veio a freada brusca para troca de rumo, que quase matou a companhia.
O pavor recorrente na segunda Era do Conhecimento é essa posição 'walking dead', ou seja, o negócio está de pé e lucrativo, mas morto a médio e longo prazo. E isso está levando o comando das grandes empresas a perder o medo de discutir e planejar o futuro do negócio fora dos seus muros e compartilhar, num crescente número de parcerias, a reestruturação operacional da corporação. É a chamada inovação aberta.
De acordo com Newton Frateschi, diretor-executivo da agência Inova Unicamp (Campinas, SP), a inovação aberta ou o compartilhamento tecnológico, além de assegurar mais recursos aos projetos de pesquisa, reduz o tempo de maturação, uma vez que a união de empresas, cientistas e centros de pesquisa e desenvolvimento das universidades queima várias etapas ante a objetividade e o foco dos propósitos do projeto. "O processo de competição, tanto de especialistas, alunos, como startups, pela inovação tem ajudado a ampliar bastante até o registro de propriedade intelectual no país", diz o cientista em fotônica da Unicamp.
De fato, há uma febre de processos seletivos por inovação aberta como forma de as corporações atraírem os "gênios" para seus projetos. "O movimento por inovação aberta é mundial. As aceleradoras de startups coligadas ao negócio para assegurar o futuro é uma realidade. E acredito que essa tendência vai atropelar aqueles que continuam olhando para o horizonte da empresa apenas 'in doors"', comenta Fernando M. Lemos, vice-presidente de inovação da Oracle para a América Latina.
São Paulo é vista como uma das capitais de inovação da Oracle no mundo, ao lado de Paris (França), Brístol (Inglaterra), Bangalore, Mumbai (Índia), Tela vi v (Israel) e Cingapura. O projeto da maior companhia global de B2B foi iniciado mundialmente em 2016 e oferece seis meses, renováveis por mais 18 meses, de big da ta, internet, uso dos seus laboratórios e a sua rede mundial de clientes da Oracle gratuitos para startups previamente selecionadas. No final desses prazos, elas poderão renovar o contrato por mais 12 meses com os mesmos benefícios, o que assegura mais tráfego e novas interfaces com o mercado para a Oracle.
Contratualmente, as vendas que essas startups abrigadas na Ora de realizam são 100% de receita delas. "Em dois meses e meio do projeto no Brasil, já temos a primeira startup, das sete que selecionamos este ano, fechando seu primeiro contrato internacional", comenta Lemos. Ele explica que a empresa, que hoje tem um valor de mercado na casa dos US$ 200 bilhões, nos anos 70 estava na mesma situação dessas suas "abrigadas", e agora pode oferecer um caminho "menos penoso" para a consolidação do lucrativo e global negócio digital. A Ora de fará essas seleções, anualmente, nas suas capitais de inovação. Em 2017, São Paulo liderou com 500 empresas candidatas, contra 240 de Paris e 250 de Bangalore. "Praticamente já temos as cadastradas para nossa seleção de 2018", acrescenta.
A brasileira Cristália, farmacêutica líder do setor de anestésicos do país, está compartilhando dentro do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais ( CNPEM), de Campinas (SP), uma pesquisa inédita de biotecnologia que um diretor seu começou a desenvolver há mais de 20 anos. E, com o seu falecimento recente, seus disápulos na empresa estão levando o projeto adiante.
"Estamos isolando microrganismos, mais de 3 mil deles entre fungos, bactérias, de substratos do solo brasileiro, que com a biodiversidade de sua flora e fauna ficam depositados e têm propriedades promissoras para cânceres, novas classes de antibióticos, bactericidas, fungicidas, entre outros", conta Ogari de Castro Pacheco, presidente do conselho diretor da Cristália.
Depois de isolados, os componentes desses microrganismos são testados para descobrir quais deles são eficientes para combater determinadas doenças ou distúrbios. "Só depois pensamos em desenvolver o prinápio ativo dos futuros medicamentos", explica. O Cristália também compartilha essa pesquisa com uma indústria farmacêutica espanhola. Segundo Pacheco, ainda há pelo menos mais quatro ou cinco anos pela frente antes que uma molécula nova dessas possa entrar na linha de produção de medicamentos. "Depois que confirmarmos a eficácia das novas moléculas, cada um vai usá-las e produzir o remédio como quiser", adianta o presidente da Cristália.
A fabricante de aeronaves Embraer é uma das pioneiras na inovação aberta no país e participa de três a quatro consórcios internacionais, mesmo que, em grande parte, sejam competidores na mesma cadeia de fornecedores. Um dos focos do compartilhamento é para pesquisas chamadas de baixa maturidade (de riscos mais elevados). Uma dessas áreas é a nanotecnologia e todo o seu amplo aspecto de aplicação em novos materiais, especialmente os mais leves e resistentes que o ar ou os de alta condutividade de calor.
A Embraer também faz pesquisas de aerodinâmica para o desenvolvimento de estruturas que assegurem ganho de velocidade com menos arrasto. No momento, a empresa ainda está muito envolvida num consórcio de propósito especifico com a Boeing para a cadeia de biocombustíveis de aviação, cujos estudos estão sendo realizados aqui no Brasil. ''Também somos cotistas de um fundo com mais cinco ou seis empresas para desenvolver startups em áreas como segurança cibernética, de TI para o setor aeroespacial ou aplicações que evitem processos disruptivos", comenta Daniel Moczydlower, diretor de desenvolvimento tecnológico da companhia.
Uma das startups coligadas, a Flight Technology Sistemas, desenvolveu drones de menor porte para supervisionar o deslocamento de autoridades na recente Olimpíada do Rio de Janeiro. Agora eles estão sendo usados para vigilância e supervisão logística dentro de fábricas ou campos agrícolas.
Na Dow Química, as frentes de compartilhamento de tecnologia se espraiam em cadeias, à medida que seus produtos químicos integram outras linhas de produção industrial, até chegar ao consumidor final. John Biggs, diretor de PD da companhia no Brasil, destaca os projetos de aceleradoras de startups junto a incubadoras de universidades como USP, Unicamp e UFSCar, além de compartilhamento de pesquisas em produtos químicos com clientes.
"Nós estamos voltados para desenvolver pesquisas na cadeia, de forma muito foca da com nossos clientes, para entender o mercado mais na ponta, o consumidor final", resume o executivo da Dow. Ele acrescenta que na área de poliuretanos (espumas rígidas muito usadas em colchões), por exemplo, há clientes que desenvolvem totalmente novos produtos e os testam em seus laboratórios. Para 2018, a Dow prevê investimentos em um laboratório de 18 mil metros quadrados em Jundiaí (SP).
Não são apenas as grandes corporações que surfam a inovação aberta. A Sensedia, uma ex-startup que nasceu em 2007 em Campinas (SP), atua no compartilhamento de plataformas de TI de grandes empresas com o desenvolvimento de interfaces de programação de aplicativos ( apis ). Ela atua em parcerias com empresas pré-selecionadas, que operam dentro de ambientes corporativos para desenvolver novas aplicações com base no banco de dados das empresas.
"Nós asseguramos esse compartilhamento parcial e seguro com habilitadas para desenvolver, de forma rápida e aberta, novos aplicativos ou produtos virtuais em agentes como seguradoras, bancos ou grandes manufaturas", explica Kleber Bacili, CEO da Sensedia. Geralmente são camadas de dados, como, por exemplo, os de uma apólice de seguro, que extraídos vão permitir uma interação digital bem mais simples, segura e ágil com os clientes.
A empresa promove os famosos 'hackthons', encontros de um a dois dias que atraem milhares de experts em internet para que entreguem soluções e interfaces de determinados desafios das companhias. "Em pouquíssimo tempo saem apps, como um recente que selecionamos e que usa a teoria dos jogos para programas que ensinam ludicamente como poupar e aplicar mais dinheiro. São muitas empresas que querem, por exemplo, ferramentas para ecossistema de Facebook", resume Bacili.
A sul-coreana Samsung tem um programa de 'promoção de economia criativa' para inovação aberta. Anualmente, os ganhadores desse programa fazem intercâmbio do Brasil para outras operações da companhia ou da Coreia para o Brasil, por exemplo. No final de outubro de 2017, duas startups brasileiras foram integradas ao programa na Coreia, a Treevia e Meu Plano. Elas vão passar por um processo de internacionalização de suas atividades, com visitas a clientes, potenciais parceiros e aceleradoras coligadas à Samsung. O Brasil recebeu seis startups coreanas no mesmo programa. Outros pesquisadores do Samsung Research Institute Brazil compartilharam com o Instituto de Computação (IC) da Unicamp o desenvolvimento de um sistema capaz de filtrar 97% da pornografia e 80% do material de violência exibidos em celulares, computadores e tablets para crianças. Esse projeto contou com recursos da Fapesp.