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Jornal da Unicamp online

Consórcio Telecoupling antevê cenários em escala global (1 notícias)

Publicado em 13 de junho de 2018

Por Luiz Sugimoto

E se Donald Trump acirrar a guerra tarifária com a China e a China, em represália, deixar de comprar a soja americana para dar exclusividade ao Brasil? E se o Brasil, para dar conta da demanda chinesa pelo grão, expandir o plantio no Mato Grosso amazônico ou no Cerrado do Matopiba (nova fronteira agrícola envolvendo áreas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia)? E se a China resolver aumentar a criação de porcos, demandando ainda mais a soja brasileira? E se os chineses, que não comem a soja transgênica, mas compraram a multinacional Syngenta, decidirem produzir internamente o grão modificado? E se algum fenômeno climático em outra parte do globo afetar o regime de chuvas e destruir plantações de soja no Brasil?

“E se?” é a chamada “what if question” que norteia o Telecoupling, uma nova abordagem teórica e metodológica para prever cenários futuros sobre qualquer tema, adotando uma visão multiescalar e multidimensional que envolve aspectos biofísicos, sociais, econômicos, políticos ou de outra natureza, seja em nível global, nacional, regional ou local. O Telecoupling é um consórcio internacional envolvendo Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e China, selecionado em chamada do Belmont Forum – um dos braços de fomento do Future Earth, programa global de pesquisa científica focado nas grandes transformações em curso no planeta.

O Belmont Forum possui um comitê executivo de pesquisadores do mais alto nível que desenham chamadas competitivas internacionais junto às agências de financiamento dos mais de 20 países participantes. A parceria brasileira para o Telecoupling é formada pela Unicamp, através do Nepam (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais); Embrapa; e Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena/USP). É um projeto iniciado em 2015 e que vai até 2020, tendo a Fapesp como financiadora brasileira.

“A temática dessa chamada é ‘segurança alimentar e uso da terra’, com a proposta de avaliar os impactos, as limitações e as condicionantes da segurança alimentar em várias escalas e as consequências na dinâmica de uso da terra”, explica Mateus Batistella, pesquisador da Embrapa, professor permanente do programa de pós-graduação Ambiente e Sociedade (Nepam) e coordenador geral do Telecoupling. “Escolhemos o tema das commodities agrícolas, já que o projeto é amplo o bastante para abrigar várias delas. E iniciamos os trabalhos pela soja, devido à dinâmica dos países participantes: Brasil e Estados Unidos como os maiores exportadores e a China como maior importador do grão.”

Batistella explica que o arcabouço teórico do Telecoupling foi publicado na revista Ecology & Society (Liu et al., 2013). “Essa abordagem converge de dois conceitos que já são muito mais aceitos tanto na ciência como na mídia: a globalização, definida por processos que acontecem em determinado local e impactam ou são impactados por processos em outro local, e geralmente ligados a fatores econômicos e geopolíticos, no âmbito das ciências humanas; e as teleconexões, relativas a processos biofísicos como o El Niño, por exemplo, em que uma variação na temperatura do Pacífico altera o regime de chuvas no Nordeste brasileiro, não resultando necessariamente da atividade humana.”

Segundo o pesquisador, o Telecoupling envolve tanto sistemas humanos como sistemas naturais, promovendo uma interconexão real e a possibilidade de formulação de cenários. “Operacionalmente, o Telecoupling se baseia em sistemas que chamamos de ‘exportadores’, que enviam para outro sistema matéria, energia, capital, dinheiro, pessoas, etc.; ‘importadores’, que os recebem; e sistemas ‘afetados’, que não participam obrigatoriamente do fluxo entre exportadores e importadores, mas são impactados de alguma forma.”

O pesquisador Ramon Felipe Bicudo da Silva, doutor pelo Nepam e integrante do Telecoupling, informa que já foram realizadas três das cinco reuniões internacionais anuais planejadas para execução do projeto – nos EUA, China e Brasil, nessa ordem, sendo que a próxima, em agosto, será em Oxford (Inglaterra) e a última novamente no Brasil, em 2019. “Realizamos pesquisas de campo nos três países focais – Brasil, China e Estados Unidos. Os parceiros da Inglaterra já criaram o modelo de uso da terra e dinâmicas da expansão agrícola no Brasil, e também o modelo que fará a conexão de dinâmicas nacionais com o comércio internacional, no caso, da soja. O grupo já publicou mais de dez artigos científicos até o momento e outros estão sendo preparados.”

Para Leila da Costa Ferreira, professora de sociologia ambiental no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisadora principal do Telecoupling, esse projeto sobre a soja é mais atual que nunca. “Principalmente agora com essa guerra tarifária entre americanos e chineses, que os produtores brasileiros estão vendo como oportuna. Esse projeto já foi muito bem sucedido em um dos objetivos fundamentais do Belmont Forum, que é de agregar pesquisadores de alto nível de vários países.”

Inúmeras abordagens

Mateus Batistella observa que a guerra comercial entre EUA e China não estava presente no início do projeto, mas permite inúmeras abordagens, podendo merecer atenção do grupo de pesquisadores. “Até porque o governo Trump ainda tem alguns anos pela frente. Se essa guerra resultar em maior demanda pela soja do Brasil, só existem duas formas de atendê-la, além de aumentar a produtividade nas áreas já plantadas: converter outras áreas (como de pastagem) ou converter vegetação nativa, desmatando – e isso tem acontecido com muito mais frequência no Cerrado, que pode sofrer pressão ainda maior por causa da demanda pela commodity."

A expansão da fronteira da soja aponta para o Cerrado, conforme Ramon Bicudo, porque a região ainda possui áreas de vegetação nativa que podem ser convertidas legalmente. “Dentro de cada propriedade há uma porcentagem de área que deve ser preservada. Na Amazônia, essa reserva legal é de 80%, ou seja, só se pode desmatar 20%; e já se chegou quase ao limite em muitos lugares, como no norte do Mato Grosso (que pertence à Amazônia), onde não há mais área passível de ser convertida. Já no Cerrado, o percentual é de 35% (se dentro da Amazônia legal) ou 20% (fora dela), o que significa que o produtor pode abrir até 80% da sua propriedade para a soja. Como a região já teve mais de 50% de sua área desmatada, a expansão de culturas como a soja deve priorizar áreas de pastagens degradadas.”

O grupo do Telecoupling está especialmente interessado nesse tipo de dinâmica, e não apenas no Brasil, como salienta o coordenador geral do projeto. “Não por acaso, definimos Brasil, Estados Unidos e China como os principais players desse mercado. A China tem sua grande área produtora de soja (que é originária do país) no nordeste, na província de Heilongjiang. Os americanos têm a produção concentrada no meio oeste, no chamado Corn Belt (Cinturão do Milho). E, no Brasil, o plantio começou no Rio Grande do Sul, subiu ao Paraná e chegou ao Mato Grosso. Até os anos 2000, o estado gaúcho era o primeiro produtor (seguido do Paraná), mas hoje é o terceiro, porque o Mato Grosso disparou no setor.”

Batistella diz que esta dinâmica é mais estável nos EUA, que continuam produzindo soja e milho onde sempre se produziu, enquanto a China, ao contrário, passou a importar muita soja e a província de Heilongjiang está sendo convertida para o milho. “Acontece que a forma de produção na China é bem diferente: as áreas de plantio são muito menores, tudo é muito regulado pelo Estado, a produção é familiar e, do ponto de vista da eficiência e da produtividade, americanos e brasileiros se destacam.”

Outra questão, apontada por Ramon Bicudo, é que enquanto a semente geneticamente modificada domina o cultivo no Brasil (e também nos EUA), na China ela é proibida, o que interfere muito na produtividade. “A soja transgênica importada é dada para os animais (frangos, porcos, gado), os produtores chineses não se alimentam dela”, conta o pesquisador. “Esta é outra dinâmica relativa ao Telecoupling: há a segurança alimentar (food security) e há a segurança dos alimentos (food safety). A questão dos transgênicos é importantíssima, ainda mais porque o mercado alimentar do planeta está nas mãos de poucas corporações que dominam a produção de sementes, agroquímicos e a logística de distribuição.”

Operacionalização

Mateus Batistella explica que a operacionalização de um projeto tão complexo passa, inicialmente, por uma longa fase de coleta e mineração de dados, em todas as escalas (global, nacional, regional, local), sobre agricultura, produção, logística, meio físico, demanda por alimento, etc., constituindo-se assim as bases de dados. O segundo foco está na pré-análise e análise desses dados. “Já o terceiro módulo, não é fácil de implementar: o diálogo constante com os stakeholders, ou seja, grupos de atores e empresas do mercado produtivo. Temos sido bem sucedidos, mais no Brasil e na China, e agora começando nos Estados Unidos. Goste-se ou não do agronegócio, é o setor que continua segurando a balança comercial brasileira, tendo como principal commodity a soja, seguida pela carne.”

Na opinião do pesquisador, a maior inovação do projeto talvez seja esse modelo híbrido, com os stakeholders, ao invés da modelagem proposta inicialmente, baseada em agentes individuais (nas decisões do produtor). “Partimos da premissa que esses grupos agem e reagem de forma semelhante ao mercado, ao preço e à legislação ambiental. Queremos mostrar à Diretoria Científica da Fapesp e aos próprios stakeholders como essa inovação pode ser usada na prática para gerar cenários a partir do que chamamos de ‘what if questions’, mostrar como a produção de soja vai reagir aos ‘e se’”.

Mais informações na página do Telecoupling.