Investigadores da Universidade de São Paulo (USP) mostraram, pela primeira vez, que o vírus SARS-CoV-2 pode estar presente nos espermatozoides de pacientes até 90 dias após a alta hospitalar e até 110 dias após a infeção inicial, reduzindo a qualidade do sémen. Os resultados da pesquisa, publicados recentemente na revista Andrology, alertam para a necessidade de se considerar um período de “quarentena” após a doença para quem pretende ter filhos.
Mais de quatro anos após o início da pandemia de COVID-19, já se sabe que o novo coronavírus é capaz de invadir e destruir uma série de células e tecidos humanos, entre eles os do sistema reprodutivo, dos quais os testículos funcionam como “porta de entrada”. Embora diversos estudos já tenham observado a sua maior agressividade para o trato genital masculino em comparação a outros vírus e, até mesmo, detetado o SARS-CoV-2 na gónada masculina durante autópsias, o patógeno raramente é identificado em exames de PCR [teste molecular que deteta o material genético viral] do sémen humano.
Para preencher essa lacuna de conhecimento científico, o estudo atual, financiado pela FAPESP, lançou mão das tecnologias de PCR em tempo real para deteção de RNA e de microscopia eletrónica de transmissão (TEM) para analisar espermatozoides ejaculados por homens convalescentes de COVID-19.
Foram estudadas amostras de sémen de 13 pacientes infetados e que desenvolveram COVID-19 nas formas ligeira, moderada e grave, atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HC-FM-USP), com idade entre 21 e 50 anos, num período de até 90 dias após a alta e 110 dias após o diagnóstico. Apesar de todos terem testado negativo para a presença do SARS-CoV-2 no teste de PCR do sémen, o vírus foi identificado em espermatozoides de oito dos 11 (72,7%) pacientes com doença moderada a grave até 90 dias após a alta hospitalar, o que, segundo os autores, não quer dizer que não esteja presente por mais tempo.
O SARS-CoV-2 também foi identificado num dos dois pacientes com COVID-19 ligeira. Assim, entre os 13 infetados, nove (69,2%) tiveram SARS-CoV-2 detetado de forma intracelular nos espermatozoides ejaculados. Outros dois pacientes apresentaram desarranjos ultraestruturais nos gâmetas semelhantes aos observados nos pacientes em que o vírus foi diagnosticado. Desse modo, os investigadores consideram que, ao todo, foram 11 os participantes com a presença viral dentro do gâmeta masculino.
“Mais do que isso, observámos que os espermatozoides produzem ‘armadilhas extracelulares’ baseadas em DNA nuclear, ou seja, o material genético contido no núcleo descondensa-se, as membranas celulares do espermatozoide rompem-se e o DNA é expulso de forma extracelular, formando redes semelhantes às descritas anteriormente na resposta inflamatória sistémica ao SARS-CoV-2”, relata Jorge Hallak, professor da FM-USP e coordenador do estudo.
Hallak refere-se a um mecanismo imunológico conhecido como NET [armadilha extracelular neutrofílica, na sigla em inglês], que, como o nome sugere, é uma estratégia de defesa usada principalmente pelo neutrófilo, um tipo de leucócito capaz de fagocitar bactérias, fungos e vírus e que compõe a linha da frente do sistema imune. Quando esse mecanismo é ativado, os neutrófilos lançam “redes” para o meio extracelular de modo a isolar, prender, neutralizar e matar agentes invasores. Contudo, as NETs também são lesivas a outros tecidos do organismo, quando hiperativadas.
Os resultados da microscopia eletrónica revelaram que os espermatozoides produzem armadilhas extracelulares baseadas em DNA nuclear para neutralizar o agente agressor e “suicidam-se” no processo. Ou seja, a célula “sacrifica-se” para conter o patógeno – mecanismo conhecido em inglês como suicidal ETosis-like response.
“A descrição, inédita na literatura, de que os espermatozoides atuam como parte do sistema inato de defesa a invasores confere ao estudo uma grande importância. Pode ser considerada uma quebra de paradigma na ciência”, avalia Hallak.
Até então, explica o investigador, eram quatro as funções conhecidas dos espermatozoides: trazer o conteúdo genético do gâmeta masculino para as proximidades do gâmeta feminino, fertilizar o gâmeta feminino, promover o desenvolvimento embrionário adequado e crítico até à 12ª semana de gestação e ser codeterminante no desenvolvimento de diversas doenças crónicas na fase adulta, como infertilidade, hipogonadismo, diabetes, hipertensão, alguns tipos de cancro e doença cardiovascular, entre outras.
Agora, com esta descoberta, uma nova função foi adicionada à lista, além da reprodutiva.
“As possíveis implicações das nossas descobertas para o uso de espermatozoides em técnicas de reprodução assistida devem ser urgentemente consideradas e abordadas pelos médicos e órgãos reguladores, particularmente na técnica utilizada em mais de 90% dos casos de infertilidade conjugal no Brasil, em laboratórios de micromanipulação de gâmetas, que é a injeção de um único espermatozoide dentro do óvulo – método conhecido como ICSI [do inglês, intracytoplasmic sperm injection]”, alerta Hallak, que defende adiamento da conceção natural e, particularmente, das técnicas de reprodução assistida por pelo menos seis meses após a infeção por COVID-19, mesmo em casos ligeiros.
Descobertas anteriores
Um dos primeiros membros das comunidades científica e médica a sugerir mais cautela nos protocolos de reprodução durante a pandemia, Hallak estuda o impacto da COVID-19 na saúde reprodutiva e sexual desde 2020, quando atuou como médico voluntário na linha da frente do pronto-socorro do HC-FM-USP.
O seu grupo de investigação, que envolve colaboradores do Departamento de Patologia da FM-USP, já fez importantes descobertas sobre o tema, como o facto de o sexo masculino per se ser um fator de risco para maior mortalidade e gravidade da infeção pelo SARS-CoV-2. Uma das hipóteses está ligada ao facto de os testículos apresentarem uma grande quantidade de recetores ACE2 (proteína usada pelo vírus para invadir a célula humana) e da proteína TMPRSS2 (responsável pela ligação do vírus aos recetores ACE2), enquanto, nas mulheres, os ovários têm somente os recetores ACE2.
Noutro estudo, realizado com membros da Divisão de Clínica Urológica do Hospital das Clínicas da FM-USP, o grupo constatou uma queda acentuada na libido e na satisfação sexual geral, além de aumento no consumo de pornografia e frequência masturbatória, em profissionais de saúde em decorrência da pandemia.
A equipa da USP descobriu ainda que os testículos são órgãos-alvo potenciais para a infeção pelo vírus, que causa epididimite subclínica (inflamação do epidídimo, túbulo de 5 a 6 metros de comprimento, externo e em localização posterior aos testículos, essencial para o amadurecimento, aquisição de capacidade de fertilização do óvulo e armazenamento dos espermatozoides). E demonstrou, de forma inédita, a gravidade das lesões testiculares associadas à COVID-19.
No momento, o grupo de médicos e cientistas do HC-FM-USP, sob a coordenação do professor Carlos Carvalho, avalia os efeitos tardios da infeção pelo SARS-CoV-2 no grupo de mais de 700 pacientes infetados e que foram avaliados, inicialmente, por meio de um Projeto Temático financiado pela FAPESP.
Agência FAPESP